Por Hermes C. Fernandes
Foram quarenta anos de peregrinação pelo deserto. Naquele
ambiente inóspito, Israel teve que aprender a depender de Deus como um filho
depende de seu pai. Sob um sol escaldante, não havia a menor chance de que eles
plantassem e colhessem. O ambiente lhes era totalmente hostil. Por isso, Deus
toma para Si a responsabilidade, alimentando-os com o maná que do céu caía
todos os dias e com as aves que voavam ao alcance de suas mãos, e saciando-os com
a água que da rocha jorrava. Além do alimento, Deus lhes protegia do calor
abrasador, proporcionando-lhes sombra com a nuvem que os acompanhavam, e lhes
protegia do frio à noite transformando a mesma nuvem numa coluna de fogo. Sua
única preocupação deveria seguir aquela nuvem que os guiava deserto afora, e
submeter-se à liderança de Moisés. Ninguém precisava se preocupar em trabalhar,
em correr atrás do pão de cada dia. Tudo vinha de mão beijada diretamente do Pai
Provedor. Mas, de repente, o inusitado aconteceu. Aquele que os guiara desde o
Egito partiu sem deixar vestígio. E como se não bastasse, Deus lhes deixou de
sobreaviso: tão logo atravessassem o Jordão, o maná diário cessaria, a rocha
deixaria de verter água, as codornizes desapareceriam de seu cardápio. A partir
daí, eles teriam que arregaçar as mangas e trabalhar. Afinal de contas, Deus os
teria introduzido numa terra que manava leite e mel, a tão sonhada Terra
Prometida (Josué 5:12). Meritocracia?
Negativo. A mesma graça que os sustentou pelo deserto, agora seria responsável
por cada chuva, por cada estação, por cada colheita (Atos 14:17). Entretanto,
caberia a eles não receber tal graça em vão, mas trabalhar com afinco a fim de
não desperdiça-la.
Era de se esperar que a morte de Moisés os deixasse com
aquele sentimento de orfandade que poderia desanimá-los e distraí-los do foco.
Por isso, Deus incube a Josué de lidera-los na
nova etapa que se iniciava. “Moisés,
meu servo, é morto. Levanta-te agora, passa este Jordão, tu e todo este povo, à
terra que eu dou aos filhos de Israel. Todo o lugar que pisar a planta do vosso
pé, eu o tenho dado a vós, como prometi a Moisés” (Josué 1:2-3). Em outras
palavras, Moisés tinha prazo de validade, mas a promessa de Deus não. Esta
jamais caducaria! Moisés era apenas um canal através do qual Deus guiava Seu povo. Mas eles teriam que reconhecer que, apesar de os canais variarem, a fonte segue sendo a mesma de sempre: DEUS! Josué seria o novo canal que os conduziria à terra com a qual sonharam desde que deixaram a terra dos faraós.
Durante a travessia no deserto, Israel sentia saudade do
Egito, de suas cebolas, de seus alhos, de seus melões e peixes (Números 11:5).
Apesar do trabalho forçado, da escravidão, dos açoites, eles tinham a garantia
de que não lhes faltariam mantimentos. O período no deserto serviu para
desintoxicá-los. Tirá-los do Egito foi bem mais fácil do que tirar o Egito
deles. Agora, contudo, eles teriam que voltar a trabalhar, não mais sob a
tirania e a exploração de Faraó, mas sob os cuidados amorosos do Pai Celestial.
Um Deus que é Pai não oprime a Seus filhos, mas também não os mima. Pelo
contrário, Ele os disciplina para que cresçam, amadureçam, frutifiquem, e ainda
assim, sigam dependentes de Sua Graça e Amor.
Graça e trabalho não são antagônicos. O que confunde a
muitos é a conexão equivocada entre trabalho e mérito. Na mesma passagem em que
Paulo encomenda os discípulos “a Deus e à
palavra da sua graça”, ele também diz: “Tenho-vos
mostrado em tudo que, trabalhando assim, é necessário auxiliar os enfermos, e
recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse: Mais bem-aventurada coisa é
dar do que receber” (Atos 20:32,35).
