Por Hermes C. Fernandes
Um dos filmes que mais marcaram minha juventude foi “De volta para o futuro.” Até hoje, temas como viagens no tempo me provocam reflexões existenciais profundas. Numa das cenas mais dramáticas, McFly observa que seus irmãos começaram a desaparecer de uma foto que ele carregava consigo durante a sua viagem aos dias em que seus pais se conheceram. Sua intervenção involuntária na história teria impossibilitado que seus pais se encontrassem, alterando, assim, o futuro e colocando em risco sua própria existência e a de seus irmãos. Ciente disso, ele teria que arrumar um jeito de consertar a situação. Porém, quanto mais ele intervém na história, mais o futuro é modificado.
Quantas fotos seriam apagadas se lá atrás certos encontros não houvessem acontecido? Somos todos resultados de encontros e desencontros, de festas e tragédias, de prazeres e dores.
Na última viagem que fiz com meu pai antes de falecer, paramos diante de um barranco em Irupi, sua cidade natal; ele tirou do bolso um lenço e começou a secar suas lágrimas. Com a voz embargada, ele me disse: “Até hoje não sei por que meu pai me deu aquela surra? Eu era o único filho que o acompanhava na roça. Eu não merecia ter apanhado com o chicote que ele usava para amansar burro.” Reverentemente, eu me dirigi a ele e respondi: “Pai, o senhor jamais saberá o porquê, mas acho que sei o ‘para quê’. O senhor já parou para pensar que se não fosse aquela surra, eu não estaria aqui ao seu lado agora? Eu nem sequer existiria. Graças a ela, o senhor decidiu sair de casa e se aventurar na cidade grande. Foi lá que o senhor conheceu minha mãe e se converteu ao evangelho.” Seus olhos brilharam. Agora, olhando em retrospectiva, as coisas começavam a fazer sentido.
Você já parou para pensar que sua existência se deve a uma cadeia de eventos? Se um único elo se rompesse, você jamais teria nascido. Lembro-me de ter ouvido alguém cujos pais haviam se separado, questionar: qual teria sido a razão de Deus ter permitido que se casassem, já que sabia que não permaneceriam casados? A resposta veio-me como que por insight: A razão foi a sua existência. Deus quis combinar elementos que haviam em ambos para constituir este ser sui generis que é você. Não me refiro apenas a elementos genéticos, mas também históricos, biográficos, existenciais, psíquicos, etc. Se você fosse filho de sua mãe com outro homem, ou de seu pai com outra mulher, você não seria você.
Que bom que até onde se sabe, o passado não pode ser alterado. Mas o futuro, sim. Pelo menos, do ponto de vista humano. Portanto, em momento algum você e seus irmãos correm o risco de desaparecerem de fotos. O máximo que pode acontecer é que, num surto de raiva, fotos serem rasgadas, desconsiderando assim toda uma história em comum. Mas não dá para simplesmente apagar alguém da nossa história.
Deixando de lado especulações sobre o tempo e o espaço, gostaria de sugerir aqui uma reflexão sobre como seria a vida se desaparecêssemos repentinamente.
Alguém se preocuparia em nos procurar? Teria você alguma importância dentro de sua própria família? Seus amigos sentiriam sua falta? Sua ausência seria lamentada ou celebrada?
Lembro-me de que em meados da década de 90 eu pastoreava uma pequena igreja no bairro de Marechal Hermes, zona norte do Rio. Por causa do trabalho social realizado por um frei agostiniano chamado Luciano, muitos mendigos eram atraídos para aquele bairro. Alguns deles se aconchegavam e passavam a noite sob a marquise da nossa igrejinha. Mas havia um que me chamava a atenção. Uma vez ao mês, ele pedia para tomar banho nas dependências da igreja. Minutos depois, lá estava ele, arrumado, penteado, como se pretendesse abandonar aquela vida de mendicância. Mas no outro dia, ele simplesmente se entregava novamente às ruas. Um dia resolvi chamá-lo para uma conversa. Ele me contou que era engenheiro agrônomo, e que havia desistido de tudo após flagrar sua esposa na cama com o seu melhor amigo. Mesmo vivendo nas ruas, uma vez ao mês ele se arrumava para ver seus filhos. Mas sem coragem de se aproximar, ele preferia ficar de longe, assistindo-os na entrada e na saída da escola. Perguntei-o, então, qual a razão de se arrumar para vê-los, se eles, de fato, não o viam. Ele me respondeu que era devido ao risco de que fosse flagrado naquele estado deplorável. O que mais lhe doía era perceber que a vida seguia seu curso, mesmo sem sua presença por perto. Se em algum momento ele se achava essencial, agora ele se percebia como absolutamente obsoleto.
