Por Hermes C. Fernandes
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Por que há tanta resistência quanto à inclusão dos homossexuais nos círculos cristãos? Sem dúvida, uma das razões é a associação equivocada entre a homossexualidade e o pecado de Sodoma e Gomorra.
Proponho que examinemos fria e honestamente os textos bíblicos para
sabermos exatamente do que se trata o tal pecado que, de tão grave, levou Deus
a destruir aquelas cidades.
O episódio paradigmático envolvendo os morados de Sodoma se encontra narrado em Gênesis 19:1-11.
“E vieram os dois anjos a Sodoma à tarde, e estava Ló assentado à porta de Sodoma; e vendo-os Ló, levantou-se ao seu encontro e inclinou-se com o rosto à terra; e disse: Eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos, em casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os vossos pés; e de madrugada vos levantareis e ireis vosso caminho. E eles disseram: Não, antes na rua passaremos a noite. E porfiou com eles muito, e vieram com ele, e entraram em sua casa; e fez-lhes banquete, e cozeu bolos sem levedura, e comeram. E antes que se deitassem, cercaram a casa, os homens daquela cidade, os homens de Sodoma, desde o moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros. E chamaram a Ló, e disseram-lhe: Onde estão os homens que a ti vieram nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos. Então saiu Ló a eles à porta, e fechou a porta atrás de si, e disse: Meus irmãos, rogo-vos que não façais mal; eis aqui, duas filhas tenho, que ainda não conheceram homens; fora vo-las trarei, e fareis delas como bom for aos vossos olhos; somente nada façais a estes homens, porque por isso vieram à sombra do meu telhado. Eles, porém, disseram: Sai daí. Disseram mais: Como estrangeiro este indivíduo veio aqui habitar, e quereria ser juiz em tudo? Agora te faremos mais mal a ti do que a eles. E arremessaram-se sobre o homem, sobre Ló, e aproximaram-se para arrombar a porta. Aqueles homens porém estenderam as suas mãos e fizeram entrar a Ló consigo na casa, e fecharam a porta; e feriram de cegueira os homens que estavam à porta da casa, desde o menor até ao maior, de maneira que se cansaram para achar a porta.”
Haveria no texto alguma menção à homossexualidade? A resposta é não. Seria mais honesto afirmar que o que aqueles homens se propunham a cometer era um estupro coletivo. Era a maneira de humilhá-los e dizer que os forasteiros não eram bem-vindos ali. Uma cidade próspera como a de Sodoma costumava chamar a atenção de outros povos que poderiam eventualmente invadi-las. É plausível supor que os anjos foram tidos como espiões. Estuprá-los seria como enviar um recado a quem os teria enviado.
Se tais homens fossem homossexuais, não faria qualquer sentido Ló oferecer suas próprias filhas para poupar os anjos.
Um dos princípios básicos da exegese bíblica é que a própria Bíblia deve interpretar a Bíblia. Em outras palavras, um texto obscuro deve ser examinado à luz de outros textos bíblicos.
Qual teria sido o pecado de Sodoma e Gomorra à luz de algum outro texto bíblico?
De acordo com o profeta Ezequiel, o pecado
que foi a “gota d’água” que deflagrou o juízo divino sobre Sodoma e Gomorra não
tinha qualquer conotação sexual. Ei-lo:
“Ora, foi esta a maldade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado. Elas se ensoberbeceram, e fizeram abominação diante de mim; pelo que, ao ver isso, tirei-as do seu lugar.” Ezequiel 16:49-50
Vamos enumerá-los?
·
Soberba
·
Fartura de pão (sem
a disposição de reparti-lo)
·
Abundância de
ociosidade
· Nunca ter amparado o pobre e o necessitado (falta de hospitalidade)
E aí? Alguma menção à prática homossexual? Zero!
Ora, de onde, então, teria vindo tal associação? Por que Paulo inclui “sodomitas” em sua lista de quem não herdará o reino de Deus?
“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o Reino de Deus.”1 Coríntios 6:9-10
O que ele queria dizer com “sodomitas”?
Na litas de 1 Timóteo 1:8-11 ele inclui novamente os “sodomitas.”
“Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa legitimamente; sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros, e para o que for contrário à sã doutrina, conforme o evangelho da glória de Deus bem-aventurado, que me foi confiado.” 1 Timóteo 1:8-11
O termo grego arsenokoitai traduzido como “sodomita” só passou a se referir à prática homossexual a partir da Alta Idade Média. Anteriormente, era considerado um termo um tanto quanto obscuro, não encontrado em nenhuma outra literatura grega. Alguns estudiosos consideram que Paulo fez uso de um neologismo para tratar dos prostitutos cultuais que ofereciam seus préstimos sexuais em honra às divindades do panteão romano.
Pedro faz referência direta a Sodoma e Gomorra em sua segunda epístola, comparando o seu pecado com o praticado por aqueles que se locupletam da fé ingênua das pessoas por pura ganância.
“E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade. E por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas; sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição não dormita. Porque, se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no inferno, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo; e não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé, a oitava pessoa, o pregoeiro da justiça, ao trazer o dilúvio sobre o mundo dos ímpios; e condenou à destruição as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinza, e pondo-as para exemplo aos que vivessem impiamente; e livrou o justo Ló, enfadado da vida dissoluta dos homens abomináveis (Porque este justo, habitando entre eles, afligia todos os dias a sua alma justa, por isso via e ouvia sobre as suas obras injustas).” 2 Pedro 2:1-8
À luz deste
texto, podemos afirmar que sodomia é o que muitos líderes religiosos têm
praticado de seus púlpitos, explorando sem nó nem piedade a credulidade do seu
povo, extorquindo, cometendo assédio moral, ameaçando, e ainda por cima, em
nome de Deus.
Provavelmente, o
único texto do Novo Testamento que parece sugerir que o pecado de Sodoma e
Gomorra tinha conotação sexual seja Judas 1:7:
“Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades
circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após
outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.”
Neste texto,
Judas faz uma correlação entre o pecado dos habitantes de Sodoma e o pecado
cometido pelos anjos registrado em Gênesis 6:
“Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram (...) Havia naqueles dias gigantes na terra (Nefilins, raça híbrida); e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.”Gênesis 6:2-4
Tanto estes,
quanto aqueles, entregaram-se à fornicação indo “após outra carne.” No caso dos
anjos, deixaram-se seduzir pela beleza das mulheres, envolvendo-se sexualmente
com elas. No caso dos moradores de Sodoma, intentaram estuprar coletivamente os
anjos hospedados na casa de Ló. Portanto, não se trata de relação sexual entre
pessoas do mesmo gênero sexual, mas entre espécies totalmente diferentes, anjos
e homens.
Concluímos,
então, que o pecado pelo qual Deus julgou a Sodoma não foi de ordem moral, mas
social. O estupro coletivo proposto pelos homens era apenas uma maneira de
realçar a sua suposta superioridade com relação aos forasteiros, mesmo sendo
estes seres angelicais.
Fico-me a me
perguntar se nossas igrejas não estariam incorrendo no mesmo pecado ao insistir
na manutenção da exclusão dos homossexuais. Em vez de acolhê-los como Ló fez
aos anjos, preferimos expulsá-los. Não seria isso uma espécie de “estupro
social”?
Voltando a Ezequiel 16:49-50, convém reparar
que aquela palavra profética veio como advertência ao povo de Jerusalém, a quem
Deus se dirige como “irmã” de Sodoma. Embora aquele povo tenha se degradado moralmente,
a ponto de tentar molestar os visitantes celestiais, o que mais aborreceu a
Deus foram os pecados de ordem social. Talvez sua promiscuidade fosse apenas um dos sintomas de sua
degeneração.
Do ponto de
vista material, Sodoma era uma sociedade em franca ascendência, a ponto de
atrair imigrantes como Ló e sua família. Porém, da perspectiva espiritual,
Sodoma era uma sociedade miserável, atolada na soberba e no egoísmo.
Não há nada de
intrinsecamente errado em ser próspero. Não foi disso que Deus a acusou. Seu
erro era não saber compartilhar com os mais pobres e necessitados. Imagino que
uns poucos acumulavam a maior parte da riqueza gerada por aquela sociedade, e a
maioria, soma de todas as minorias, era desprezada e excluída do bolo. Deus não
poderia fazer vista grossa àquilo.
Nem mesmo a
intercessão de Abraão foi capaz de impedir que o juízo de Deus golpeasse a
arrogância de seus habitantes.
Sodoma e sua
irmã siamesa, Gomorra, entraram para história como arquétipos de sociedades
fadadas a serem consumidas pelo ardor do zelo divino.