Ninguém falou mais da graça do que Paulo. Porém, ele jamais
a usou como subterfúgio, desculpa ou justificativa para a ociosidade. Pelo
contrário, ele a enxergava como uma força motivadora para o trabalho, e diz que
toma-la como desculpa para cruzar os braços é o mesmo que recebe-la em vão. Ou
não isso que ele diz?:
“Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para comigo não
foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a
graça de Deus, que está comigo.” 1 Coríntios 15:10
O que a travessia do Jordão foi para os Israelitas, o Dia de
Pentecostes foi para os cristãos. Jesus já havia alimentado a multidão que o
seguia pelo deserto, multiplicando pães e peixes por mais de uma vez. Ele
também prometera aos Seus discípulos que os que n’Ele cressem fariam as mesmas
obras que fez, e ainda faria obras maiores. Entretanto, não flagramos os
discípulos protagonizando milagres de multiplicação após a descida do Espírito
Santo em Pentecostes. O episódio da multiplicação foi paradigmático, não por causa
do milagre em si, mas pelo fato de que um menino se dispôs a compartilhar seu
próprio lanche com a multidão. E foi assim, calcados neste exemplo, que as
primeiras comunidades cristãs desenvolveram o hábito da partilha, razão pela
qual, não havia entre elas nenhum necessitado. O maior milagre é o que ocorre
no interior do coração humano, transformando opressores e exploradores em
potencial em seres generosos, cheios de amor pelos seus semelhantes. Obviamente
que alguns aproveitadores se infiltraram nas igrejas para obter alguma vantagem
em cima do espírito solidário dos cristãos. Eles queriam uma fatia do bolo, sem,
porém, cooperar para que este bolo crescesse e pudesse alimentar a tantos
outros. Para corrigir isso, o apóstolo Paulo nos deixou uma severa advertência:
“Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo nós lhes ordenamos que se
afastem de todo irmão que vive ociosamente e não conforme a tradição que
receberam de nós. Pois vocês mesmos sabem como devem seguir o nosso exemplo,
porque não vivemos ociosamente quando estivemos entre vocês, nem comemos coisa
alguma à custa de ninguém. Pelo contrário, trabalhamos arduamente e com fadiga,
dia e noite, para não sermos pesados a nenhum de vocês, não por que não
tivéssemos tal direito, mas para que nos tornássemos um modelo para ser imitado
por vocês. Quando ainda estávamos com vocês, nós lhes ordenamos isto: se alguém
não quiser trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão
ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas
ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e
comam o seu próprio pão.” 2 Tessalonicenses 3:6-12
Não creio em meritocracia, pois entendo que nem todos
desfrutam da mesma oportunidade de crescer, desenvolver-se e produzir. Uma
coisa é não ter oportunidade, outra é tê-la, mas negligenciá-la. A orientação apostólica é clara: “Trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom,
para que tenha o que repartir com o necessitado (...) aproveitando bem cada
oportunidade, porque os dias são maus” (Efésios 4:28b; 5:16b).
Se teve a oportunidade de se aperfeiçoar em alguma tarefa,
não a desperdice! Se teve a chance de ser bênção na vida de outros, e, de
quebra, garantir sua própria subsistência, não a negligencie. Como já dizia meu
velho e sábio pai: o que tinha que vir do céu já veio: Jesus para morrer por
nós e o Espírito Santo para nos capacitar. Agora, só nos resta correr atrás, na
certeza que as bênçãos de Deus nos acompanharão em tudo o que fizermos. Que
nosso objetivo seja o mesmo de Paulo e dos demais apóstolos: Não sermos pesados
a ninguém! Nem que para isso tenhamos que trabalhar dia e noite sem parar: “Porque
bem vos lembrais, irmãos, do nosso trabalho e fadiga; pois, trabalhando noite e
dia, para não sermos pesados a nenhum de vós, vos pregamos o evangelho de Deus”
(1 Tessalonicenses 2:9). Que nossa dependência de Deus não seja desculpa para o
ócio, mas estímulo para o trabalho digno, honesto e honroso.
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