Por Hermes C. Fernandes
Logo nas primeiras linhas da Bíblia, deparamo-nos com o Espírito de Deus pairando sobre a face das águas, como um pássaro que adeja o seu ninho, de onde a vida eclodiria. Ao longo de suas páginas, a água se apresenta como símbolo de vida, jamais como mercadoria.
Quando os filisteus quiseram sabotar a existência dos primeiros hebreus, entulharam os poços que haviam sido cavados nos dias de Abraão, restando a Isaque abri-los novamente, “e chamou-os pelos nomes que os chamara seu pai” (Gênesis 26:15-18). Aliás, esta era uma das táticas de guerra adotadas para inviabilizar a vida de seus adversários, como aconteceu no episódio em que Israel se levantou contra os moabitas, espalhando entulho em seus campos, entupindo suas fontes de água e cortando suas árvores (2 Reis 3:24-25). Tenho a impressão de que o Brasil esteja sob o comando de seus inimigos, que não só incentivam a queimada de nossas florestas, como também pretendem dificultar o acesso à água potável.
Inviabilizar o fornecimento de água a um povo é o mesmo que privar-lhe do direito de existir. A manutenção da vida humana depende tanto da água quanto do ar. Portanto, não se pode trata-los como meras mercadorias.
É lamentável constatar que em pleno século XXI, milhões de famílias brasileiras não tenham acesso a água potável, nem tampouco contam com coleta adequada e tratamento de esgoto, sobrecarregando nosso sistema de saúde e agravando a desigualdade social.
Qual seria a solução para isso?
Para o Senado, a solução se apresenta na Lei 4162/2019 , conhecida como o novo marco regulatório do saneamento, que facilita que o Estado contrate empresas privadas para gerirem o saneamento e os recursos hídricos brasileiros. A lei já aprovada pelo Senado, foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro com onze vetos.
A gestão seria feita no modelo jurídico de “Parceria Público Privada”, em que o Estado tutela o serviço da empresa. Mas não se enganem. A realidade é que o Estado que é bancado pelos nossos impostos assume os riscos, tendo que reembolsar a empresa em caso de prejuízo. Portanto, o povo entra como fiador disso tudo. Ao capital, fica garantido não apenas a exploração dos trabalhadores das empresas, mas também o dinheiro vindo do Estado.
É claro que ninguém está satisfeito com a precariedade atual do serviço no Brasil. Mas seria isso um bom argumento para entrega-lo à iniciativa privada? Ou será que nos esquecemos de que em 2016, o mesmo congresso aprovou uma lei que limita os gastos no setor público?
Seria como se os filisteus que entulharam nossos poços, agora nos alugassem a pá para reabri-los. Como é habitual no país, cria-se um problema para depois apresentar-se como solução. Os mesmos políticos cujas campanhas foram financiadas por grandes corporações, agora entregam nossas riquezas hídricas a estas corporações, depois de engessar o Estado para que não cumprisse seu dever. O responsável pela precariedade nos serviços de saneamento básico no país não é propriamente o modelo de gestão, e sim este neoliberalismo selvagem que enxerga em tudo uma oportunidade de lucrar, até mesmo com a miséria do nosso povo.
A privatização da água tem sido apresentada como um importante passo na modernização da gestão pública. A verdade, porém, é outra completamente diferente. Não foi à toa que cidades como Paris e Berlim resolveram reestatizar o serviço. Aliás, enquanto no Brasil de Guedes só se fala em privatizações, no mundo inteiro se vê um movimento contrário de reestatização de serviços de setores importantes como água, energia e transporte. E não estou me referindo a países socialistas, e sim a países considerados centrais dentro do sistema capitalista como EUA e Alemanha.
Quem não se lembra do papo entre Jesus e a mulher samaritana no poço de Jacó? Ao se oferecer para saciar-lhe a sede existencial com o que Ele chamou de água viva, Jesus ouviu daquela mulher: “Senhor, tu não tens com que tirá-la, e o poço é fundo. Onde tens a água viva?” (João 4:11). É claro que ela não entendia de que água Jesus estava falando, e não é este o ponto que quero salientar aqui. O fato é que de nada adiantaria ter o poço aberto, mas não ter instrumentos para acessar suas águas. É aí que o Estado entra. Uma coisa é pagar pelo serviço de fornecimento da água. Nada mais justo. Fazer com que a água chegue às nossas torneiras tem um custo. Cabe ao Estado promover este acesso que é um direito de todo cidadão. Outra coisa é pagar pela água como se fosse uma mercadoria como outra qualquer. Isso chega a soar como absurdo.