Séculos se
passaram, e agora Deus tratava de julgar Seu próprio povo. Jerusalém que se via
como a cidade santa do grande Rei, povo exclusivo, também se degenerara e
seguia a passos largos para um fim semelhante ao de Sodoma. Para que se
sentisse bem consigo mesma, Jerusalém tinha como referência de iniquidade duas
outras sociedades, uma separada pelo tempo e a outro pelo espaço. Sodoma já não
existia há vários séculos. Era apenas uma referência histórica. Mas bem perto
dali, havia outra cidade reputada pelos moradores de Jerusalém como merecedora
do juízo divino. Refiro-me à Samaria, nova capital de Israel, o reino do norte.
No imaginário popular, Samaria era símbolo de perversão, de impureza, de
injustiça. “Não somos como eles!”, diria um judeu daquele tempo.
Deus, então, resolve tocar em sua maior
ferida: o orgulho:
“Samaria não cometeu metade de teus pecados.
Multiplicaste as tuas abominações mais do que elas, e justificaste a tuas
irmãs, com todas as abominações que fizeste. Sofre a tua vergonha, tu que
julgaste a tuas irmãs, pelos teus pecados, que cometeste mais abomináveis do
que os delas; mais justas são do que tu. Envergonha-te logo também, e sofre a
tua vergonha, pois justificaste a tuas irmãs.” Ezequiel 16:51-52
Perto de vocês,
os pecados de Sodoma e Samaria são fichinhas! Vocês deveriam se
envergonhar! Comparadas a vocês, elas são justas! Era exatamente isso que
Deus estava dizendo.
Ezequiel não foi
o único profeta a tocar nesta ferida. Veja o que diz Jeremias:
“Porque maior é a iniquidade da filha do meu povo do
que o pecado de Sodoma, a qual foi subvertida como num momento, sem que mãos
lhe tocassem.” Lamentações 4:6
Chegou ao ponto
em que Jerusalém se tornou na réplica de Sodoma, ou mesmo na sua extensão.
Basta dizer que em Apocalipse lemos que a cidade onde Jesus fora crucificado “espiritualmente se chama Sodoma e Egito”
(Apocalipse 11:8). Triste quando nos tornamos naquilo que tanto combatemos.
Como bem disse Nietzsche: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para
não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o
abismo olha para você.”
Tenho a nítida
impressão de que a igreja cristã deste século está incorrendo no mesmo erro dos
moradores de Jerusalém. Achamo-nos tão santos, que sentimo-nos confortáveis em
julgar a degradação que há no mundo, seja de ordem moral ou social. Oramos como
aquele fariseu da parábola de Jesus, que ficava se comparando com o publicano
que orava ao seu lado, dizendo: Não sou como ele, Senhor!
Paulo já havia
detectado esta tendência na igreja dos coríntios, quando os repreendeu dizendo:
“Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade, e imoralidade tal, como
nem mesmo entre os gentios…” (1
Coríntios 5:1a). E aos crentes judeus em Roma, ele escreve: “Portanto, és inescusável quando
julgas, ó homem, quem quer que sejas, pois te condenas a ti mesmo naquilo em
que julgas a outro, porque tu que julgas, fazes o mesmo (…) Tu, ó homem, que
julgas os que fazem tais coisas, pensas que, fazendo-as tu, escaparás ao juízo
de Deus? (…) e confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas,
instruidor dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da
verdade na lei; tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu,
que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve
adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, roubas os templos? Tu, que te
glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Como está escrito, o
nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós” (Romanos
2:1,3,19-24).
Como a igreja
ousa apontar as mazelas do mundo, se ela mesma tem se tornado naquilo que tanto
condena? O fato de Deus insistir em fazer da igreja o cenário onde Sua
glória se manifesta só complica ainda mais as coisas para ela. Não significa
que Deus esteja endossando seus descaminhos.
“Diz o Senhor: Este povo se aproxima de mim com a sua
boca, e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim. O seu
temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em coisa aprendida por
rotina. Portanto continuarei a fazer
uma obra maravilhosa no meio deste povo, uma obra maravilhosa e um
assombro; a sabedoria dos seus sábios perecerá, e o entendimento dos seus
prudentes se esconderá. Ai dos que profundamente escondem do Senhor o seu propósito,
e fazem as suas obras às escuras, e dizem: Quem nos vê? E quem nos conhece? Vós
a tudo perverteis!” Isaías 29:14-16ª
Quando caminhou
entre os homens, Jesus escolheu Cafarnaum para morar e para ser cenário da
maioria dos Seus milagres. Antes que seus moradores se sentissem melhores do
que os de outras vilas, Jesus advertiu:
“E tu, Cafarnaum, que te ergues até aos céus, serás
abatida até aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os
prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje. Porém eu vos
digo que no dia do juízo haverá menos rigor para os de Sodoma, do que para ti.” Mateus 11:23-24
É claro que isso não significa que
Cafarnaum seria alvo de bolas de fogo vindas do céu, como ocorreu com Sodoma.
