Por Hermes C. Fernandes
Era uma vez um rei rico e poderosíssimo que do alto de seu palácio avistou uma modesta propriedade e a cobiçou. Tratava-se de uma vinha como outra qualquer, tão comum naqueles dias no território de seu reino. Porém, algo o incomodava. Todos os dias, ao acordar e abrir a janela de seu quarto, ele dava de cara com o seu vizinho Nabote, cultivando cuidadosamente sua plantação. Se aquela vinha fosse em qualquer outro lugar, ele não se importaria. Mas era justo ali, bem debaixo de seu nariz. Ouvir Nabote e seus servos cantarolando enquanto colhiam as uvas soava-lhe como um insulto.
O rei Acabe, então, começou a se perguntar: “Por que esta vinha não pode ser minha? Se sou o dono do palácio, por que não posso ser também seu dono? Posso transformá-la em uma horta!”
Ele não queria apenas se apropriar daquela terra, mas também acabar com o que nela estava plantado. Seu sonho era arrancar videira por videira e substitui-la por hortaliças. Tudo isso por um mero capricho.
O fato é que o ser humano nunca se dá por satisfeito. Quanto mais tem, mais quer. E como diz o adágio, a grama do vizinho é sempre mais verde que a do nosso próprio quintal. O outro sempre tem o que nos falta. Então, o que nos resta, senão tentar nos apropriar do que é seu?
Num belo dia, Acabe resolve fazer uma oferta a Nabote. Ele estava disposto a dar a Nabote uma vinha melhor do que aquela em qualquer lugar do reino, ou a pagar em dinheiro o valor que fosse pedido, mas, para seu desgosto, Nabote rejeitou sua oferta, alegando que a vinha era uma herança que recebera de seus pais.
Não há preço que pague por aquilo a que atribuímos valor. Para Nabote, a vinha não era somente um meio de subsistência para a sua família, mas uma herança pela qual deveria zelar. Se Acabe lhe oferecesse dez vezes o seu valor, ele certamente recusaria.
Muito antes que Acabe construísse ali o seu nababesco palácio, os ancestrais de Nabote já cultivavam aquelas terras. Portanto, o intruso ali era Acabe, não Nabote. Os direitos de um se baseavam na posição que ocupava, os do outro, na ocupação em que se posicionava. Nabote pertencia a Jezreel. Acabe, a Jezabel.
Acabe sentiu-se ofendido pela recusa da oferta. Voltando para casa, deitou-se em sua cama e virou-se para a parede. O que é uma vinha para quem tem um palácio? Ele não sossegaria enquanto aquela propriedade não fosse transformada em seu quintal.
Sua mulher, a perversa rainha Jezabel, perguntou-lhe a razão de sua angústia, e ao tomar conhecimento do ocorrido, propôs-se reverter a situação em seu benefício. Mas não sem antes chamar-lhe atenção:
“Governas tu agora no reino de Israel? Levanta-te, come pão, e alegre-se o teu coração; eu te darei a vinha de Nabote.”
Em outras palavras: “Acabe com isso, Acabe! Vira homem! Pare de ficar choramingando pelos cantos! Você é ou não é o rei desta bagaça! Se ele se recusa a vender a propriedade, vai lá e toma. Faça valer sua autoridade! Sabote a Nabote!”
Há pessoas que têm o dom de incitar o que há de pior em nossa natureza. Ainda que pareçam desejar o nosso bem, encorajando-nos a uma tomada de posição, usam de artifícios nada louváveis, desafiando-nos o brio.
A malévola rainha escreveu cartas em nome do rei, usou seu anel real para assiná-las, e enviou-as aos anciãos e nobres da cidade. Provavelmente, Acabe nem sequer leu o que fora assinado com o seu anel. Outro pensou e decidiu por ele. Triste quando somos colocados numa posição involuntariamente, sem que tenhamos sido consultados. Triste quando alguém se acha no direito de decidir o que é melhor para nós.
Quem não consegue nos manipular, geralmente se aproveita da ingenuidade das pessoas para manipulá-las contra nós. Nabote demonstrou que não era manipulável. Portanto, Jezabel decidiu resolver a questão manipulando pessoas para deporem contra ele.
Sua ordem foi direta e específica, porém, revestida de uma falsa aura de espiritualidade. Descaradamente, ela manda convocar um jejum. Quem poderia questionar algo que fosse acompanhado de uma disciplina espiritual tão valorizada naqueles dias? Porém, o tal jejum era apenas uma estratégia baixa para encobrir seu verdadeiro intento. Assim como há quem se utilize até de um pedido de oração para espalhar boatos maldosos com o objetivo de destruir a reputação alheia.
Dois “filhos de Belial” (assim eram chamados homens ímpios que se vendiam por qualquer trocado) foram subornados para testemunharem contra Nabote, afirmando por A mais B que ele havia blasfemado contra Deus e contra o rei. A sentença para isso não poderia ser outra, senão a morte.
Ali, diante de um povo aparentemente piedoso, Nabote foi friamente executado por apedrejamento, e assim, sua terra pôde ser encampada pelo rei.
Para o casal de monarcas, Nabote não passava de um empecilho que precisava ser removido de seu caminho. Por recusar a oferta do rei, pagou com a própria vida.
Existem maneiras distintas de se livrar de um empecilho. Antes de tirar-lhe a vida, trataram de destruir sua reputação. Mas o que realmente queriam era sua propriedade. Assim como há quem justifique uma decisão injusta em um suposto erro alheio. Por trás dos motivos alegados, há razões inconfessáveis. Decisões que parecem ser tomadas de última hora, já estavam sendo engendradas há anos, esperando tão somente a oportunidade para ter em que se justificar.
O que era uma vinha, cujos frutos se eternizavam ao serem processados e transformados em vinho para alegrar a tantos, agora se tornava numa horta cujo objetivo seria o de saciar necessidades imediatas e o capricho de um rei ensandecido e insensato. Cultivar uma vinha é sempre mais trabalhoso. Há que se esperar, esperar e esperar, até que as uvas brotem. Uma vez colhidas, terão que ser pisadas para a extração do mosto, e em seguida, colocadas para fermentar até que surja o bom e desejável vinho. Já a horta é para quem tem pressa e almeja resultados imediatos, e que para tal, é capaz até de sacrificar a honra, a lealdade, a amizade, e o compromisso um dia assumido diante de Deus e dos homens.
* Baseado em fatos reais relatados em 1 Reis 21:7-15
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