segunda-feira, março 16, 2015

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A direita de Deus – e sua possível esquerda



"A natureza da mensagem divina é que ela rejeita e existe em contraste com muitos dos valores e crenças centrais comumente aceitos na cultura e na sociedade." Daniel M. Keeran

Que alguns cristãos pendam politicamente para a esquerda e outros para a direita depende menos de uma convicção política do que do modo como enxergam o próprio cristianismo.

A “direita”, naturalmente, é uma posição com muitas bases, querendo dizer que a palavra é entendida de muitas formas. Muitos, cristãos ou não, fundamentam sua afiliação à direita numa negativa, a simples rejeição ao comunismo. São de direita porque são contra a esquerda, por assim dizer. Outros preferem afirmar a alternativa, explicando que tudo já foi tentado, e o capitalismo de livre mercado é a solução socioeconômica mais justa (ou menos injusta) para os dilemas de convivência das sociedades.

Prerrogativas, privilégios e poderes

A esquerda, da mesma forma, pode escolher definir-se de várias formas: como comunismo estrito na tradição Marx-Lenin-Trotsky-Gramsci (matriz da esquerda brasileira que aprendemos todos a amar ou odiar), como socialismo liberal, como libertarismo radical ou na forma de qualquer alternativa sociopolítica ao neoliberalismo. Na prática, porém, a diferença é mais simples e os argumentos contam pouco. De direita é quem de alguma forma sustenta que a desigualdade social é coisa necessária ou inevitável; de esquerda é quem sustenta que não.

Dessa raiz brotam todos os ramos. O que a esquerda quer reformar na sociedade a direita quer deixar como está, com o argumento de que sempre-foi.

É por isso que a direita vê como parte fundamental da sua missão defender os valores tradicionais, a ordem familiar das coisas e todas as distinções e privilégios vigentes. O que a direita repudia é aquilo que teme: qualquer ruptura no tecido da sociedade. Tudo na estrutura social deve permanecer como é, em seu estado “natural” – por isso nada de secularismo, nada de reforma agrária, nada de conter o desenvolvimento em favor das futuras gerações, nada de casamento gay, nada de cotas, nada de bolsa-família ou de outras políticas de redistribuição.

Durante a Revolução Francesa sentavam-se à direita do plenário os parlamentares que apoiavam a monarquia e suas tradições e instituições, incluindo o clero; à esquerda sentavam-se os que apoiavam a revolução. Foram anos desse feng shui que deram origem ao uso político dos termos esquerda e direita – e sim, algumas narrativas de origem de fato explicam tudo.

A direita exige que sejam mantidas todas as diferenças tradicionais entre as pessoas (e portanto entre as classes); a esquerda exige que sejam finalmente derrubadas. A direita chama as distinções tradicionais de valores; a esquerda as chama de ferramentas de dominação. A direita é a mão que escreve, e trabalha para manter intactas as estruturas vigentes de poder; a esquerda é a mão do relógio, e insiste que está mais do que na hora de trocar por algo menos injusto o que está aí.

Em menos palavras, a direita é a voz de quem tem mais a perder, e se maravilha de que alguém questione o seu direito aos privilégios de que desfruta. Robert M. MacIver1:
A direita foi sempre a facção associada aos interesses das classes superiores ou dominantes, a esquerda o setor expressivo das classes socioeconômicas mais baixas. A direita, conservadora, defende prerrogativas, privilégios e poderes arraigados; a esquerda os ataca. A direita favorece a posição aristocrática, a hierarquia do nascimento e da riqueza; a esquerda luta pela equalização das vantagens ou das oportunidades, pelos clamores dos menos favorecidos.
A nova aristocracia não é de sangue, naturalmente, e a nova direita defende os privilégios da aristocracia econômica com o infame (e falho) argumento de que qualquer um que realmente se esforçar pode fazer parte dela. Porém sua postura essencial não difere da dos monarquistas franceses que encontravam enorme embaraço nos giros por minuto da Revolução: porque o importante é que a ordem/a hierarquia em vigor deve permanecer.