Porém, Deus não faria vista grossa para com seus pecados. Aquela geração que
presenciou tão grandes sinais seria julgada por Deus com rigor maior do que o
usado para com os habitantes de Sodoma. Tal rigor também se aplicaria a
qualquer sociedade que, em tendo a oportunidade de ouvir a verdade do
Evangelho, recusasse-a deliberadamente. Veja a advertência que Jesus faz ao
comissionar Seus discípulos:
“Quando entrardes numa cidade, e vos receberem, comei
do que vos oferecerem. Curai os enfermos que nela houver, e dizei-lhes: É chegado
a vós o reino de Deus. Mas quando entrardes numa cidade, e não vos receberem,
saindo por suas ruas, dizei: Até o pó que da vossa cidade se nos pegou
sacudimos sobre vós. Sabei, contudo, que já o reino de Deus é chegado a vós.
Digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para Sodoma do que para aquela
cidade.” Lucas 10:8-12
Cada geração e
cada sociedade serão avaliadas de acordo com a oportunidade que houver recebido
e o nível de conhecimento que houver alcançado. Este princípio está claro nas
palavras do próprio Cristo: “A
qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que muito se lhe confiou
muito mais se lhe pedirá” (Lucas
12:48b). Portanto, espera-se de nós bem mais do que se esperava de nossos avós.
Em plena era da informação, com todo o avanço científico que temos
experimentado, somos indesculpáveis. Qualquer preconceito verificado em
gerações anteriores pode ser justificado na falta de conhecimento. Mas este,
definitivamente, não é o nosso caso.
Em Lucas 11:32, Jesus
admoesta àquela geração, comparando sua postura ante àquilo que havia recebido,
com a postura dos ninivitas contemporâneos de Jonas: “Os homens de Nínive se levantarão
no juízo com esta geração, e a condenarão; pois se converteram com a pregação
de Jonas, e aqui está quem é maior do que Jonas.” Portanto, não somos
melhores por aquilo que recebemos, porém, seremos mais cobrados por
isso. No dia do juízo, quando Cristo assentar-se para julgar os homens,
todas as gerações convergirão diante d’Ele para prestar-Lhe contas. O que temos
feito com aquilo que temos recebido?
Antes de apontar
o dedo para os que se acham ‘fora da igreja’, como se fôssemos melhores do que
eles, lembremo-nos de que o juízo de Deus começa pela Sua própria casa (1 Pedro
4:17). Diante da luz, nossa pretensa santidade será exposta. Nossa vaidade
sucumbirá. Nossos argumentos serão calados.
O que nos torna
piores do que aqueles que julgamos ser os remanescentes de Sodoma é justamente
o fato de não nos importamos com eles. Para muitos de nós, só haveria esperança
caso um deles se tornassem um de nós. Que presunção a nossa, não?
Reduzimos o
evangelho a uma uniformização comportamental. Transformamos a boa nova em um
amontoado de regras. E assim, vacinamos o mundo contra a sua única esperança.
Há esperança para Sodoma?
Ora, se Sodoma
tornou-se arquétipo da sociedade humana como um todo, em franca decadência
moral, ética e social, haveria alguma esperança para ela?
Em Judas 1:7
lemos que Sodoma e Gomorra “foram
postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.” Seria isso sinônimo de total
desesperança? Como apagar um fogo eterno? Como impedir que toda uma
sociedade seja consumida por ele? Haveria alguma esperança para os habitantes
de Sodoma?
Primeiro,
precisamos descobrir a natureza deste “fogo”. Não se trata de fogo literal,
pois se fosse, ainda veríamos a fumaça de Sodoma e Gomorra. “Fogo” é uma
metáfora para a ira justa de Deus contra a iniquidade. Particularmente, prefiro
referir-me a isso como a indignação divina contra a injustiça. Este furor não
visa aniquilar, mas purificar. Quando diz que o fogo é eterno não está se
referindo à duração de suas chamas, mas à duração de seu efeito. O sábio
pregador de Eclesiastes afirma que “tudo
quanto Deus faz durará eternamente” (Eclesiastes
3:14). Nada que tenha sua origem em Deus foi feito para acabar. O fogo é eterno
porque tem sua origem em Deus, e seus efeitos são irreversíveis.
