terça-feira, agosto 18, 2020

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O DIA EM QUE SOFRI ABUSO DENTRO DA IGREJA

 Por Hermes C. Fernandes

Revoltante ler alguns comentários acerca da menina de dez anos estuprada por seu tio desde os seis. Houve quem a culpabilizasse por jamais ter contado a seus pais, insinuando que ela pudesse estar gostando do que acontecia, chegando a usar sua aparente inocência para seduzir seu abusador. A crueldade de tais comentários me causou indignação, remetendo-me ao que eu mesmo sofri em minha infância.

Nunca me atrevi a falar sobre isso em redes sociais. Na verdade, guardei este segredo a vida inteira por me sentir culpado, envergonhado e receoso de que alguém pudesse me julgar. A primeira vez que relatei o abuso foi numa sessão de terapia há cerca de quatro anos. Aquilo foi libertador, como se uma tonelada fosse removida de meus ombros. Não faz muito tempo expus o fato à minha mãe. E hoje, dia 18 de agosto, quando completo 41 anos de batismo, resolvi expor minha dor aqui na esperança de que isso encoraje a muitos a fazerem o mesmo.

Numa domingo à tarde, durante o intervalo entre os cultos da manhã e da noite, eu, meus irmãos e algumas crianças estávamos dormindo em um dos quartos da igreja pastoreada por meu pai. Conosco estava um diácono a quem meu pai encarregara de tomar conta dos seus filhos. À época, morávamos distante da igreja, e por isso, passávamos o domingo inteiro lá. Minha mãe geralmente saía para evangelizar em algum hospital. Meu pai se ocupava de dar gabinete pastoral aos fiéis. Aquele diácono vinha de uma família tradicional e influente das Assembleias de Deus do Campo de São Cristóvão. Não tenho dúvida de que meu pai confiasse nele cegamente a ponto de nos deixar sob sua custódia. Além do mais, ele era um homem de oração acima de qualquer suspeita. Sua aparência não inspirava qualquer ameaça. Além de gaguejar e falar cuspindo, sua pele escamava e usava óculos fundo-de-garrafa.

Lembro-me de acordar repentinamente e flagrá-lo com seu membro fora da calça como se quisesse exibi-lo. Olhei à minha volta e me certifiquei de que meus irmãos e algumas outras crianças que nos acompanhavam estivessem dormindo em vez de estarem assistindo àquela cena bizarra. Eu era o irmão mais velho. Tinha apenas sete anos, enquanto os outros três tinham respectivamente seis, três e dois. Tive uma sensação horrível de tonteira. Fingi estar dormindo na esperança de que ele parasse. Mas não parou. Aproximando-se, encostou-se em mim. Fiquei paralisado. Meu coração disparou. Não sabia o que fazer. Tive medo de que alguém chegasse, visse aquela cena deplorável, contasse para o meu pai e ele me desse uma surra. Depois de alguns minutos, ele se recompôs.

Eu tinha apenas sete anos! Ele poderia ter feito o mesmo com meu irmão ou com minhas irmãs, mas por alguma razão, escolheu a mim.

Não fui o único a sofrer tal abuso. Outros garotos da igreja também o foram. Por sorte, ele não me estuprou. Porém outros garotos da igreja podem não ter tido a mesma sorte. Confesso que sentia nojo e pena dele. Pena porque ele sofria bullying dos obreiros devido à sua aparência. Mas nojo pelo que ele era capaz de fazer a uma criança como eu. Convém salientar que ele não era gay, mas um pedófilo e abusador de crianças. Ele não assediava os obreiros adultos, mas somente os garotos da igreja.

Como me arrependo de jamais haver contado ao meu pai. Quis poupa-lo da dor de saber que um filho seu sofreu este tipo de abuso. Como me arrependo de ter escondido isso por tanto tempo. O trauma me assombrou a vida toda. Carreguei uma ferida aberta no peito que até hoje ainda sangra, provocando dores dilacerantes em minha alma. Meus filhos e meus irmãos provavelmente devem estar tomando conhecimento disso através deste post. Não sei como reagirão. Mas sei que posso contar com sua solidariedade.

Soube recentemente que o diácono molestador faleceu. Como eu gostaria de tê-lo reencontrado já adulto para confronta-lo por todo o mal que fez a mim e certamente a tantos outros meninos!

Enquanto sofria o abuso, eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Só sabia que aquilo era errado.

Quero deixar claro que não culpo a meus pais pelo ocorrido. Eles sempre cuidaram de mim e de meus irmãos com esmero e muito amor. O abuso foi uma fatalidade que poderia ter ocorrido em outras circunstâncias.

Precisamos conversar abertamente com os nossos filhos.

Não podemos abrir mão da educação sexual nas escolas. Isso só interessaria aos molestadores. Não se trata de erotização infantil como alegam alguns, mas de alertar a nossos filhos para que saibam lidar com uma eventual tentativa de abuso, evitando-o e denunciando o molestador.

Muitos desses abusos ocorrem em igrejas, em escolas, e, principalmente, dentro de casa, protagonizados por membros da própria família.

Se você já foi vítima, não se cale. Quem abusou de você pode estar abusando de outros. Denunciar poderá impedir que continue em sua trajetória de abuso, acumulando vítimas.

O exemplo de duas pessoas me encorajou a fazer isso. O da apresentadora Xuxa Meneghel e o do humorista Marcelo Adnet. Se eles puderam se expor em rede nacional sem medo de serem julgados, por que eu não o faria?

Com lágrima nos olhos e esperança na alma.

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