A naturalidade do natural 

Não importa se na França ou na revista Veja: a direita, conservadora, encontra na lei natural o seu grande argumento para defender os privilégios que escolheu.

Certos privilégios, explicam os da direita, são naturais – e insistem que é preciso ser pelo menos um pouco não-natural para recusar-se a entender isso.

Não conta, aparentemente, o fato de que as distinções tradicionais entre pessoas e classes, que foram por séculos tomadas como naturais, tenham se revelado com o tempo muito artificiais e arbitrárias. A primazia de nobres sobre a gente comum, de brancos sobre negros, de homem sobre mulheres, de arianos sobre judeus – foram todas tidas como naturais (também no sentido de estabelecidas por Deus), e todas foram (e em alguns casos permanecem sendo) defendidas pela direita.

Desta vez não nos enganamos, explica a direita de agora, quando dizemos que os privilégios em vigor, gerados pelo capitalismo quando opera desimpedido, são muito naturais. Quem trabalha e se esforça deve ser recompensado, não lhe parece… natural?

Você não deve se maravilhar se eu tenho televisores de setenta polegadas e você um salário de 700 reais. Não deve se maravilhar se em casa somos três pessoas e cinco carros e no seu quarto são cinco pessoas e três camas. Não deve se maravilhar se tenho um sítio em que caberia o seu bairro inteiro e você vai morrer sem ver quitada a casinha que não é sua.

É a ordem natural das coisas, você não vê? Eu tenho pós nos Estados Unidos e você não concluiu o ensino mais fundamental, eu tenho talento e você é um medíocre, eu ralei fazendo residência e você nem plano de saúde tem, eu sou o dono do Jaguar e você é o manobrista que não quero que risque. A direita não consegue ainda entender porque nos recusamos a ver o que lhe parece óbvio: que as desigualdades sociais que a esquerda lamenta não são só naturais, mas desejáveis. Sem o input dos ricos os pobres não teriam como desfrutar do output dos benefícios do governo. Assim funcionam as coisas: uma mão lava a outra e todos saem ganhando.

Se for cristã, a direita só vai acrescentar a esse argumento da ordem natural das coisas aquele da soberania divina. Deus não te faria um cara rico e bem-sucedido se não fosse plano dele. Que história é essa de ficar com neuras de distribuir aquilo que você tem? Poderia haver ingratidão maior do que questionar o direito divino? Se você se sente mal quando pensa em todos os desfavorecidos que não desfrutam dos seus privilégios, esquece isso, meu querido – essa é uma falsa culpa imposta sobre você por aqueles que não reconhecem que Deus é soberano para favorecer quem ele curte e deixar na sarjeta quem ele acha por bem. Transforme essa culpa introjetada em gratidão a Deus pelo bom gosto dele, e quando sentir alguma vontade de redistribuir o que tem – RESISTA, que essa inclinação aparentemente nobre à generosidade é tentação de Satanás.

Distribuir privilégios é prerrogativa divina, e as riquezas que Deus uniu não cabe ao homem separar.

Contra a corrente, mas qual

No fim das contas, um cristão de direita e um de esquerda não discordam a respeito de qual sistema lhe parece mais bem lubrificado ou mais justo, mas a respeito de qual é a vocação mais essencial do cristianismo.

Para o cristão de direita, a vocação do cristianismo é preservar num mundo corrompido as coisas mais nobres que Deus estabeleceu desde o princípio: a família, o direito, a religião. Não é à toa que são chamados de conservadores, porque tudo querem conservar. Enxergam determinadas instituições como naturais porque, numa palavra, existem desde sempre neste mundo de Deus, e neste mundo tudo que foi estabelecido, estabelecido deve permanecer.

Para o cristão de esquerda, a vocação do cristianismo é denunciar e subverter todos os mecanismos de dominação e de desumanização deste mundo, especialmente aqueles que se creem particularmente credenciados por Deus e pela tradição. A boa nova a ser anunciada aos pobres é que na pessoa de Jesus Deus desautorizou formidavelmente todos os poderes deste mundo: é chegado o reino de Deus, em que todas as distinções que vigoravam anteriormente devem ser substituídas por uma intransigente fraternidade universal. Esse mundo não tem nada do caráter mesquinho e tribal da família; nesse mundo os que têm direitos abrem mão deles em favor dos que não têm; nesse mundo o céu não tem templo, e a luz onipresente do amor de Deus tornou obsoleta a religião.

