domingo, junho 05, 2016

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A pele que não habito - A delícia e a dor de se colocar no lugar do outro



Por Hermes C. Fernandes

É preciso ter estômago e muita sensibilidade para assistir ao filme “A pele que habito” dirigido pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar e estrelado por Antonio Bandeiras. Nossos mais enraizados preconceitos são confrontados sem dó nem piedade. Por um instante, ficamos sem chão, em busca de algo em que se segurar. A filha de um bem-sucedido cirurgião plástico sofre uma tentativa de estupro no jardim de uma mansão onde acontecia uma festa da alta sociedade. Quando seu pai a encontra, ela está deitada, aparentemente inconsciente. Ao tentar despertá-la, ela julga que seu próprio pai a está violentando e começa a gritar. Devido a um colapso emocional, ela é internada num hospital psiquiátrico e na primeira oportunidade, se suicida jogando-se da janela. Arrasado, o pai sai à caça do rapaz que a havia molestado, e ao encontrá-lo, decide capturá-lo e mantê-lo em cárcere privado por anos a fio. Durante este tempo, o médico lhe aplica procedimentos cirúrgicos sem o seu consentimento, começando pela troca de sexo. Paulatinamente, ele vai esculpindo o corpo e o rosto do rapaz até torná-lo numa linda jovem, por quem, inusitadamente, acaba se apaixonando. Obviamente, há muito mais no enredo do filme, e posso garantir que vale a pena assisti-lo.

Haveria melhor vingança contra um estuprador do que torná-lo semelhante à sua vítima? Já imaginou se Deus resolvesse agir da mesma forma e fizesse com que todo machista vivesse ao menos um dia como mulher? E se todo racista, ao acordar e olhar-se no espelho, se desse conta de que da noite para o dia se tornou negro? E se todo homofóbico experimentasse ser homossexual por algum tempo? E se alguém cheio de preconceito contra deficientes se tornasse num cadeirante de uma hora para outra (aliás, disso, ninguém está isento)? E se dormíssemos cristãos e acordássemos candomblecistas ou hinduístas, ou até mesmo ateus?


Sorte nossa Deus não ser vingativo, não? Ele poderia nos transformar justamente naquilo que menosprezamos.  É por isso que não vejo qualquer sentido em menosprezar um idoso. Afinal, todos caminhamos para a velhice e a alternativa a isso ninguém quer. Ou envelhecemos, ou morremos.

Apesar de não ser este o caminho escolhido por Deus para nos moldar, estou certo de que Seu desejo é que aprendamos a nos colocar no lugar do outro antes de julgá-lo ou desprezá-lo.

Empatia. Eis a palavra. É disso que precisamos com urgência. Caso contrário, tornar-se-á insuportável viver numa sociedade em que as pessoas não deem o mínimo para o sofrimento alheio, preferindo ocupar o seu tempo em julgar e cultivar todo tipo de preconceito.

Houve uma família que partiu de Belém para refugiar-se nas terras de Moabe durante um período de fome. Um casal e dois filhos. Mesmo cientes das dificuldades que teriam em viver entre um povo hostil, eles não tiveram alternativa. A fome e a possibilidade da morte os assustavam mais do que a animosidade dos moabitas.

Chegando a Moabe, a família conseguiu se integrar na sociedade local, a ponto de seus filhos se casarem com duas jovens moabitas, Orfa e Rute. Eventualmente, Eimeleque, o patriarca da família, veio a falecer. Mas Noemi, agora viúva, ainda podia contar com seus filhos e noras naquela terra estranha. Dez anos depois, seus filhos também morreram. Agora, só restara a Noemi a companhia de suas noras moabitas.  Numa sociedade patriarcal como aquela, não era nada fácil que uma família só de mulheres sobrevivesse.

Ao saber que a situação em sua terra natal havia se revertido, Noemi decidiu voltar. Certamente, seria mais fácil, na condição em que estava, sobreviver em sua própria terra, cercada por parentes e amigos. Vendo que suas noras ainda eram jovens e belas (eu não disse recatadas, ok?), Noemi aconselhou-as a que buscassem dar um novo rumo às suas vidas. Não havia razão para acompanhar uma mulher idosa em sua marcha de volta ao lar, desperdiçando assim a sua juventude.

 – Voltem para suas famílias! Aproveitem a vida que ainda têm pela frente. Vocês vão acabar encontra novos maridos, constituindo novas famílias – teria argumentado Noemi.

