sexta-feira, julho 31, 2020

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JESUS, O DONO DA BOCA!



Por Hermes C. Fernandes

“Levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram”, foi a resposta dada aos prantos por Maria Madalena aos anjos que a abordaram diante do túmulo vazio (João 20:13). Desde então, aqueles que se acham detentores da verdade o têm colocado nos mais inusitados lugares. Nos últimos anos, já o colocaram em slogan de campanha eleitoral, em fachada de edifícios comerciais transformados em igrejas, transformaram seu nome em propriedade intelectual, e por fim, como se não bastasse atribuir-lhe a propriedade do Brasil, picharam seu nome em muros e paredes de favelas do Rio de Janeiro. Não me refiro ao popular “Jesus salva”, ou ao “Só Jesus expulsa demônios das pessoas”, mas ao “Jesus é o dono da boca.” O que esta frase parece indicar? Seria meramente um jogo de palavras como o do cantor e pastor Waguinho (ex-pagodeiro) na canção em que coloca nos lábios do próprio Jesus “Eu sou o dono da boca”?  Ou ela indicaria algo além da convivência amistosa entre o tráfico de drogas e as igrejas evangélicas nos morros do Rio de Janeiro?

A julgar pelas últimas notícias, a convivência pacífica pode ter cedido à conveniência, que em alguns casos, beira a conivência.

Em plena pandemia, a quadrilha de um traficante de drogas tem invadindo comunidades na Zona Norte da cidade, para criar um novo complexo de favelas chamado de “Complexo de Israel”.
Para impor o seu domínio, o traficante que se diz evangélico, proíbe os moradores de praticarem qualquer outro credo, removendo símbolos católicos dos lugares públicos e ordenando o fechamento de centros de culto de matriz africana.

Peixão, como é conhecido, se intitula entre os criminosos como Arão, irmão de Moisés. Seu braço direito no crime se chama Jeremias, e sua quadrilha é chamada de “Tropa do Arão” e “exército do Deus vivo.” Os muros da região são pintados com versículos bíblicos, símbolos de peixes e bandeiras de Israel.

O traficante responde na Justiça por um ataque a um terreiro de candomblé, em abril de 2019, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O centro ficou destruído. O babalorixá e os filhos de santo foram expulsos da casa. No muro, os criminosos picharam: “Jesus é o dono do lugar”.

Como explicar este fenômeno sem apelar a um discurso elitista e hipócrita de combate às drogas?
Fato é que as igrejas mais presentes nessas comunidades são as pentecostais e as neopentecostais, cujo discurso sofre influência direta de movimentos evangélicos norte-americanos que apelam ao caráter mítico de Israel como o povo escolhido de Deus, e se inspiram em relatos bélicos tão presentes no Antigo Testamento. Pouco se fala sobre a graça, o perdão, o amor, a ética do reino de Deus, a justiça social, e outros temas tão caros ao evangelho. Mas fala-se muito de vitória contra os inimigos, conquista de territórios, prosperidade, etc.  Não quero aqui generalizar, tampouco desmerecer o importante trabalho que estas igrejas fazem nas comunidades, mesmo porque, sou filho e neto de pastores pentecostais que dedicaram suas vidas a levar o evangelho aos mais necessitados.

Muitos dos jovens integrantes dessas fações são oriundos de lares evangélicos. Mesmo no crime, mantêm o respeito e a reverência pela fé de seus pais. Alguns deles não vêem qualquer contradição entre o crime e o credo que dizem professar.

Por outro lado, há pastores que não se constrangem de receber dízimos e ofertas de quem vive da venda de entorpecentes e da prática de roubos e assaltos. Alguns se prontificam até a ungir armas e a consagrar “bocas de fumo” para que sejam cercadas e protegidas por anjos enviados por Deus. Pelo menos, eles têm a garantia de que ninguém vai mexer com a igreja, nem interferir em suas atividades.
Cantores evangélicos de renome são convidados para se apresentarem em shows bancados pelo tráfico. Pastores são convidados a falar e a orar durante bailes funks. Tudo na mais “perfeita paz”.
Muitos dos integrantes dessas facções acabam aderindo ao movimento evangélico, mas sem esboçar qualquer conversão genuína que os faça abandonar a prática criminosa. Quem se atreveria a confronta-los?

A lógica que permeia a relação entre o tráfico e a igreja evangélica é bem similar a que permeia a relação entre a igreja e a política. Se a igreja se promiscui com os poderes constituídos, por que não se promiscuiria com o poder paralelo? Se mega-igrejas se vendem por cargos, comissões e concessões de rádio e TV, o que impediria as igrejas da periferia a se venderem por proteção?
O “Jesus” que está sendo negociado no submundo da criminalidade é o mesmo que vem sendo negociado nos corredores do poder. Mas este, definitivamente, não é o Jesus buscado por Maria Madalena. “Ele não está mais aqui”, respondeu o anjo. “Ele ressuscitou!”

Jesus não cabe nos sepulcros caiados da religião cristã. Nem tampouco é levado de um lado para o outro, conforme os interesses de quem diz possuí-lo. Nem mesmo Maria Madalena conseguiu detê-lo. Seu lugar é à destra do Pai e no coração de todos que o buscam no outro, em quem Ele decidiu ser amado. Não há ideologia que O comporte. Não há dogmas que O confinem. Ele não está acima de tudo, mas no meio de nós. Acima apenas de nossas pretensões e presunções.

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