O Brasil, detentor de boa parte dos recursos hídricos do mundo, tem se tornado no centro de um debate sobre o controle da água, que se materializa na proposta de transformá-la numa grande mercadoria internacional, tornando-a, através de privatizações, num produto gerador de lucro e de especulação financeira com tarifas elevadas. É óbvio que os defensores desta proposta jamais deixariam isso claro. Em vez disso, recorrem a um discurso ambientalista, alegando uma eventual escassez da água, cuja culpa seria dividida entre o povo que a estaria usando de maneira pródiga, e a própria natureza.
Tudo isso não passa de manipulação da opinião pública, como tentaram fazer com a Petrobrás quando pretenderam privatizá-la. A mídia, em conluio com o que havia de mais perverso no cenário político nacional, tentou descontruir a imagem que os brasileiros tinham de sua maior empresa estatal. De motivo de orgulho, a Petrobrás se tornou em motivo de vergonha e constrangimento, seja pela corrupção nela instalada ou pelas sucessivas agressões ao meio ambiente através de vazamentos de óleo ao longo do litoral brasileiro.
A crise hídrica se deve preponderantemente às mudanças climáticas. E quem seriam os responsáveis por elas? Quem são os maiores desmatadores do mundo? Seria o povo ou as grandes corporações, as mesmas que a agora almejam fazer da água uma fonte de lucro? Quase 70% da água consumida no Brasil vai para megaprojetos de irrigação e outra grande parte para mineração. Alegar que esta crise se deve ao fato de o povo deixar a torneira aberta é desviar a atenção. Enquanto se capitaliza os lucros, se socializa a culpa e as responsabilidades.
O Brasil detém cerca de 30% das águas subterrâneas do mundo, incluindo dois dos maiores aquíferos do mundo (Alter do Chão e Guarani) e 12% de toda a água doce disponível no mundo. É claro que corporações como a Nestlé, a Coca-Cola, a Ambev, a Pepsico, que praticamente já destruíram fontes em outras partes do mundo, seja por contaminação, seja por desmatamento, têm grande interesse nesses recursos. Vamos entrega-los, assim, de mão beijada?
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que, em 2030, cerca de 3,9 bilhões de pessoas (metade da população do mundo), terão graves problemas de acesso a água. O que poderá ser agravado pelas mudanças climáticas, visto ser a água o primeiro elemento a sofrer com o seus devastadores efeitos.
Deveria haver por parte dos nossos dirigentes um esforço hercúleo e conjunto para que toda a população fosse devidamente atendida pelos serviços de fornecimento de água e saneamento básico. Um esforço como o dos pastores de Labão que se juntavam para remover a pedra que havia sobre a boca do poço, possibilitando que seus rebanhos fossem saciados. Ao ver que estes se demoravam a fazê-lo, já que esperavam a chegada de Raquel, a filha do patrão, para somar com eles, Jacó resolveu tomar a iniciativa, e sozinho removeu a grande pedra (Gênesis 29:2).
Quem dera houvesse entre os componentes da chamada bancada evangélica quem se prestasse a defender o direito de seu povo à água e ao saneamento básico. Em vez disso, preferem cruzar os braços à espera de Raquel, que no caso, representaria a iniciativa privada. O Estado, tal qual Jacó, deveria tomar para si a responsabilidade. Água é o que não falta. Só falta quem remova a pedra. Quem a torne acessível, sem querer lucrar em cima de um direito essencial.
A mesma Bíblia que começa com o Espírito pairando sobre a face das águas, termina com um convite feito por este mesmo Espírito. Mas Ele não o faz sozinho. A igreja, esposa de Cristo, faz coro com o mesmo: “Quem tem sede, venha; e quem quiser, tome de graça da água da vida” (Apocalipse 22:17).
Assim como a água da vida nos é oferecida gratuitamente por Jesus, devemos lutar para que a água, elemento fundamental à manutenção da vida, seja oferecida gratuitamente a todos, sem distinção. Seja ao morador dos condomínios luxuosos da Barra da Tijuca ou de Alphaville, seja ao morador das favelas e palafitas, bem como às comunidades ribeirinhas e sertanejas. Quem ninguém neste país pereça por falta de água. Se quem tem fome, tem pressa, imagina quem tem sede.
A igreja jamais deveria engrossar o coro de quem só deseja lucrar, explorando o seu povo. Pelo contrário, a igreja deve promover na sociedade a consciência de que há bens que devem ser acessíveis a todos.
A igreja deveria estar tão afinada com os anseios populares quanto estavam os valentes soldados de Davi que ao ouvirem seu suspiro por água enquanto se refugiava na caverna de Adulão, partiram de madrugada, invadiram sorrateiramente o arraial dos filisteus, para extraírem do poço que havia em Belém a água pela qual seu rei anelava (1 Crônicas 11:17-18).
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