Porém, chorando, elas prometeram jamais deixá-la. O que teria levado Noemi a agir dessa maneira? Afinal, ela bem que poderia se aproveitar da juventude de suas noras, colocando-as para trabalhar para ela, tanto dentro, quanto fora de casa. Todavia, seu caráter extraordinário não lhe permitia sequer imaginar a possibilidade de sabotar o futuro daquelas que haviam sido a razão da felicidade de seus falecidos filhos. Isso sim é vestir-se na pele do outro; colocar-se em seu lugar; assumir os anseios alheios como sendo seus. A felicidade do outro deve estar acima de nossas necessidades particulares. Quem ama deve desejar mais a felicidade do outro do que a sua própria companhia. 

Na segunda tentativa, Noemi argumentou:

 – Filhas, parece até que vocês têm esperança de que um dia eu lhes possa gerar outros maridos. Ora, já sou velha. E ainda que me engravidasse nesta noite, por quanto tempo vocês teriam que esperar até que meus filhos crescessem? Não insistam em me acompanhar. Vocês têm o direito de sair em busca de sua própria felicidade.

Desta feita, Orfa cedeu ao argumento da sogra, deu-lhe um beijo banhado de lágrimas e se foi. Porém, Rute não arredou os pés. Nada conseguia demovê-la da decisão de acompanhar Noemi.

 – Por que não faz como a sua concunhada? Aproveita. Vá com ela. Volte para o seu povo e para o seu deus!

Pelo que Rute respondeu:
“Não insistas comigo que te deixe e não mais a acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” Rute 1:16
O que deu em Rute? Será que ela surtou de vez? Aquela mulher idosa não tinha nada a lhe oferecer a não ser a sua companhia e alguns conselhos de quem já havia vivido o suficiente. 

Estou certo de que a mesma empatia que houve no coração de Noemi com relação às suas noras, houve também no coração de Rute com relação à sua sogra. Ela deve ter imaginado como seria difícil para uma mulher daquela idade ter que se virar sozinha, sem ninguém por perto para apoiá-la.

Empatia deveria ser uma estrada de mão-dupla. Sem reciprocidade, o circuito não se completa. Pais devem saber se colocar no lugar dos filhos, entendendo que um dia também foram adolescentes, tiveram seus momentos de rebeldia, de vontade de conhecer o mundo, de experimentar coisas novas, etc. Semelhantemente, os filhos devem “vestir a pele” dos pais e imaginar como deve ser ter a idade em que agora estão, com tantas histórias para contar e com tão pouco futuro pela frente (pelo menos em comparação a eles). Maridos devem saber se colocar no lugar de suas respectivas esposas, compreender seus anseios e os desafios que enfrentam em seu dia a dia. Assim como as esposas devem se imaginar no lugar de seus maridos, suas carências, suas frustrações.

Quanta coisa não seria evitada, hein? De quanto desgaste desnecessário as relações seriam poupadas?Para Noemi, a felicidade de sua nora importava mais do que a sua agradável e tão querida companhia. Mas para Rute, abandonar a sua sogra àquela altura do campeonato não parecia justo.

Depois de devidamente instaladas em Belém, Rute saiu em busca de algum trabalho. Se já era difícil ser mulher naquela época, imagina ser mulher e, ainda por cima, estrangeira. Vendo alguns ceifeiros trabalharem num vasto campo, infiltrou-se entre eles, e saiu catando as espigas que eles deixavam para trás.

Quando Boaz, o dono do campo, chegou, quis saber quem seria aquela jovem estranha que desde cedo se colocara a trabalhar. Informaram-lhe que se tratava da nora de Noemi, sua parente. Chamando-a a parte, aconselhou-a a não buscar outra lavoura para trabalhar, mas a permanecer por ali, onde ele lhe garantiria segurança. Nenhum dos rapazes que ali trabalhavam poderia importuná-la. E se tivesse sede ou fome, ali mesmo poderia saciar-se à vontade.

Não há porque buscar outras lavouras, quando se tem o que precisa. Como também não razão para insegurança e o ciúme quando nos dispomos a oferecer ao outro os cuidados de que necessita. Empatia também consiste em dar liberdade ao outro para que vá ou fique. Em vez de chantagens emocionais ou cerceamento da liberdade, oferece-se razões para ficar, dentre as quais, segurança. Em vez de controle, cuidados. Ciúme nada mais do que a admissão de que outro possa proporcionar felicidade maior do que a que nos propusemos oferecer. 

Quando Jesus se viu abandonado pela multidão que o acompanhava, deixou claro aos Seus discípulos que eles tinham liberdade de partirem a hora que quisessem. Pedro, porém, toma a palavra diz: Para onde iremos, Senhor, se só tu tens palavras de vida eterna?