Isso, porém, não
significa que a ira de Deus permaneça sobre alguém ou sobre uma sociedade
eternamente. O salmista declara veementemente: “Porque a sua ira dura só um
momento” (Salmos
30:5). Em contrapartida, “a
sua misericórdia dura para sempre” (Salmos
106:1). Também lemos que “compassivo
e piedoso é o Senhor, lento para a cólera, e abundante em amor. Não repreenderá
perpetuamente, nem para sempre conservará a sua ira” (Salmos 103:8-9). Às vezes parece que
temos pregado o oposto disso, como se a ira de Deus durasse para sempre, enquanto
que a Sua misericórdia abrangesse apenas um curto espaço de tempo.
Como, então,
podemos explicar algumas passagens como as que se seguem?
“E outra vez
disseram: Aleluia! E a fumaça dela sobe para todo o sempre” (Apocalipse 19:3). Esta passagem fala do
juízo que desceria sobre a Grande Babilônia, nome pelo qual Jerusalém é
conhecida no livro de Apocalipse. No ano 70 d.C. a cidade foi sitiada, invadida
e incendiada pelo romanos. Dizer que sua fumaça subiria para sempre é uma
hipérbole que visa enfatizar o fim dramático que teria a cidade que rejeitara a
paz oferecida por Jesus. Não se pode fazer uma leitura literal do texto. Se
assim fosse, ainda veríamos a fumaça enegrecendo os céus da Palestina.
Noutra passagem
encontrada no livro de Isaías, lemos: “Nem
de noite nem de dia se apagará; para sempre a sua fumaça subirá; de geração em
geração será assolada; pelos séculos dos séculos ninguém passará por ela” (Isaías 34:10). Neste texto em
particular, Deus adverte às nações inimigas de Israel, entre elas, Edom. É dito
que seus ribeiros se transformariam em piche, e o seu pó em enxofre (v.9). Mais
uma vez estamos diante de uma hipérbole, figura de linguagem fartamente
encontrada nas profecias, sobretudo, na literatura apocalíptica dos judeus.
O próprio Jesus
fez uso desta linguagem, tão familiar aos Seus contemporâneos. Ele diz: “Vim lançar fogo na terra; e que
mais quero, se já está aceso?” (Lucas
12:49). Seria até cômico fazer uma leitura literal aqui. Imagine: Jesus, um
incendiário!
Mesmo o juízo
traz em seu bojo a misericórdia divina. Não confundamos “ira” com “ódio”, que é
o oposto de amor. Mesmo que esteja irado devido à injustiça que temos
praticado, Ele jamais deixou de nos amar. Ira tem a ver com a reação de Deus
ante a injustiça. Amor tem a ver com Sua essência. Uma coisa é o que Deus
sente, outra o que Ele é. Deus não é ira. Deus é Amor!
Nenhuma
sociedade está irremediavelmente perdida. Nem mesmo Sodoma, seja a de ontem, ou
a de hoje.
Retornando à
primeira passagem que consideramos nesta reflexão, encontramos uma inusitada
promessa:
“Todavia, farei
voltar os cativos delas; os cativos de Sodoma e suas filhas, os cativos de
Samaria e suas filhas, e os cativos do teu exílio entre elas, para que sofras a
tua vergonha, e sejas envergonhada por tudo o que fizeste, dando-lhes tu
consolação. Quando tuas irmãs, Sodoma e suas filhas, tornarem ao seu primeiro
estado, e Samaria e suas filhas tornarem ao seu primeiro estado, também e tuas
filhas tornareis ao vosso primeiro estado. Nem mesmo Sodoma, tua irmã, foi
mencionada pela tua boca, no dia das tuas soberbas.” Ezequiel
16:53-56
Quem diria que
um dia até Sodoma seria restaurada, voltando ao seu primeiro estado? A execução
da ira divina tem seu papel redentivo. Mas quem tem a última palavra é sempre a
misericórdia. Por isso Tiago declara: “A
misericórdia triunfa sobre o juízo!” (Tiago
2:13b).
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