Enquanto a direita cristã luta para preservar o valor do que foi estabelecido desde o início, sua esquerda anuncia que aquilo que existiu desde o princípio foi substituído por algo muito melhor: mais exigente, porém mais justo e mais admirável. Vocês ouviram o que diziam os antigos, eu porém vos digo. Para a direita cristã, tudo que é natural deve ser preservado; para a esquerda cristã, o natural evidentemente não basta. Defender a família e ignorar o interesse de desconhecidos é natural; apegar-se à propriedade e aferrar-se a privilégios é natural; amar os que nos amam e odiar os inimigos é natural – e em todos os casos a vocação cristã conclama explicitamente a algo maior, a uma postura sobre-natural, para além da carne tribal em direção ao espírito inclusivo.

Para a direita, o cristianismo nos convida a defender instituições eternas; para a esquerda, ele convida a reverter as injustiças ancestrais que promoveram essas mesmas instituições.

Qual lado está certo?

A resposta depende, é claro, da luz com que cada um lê a sua Bíblia e seu mundo, ou da luz com que permite ser iluminado por eles. Com que reino de Deus acena ou ameaça o Novo Testamento? Um que preserva as distinções entre as pessoas ou um que as torna finalmente obsoletas? Um que preserva as instituições ou um que questiona continuamente a sua legitimidade e suficiência?

Em alguma medida, cada cristão reconhece na mensagem cristã um desafio à sabedoria convencional do mundo, um chamado a nadar contra os valores tomados como certos pela sociedade e pela cultura. Nisso concordam Leonardo Boff e os membros da Igreja Batista de Westboro, C. S. Lewis e o papa Francesco, os calvinistas do Mackenzie e o Ricardo Gondim.

Cristãos de direita e de esquerda discordam apenas a respeito de qual aspecto da cultura deve ser continuamente desafiado e desarmado. Para a direita, Deus quer um mundo em que todos os justos possam ser ricos. Para a esquerda, Deus quer um mundo em que nenhum rico possa ser chamado de justo.

Este pode ser um daqueles casos em que só um lado está certo2.


NOTAS The Web of Government (1947), citado por Seymour Martin Lipset em Political man: the social bases of politics (1960). [↩] Pessoalmente, embora simpatize com todas as simpatias da esquerda, é sabido que meu cinismo com relação a qualquer solução política para o estabelecimento da justiça não conhece limites (sobre isso leia, por exemplo, Capitalismo, socialismo, alienação e o capeta). O movimento cristão original, com qual simpatizo profundamente, tomou a sensata decisão de ignorar por completo a política (uma decisão ela mesma cheia de consequências políticas), escolhendo transformar o mundo de baixo para cima, um momento de cada vez. Que o seu reino venha.

Paulo Bravo via Bacia das Almas (recomendadissimo!)

Comentário de Hermes C. Fernandes -> Apesar de não me identificar com nenhuma ideologia em particular, achei por bem postar este artigo para elucidar a diferença entre ambas, bem como revelar a origem desta distinção. 

2 comentários:

  1. Anônimo1:34 PM

    Eita! Grande texto. Finalmente alguém semialfabetizado e amatutado como eu vai poder chegar a compreensão do que seja direita e esquerda. E estou quase "tentado a ser de esquerda". :)

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  2. Com todo o respeito, o desfecho do texto apresentou uma dicotomia reducionista quanto a bem querência do todo Poderoso. Avalio que, em algumas prédicas exaradas pelo Senhor Jesus nos evangelhos, encontraremos elementos conceituais propositadamente dissuasivos: . Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra. João 8.7. Colidindo frente ao rito padrão . Já em outra oportunidade e em comum acordo ao sistema instituído; confrontando o ideário beligerante: Dai a César o que é de César. MT.22.21. A regra era sempre incitar para além da linearidade da nossa percepção.

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