Consideremos a vida de José, o carpinteiro de Nazaré. Sem mais, nem menos, sua jovem esposa se vê grávida sem que ao menos houvessem tido algum contato sexual. Já imaginou o que passou pela cabeça de José? Ele, provavelmente, um homem mais velho, experiente, talvez já o seu segundo relacionamento (alguns pesquisadores afirmam que ele era viúvo).Ela, uma jovem adolescente, ingênua, sonhadora. De repente, ela afirma ter recebido a visita de um ser angelical que lhe anunciou seu ventre conceberia o Filho de Deus. Como deve ter sido difícil para Maria ter que relatar tal experiência ao seu marido. Ela poderia estar inventando ou estar tentando encobrir um adultério ou até um estupro. Mas a índole de José era impressionantemente. No relato de Mateus, por ser justo, e não querer difamá-la, José intentou deixa-la secretamente. Foi necessário que um anjo, o mesmo que apareceu para sua esposa, se apresentasse em sonho para dissuadi-lo de fugir, convencendo-o de que aquela criança era gerada pelo Espírito Santo (Mateus 1:18-19).
Talvez ele pensasse que sumindo, os problemas também sumiriam. Talvez considerasse que sua presença poderia ser um problema, e sua ausência, a solução. Pelo menos, Maria seria poupada. Naquela época, o casamento judeu se dava em três etapas. Eles possivelmente estivessem na primeira ou na segunda etapa. Somente na terceira, o casal poderia desfrutar das benesses conjugais. Seria como se ele houvesse atravessado o sinal, forçado sua esposa, e, então, num desatino, resolvido fugir. Para todos os efeitos, ele arcaria com a culpa, mas não estaria ali para ser penalizado, nem para assistir à sua jovem esposa sendo culpabilizada.
O fato é que, os problemas não desaparecem quando a gente foge. Outros terão que arcar com eles.
José resolveu peitar a hipocrisia daquela sociedade, acolhendo sua mulher e o fruto do seu ventre. Se ele a denunciasse, ela seria apedrejada até a morte em conformidade com as penas previstas pela lei. O bem estar de Maria e da criança estava acima de sua própria reputação.
Deve ter dado um trabalhão deslocar-se de Nazaré para Belém com Maria prestes a dar a luz. Não havia nem mesmo um lugar descente onde pudessem se hospedar. Bem provavelmente coube a José aparar a criança ao nascer.
Como se não bastasse tudo isso, pouco depois do nascimento de Jesus, o mesmo anjo lhe apareceu em sonho orientando-o a tomar o menino e a sua mãe e fugir para o Egito, permanecendo naquela terra estranha até que Herodes, que procurava matar o menino, morresse. José deixou para trás toda uma vida, sua casa, sua oficina, seus clientes, para recomeçar em um lugar distante, de língua e costumes estranhos (Mateus 2:13-15).
Foi José quem ensinou a Jesus o ofício de carpintaria. Foi José quem o educou. Foi José quem o protegeu. De repente... José some. Não se ouve mais falar do pai de Jesus.
Durante o ministério de Jesus, lá estava Maria e seus irmãos. Mas onde estava José?
Durante Sua crucificação, lá estava Maria. Mas onde estava Seu pai terreno? Se ele estivesse ali, Jesus não teria designado a João, um dos Seus discípulos, para cuidar de Sua mãe depois de Sua partida. Que falta fazia José! Os estudiosos são praticamente unânimes em dizer que a esta altura José já havia falecido.
Enquanto os discípulos aguardavam a chegada do Espírito Santo, Maria estava com eles no cenáculo. Mas de José, nada se diz.
Como alguém tão importante na vida de Cristo poderia desaparecer assim das páginas do Novo Testamento?
Apesar de sua trajetória ter sido tão discreta, ela foi essencial no cumprimento de seu propósito e missão. Pode-se dizer que o destino do mundo esteve em seus ombros.
José não é meramente um figurante no presépio natalino. Ele é aquele a quem Deus confiou os cuidados do Seu próprio Filho.
A vida segue sem você.
Sem você, histórias prosseguirão. Situações terão o seu desfecho.
A vida se reorganizará.
As pessoas que você ama, e a quem você devotou sua existência, sobreviverão à sua partida.
Sinto em lhe dizer: você não é indispensável. Mas você é indesculpável se não aproveitar cada oportunidade que a vida lhe apresentar e não corresponder à confiança que lhe for depositada. Todos carregamos nos ombros o destino do mundo.
Cumprir nossa missão também é tornar-nos absolutamente dispensáveis. Amar nos impõe investir na emancipação de quem amamos para que nossa ausência não lhe seja um estorvo.
Desejo que o legado que você deixar sobreviva à falta que você talvez não faça. Pelo menos, não para todos.
Talvez, a ausência compulsória que esta quarentena nos impõe nos sirva como ensaio para a nossa ausência definitiva, a morte. E quando já não estivermos aqui, a chama que hoje arde em nosso peito seguirá ardendo no peito de alguém.
Que ao deixarmos esta vida, além do legado, do exemplo, de boas histórias, deixemos também saudade. Não por sermos indispensáveis pelo que fazemos, mas por sermos insubstituíveis pelo que somos.
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