O que teria feito com que Boaz agisse com tal humanidade para com uma desconhecida estrangeira? Arrisco-me a dizer que o simples fato de ser filho de quem era. Aquele homem de bom coração era filho de ninguém menos que Raabe, a prostituta que após ter acolhido dos espias de Josué em Jericó, foi integrada ao povo de Israel.

Por certo, Boaz teve que aprender a lidar com o estigma de ser filho de uma meretriz. Ora, quem já foi vítima de qualquer tipo de preconceito, não tem o direito de vitimar ninguém. Olhando para Rute, a jovem viúva moabita, Boaz se lembrou da própria mãe e do período de adaptação que ela amargou entre os filhos de Israel.  O que ambas tinham em comum era o fato de serem estrangeiras. Porém, enquanto uma era viúva, a outra havia sido prostituta.

Ao chegar a casa com os feixes recolhidos no campo, Rute contou à sua sogra o que se passara e como aquele homem a recebeu com dignidade. Noemi só faltou festejar. Ela reconheceu tratar-se de um parente bem próximo de seu falecido marido. E de acordo com os costumes da época, ele poderia ser o resgatador de Rute, isto é, aquele que poderia libertá-la de sua condição. Bastaria tão somente que se dignasse a tomá-la por esposa.  
“Certo dia, Noemi, sua sogra, lhe disse: "Minha filha, tenho que procurar um lar seguro, para sua felicidade. Boaz, aquele com cujas servas você esteve, é nosso parente próximo. Esta noite ele estará limpando cevada na eira. Lave-se, perfume-se, vista sua melhor roupa e desça para a eira.”
Noemi, então, aconselhou-a a esperar que Boaz se adormecesse,  viesse discretamente, descobrisse seus pés e se aconchegasse junto a eles. Mesmo sem entender direito o significado de tal gesto, Rute optou por obedecer à recomendação de sua sogra.

Ao acordar assustado, Boaz sentiu-se surpreso com a cena de Rute deitada aos seus pés. Ela poderia ter se aproveitado do fato de ele ter se embriagado antes de dormir, seduzindo-o e até provocando uma gravidez que lhe garantiria um futuro promissor. Em vez disso, ela tão-somente descobre os seus pés e neles se aconchega.

Vendo-o assustado, ela diz:

 – Estende sobre mim a sua capa, pois o senhor é o meu resgatador.

Vejo nesta cena cada um de nós, aconchegado aos pés de Cristo e rogando-lhe que nos estenda Seu manto de amor e misericórdia. Ele é o nosso Resgatador!

O coração de Rute deveria estar a mil. Qual seria a reação de Boaz? Não poderia ser outra senão a de um gentleman.
“O Senhor a abençoe, minha filha! Este seu gesto de bondade é ainda maior do que o primeiro, pois você poderia ter ido atrás dos mais jovens, ricos ou pobres! Agora, minha filha, não tenha medo; farei por você tudo o que me pedir. Todos os meus concidadãos sabem que você é mulher virtuosa.”
Boaz considerou que Rute agiu para com ele com a mesma bondade com que agiu para com a sua sogra, recusando-se a abandoná-la. A esta altura, todos em Belém já sabiam que aquela jovem viúva não era uma aproveitadora, alguém em busca de locupletar-se, e sim, uma mulher dotada de admiráveis virtudes. 

O que Rute jamais poderia presumir era que ao se casar com Boaz, ela não apenas era desposada pelo filho de uma prostituta cananeia, mas também ingressava na árvore genealógica que traria ao mundo o grande Resgatador, o Filho de Deus, que ao se fazer carne, sentiria na própria pele “a delícia e a dor” de ser humano. 

2 comentários:

  1. Texto incrivel , Gloria Deus por sua vida !

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  2. Pastor, mais uma vez, parabéns e obrigada pelas suas reflexões! A começar pelo exemplo dado a partir do filme de Almodóvar que, confesso,,afetou-me profundamente, não só pela questão já abordada pelo Sr., como também pela chance de refletir sobre a possibilidade real (autoritária e pouco amorosa) que cada um de nós tem de negar o direito do outro de existir (ou de termos nosso direito negado).E com mais pesar ainda observo que muitos dos que foram vítimas do preconceito de outros, julgam-se no direito de marginalizar outros tantos.
    Precisamos, com urgência, em nome de um projeto, de fato, civizatório, tornamo-nos "resgatadores".
    Um abraço afetuoso.

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