segunda-feira, outubro 22, 2018

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AS VÁRIAS FACES DA MENTIRA



Por Hermes C. Fernandes

Em tempo de Fake News, precisamos urgentemente nos apegar à verdade. Mas o que é a verdade? Esta foi a pergunta que Pilatos fez a Cristo. Antes de ousar tentar responde-la, quero debruçar-me um pouco sobre uma questão relacionada a esta e que é de igual pertinência. O que é a mentira? Talvez se dermos conta de respondermos a esta questão, entenderemos, enfim, o que é a verdade, mesmo que seja por eliminação. O que não for mentira, logo, é a verdade, assim como o que não for trevas, só pode ser luz.
Todos concordamos que a mentira seja um pecado. Se preferir evitar termos religiosos, podemos classifica-la como um deslize ético e moral. Ninguém aceita ser enganado. Todos querem a verdade, mas poucos se dispõem a vivê-la, pagando o preço por sua sustentação.
Gosto da frase de George Orwell que diz: “Numa época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário.” Como ser verdadeiro em um mundo construído sobre mentiras? Dizer a verdade é insurgir-se contra tudo o que está aí. E para tal, tem-se que estar disposto a receber a sentença destinada aos rebeldes.
Atribui-se a Joseph Goebbels, o marqueteiro de Hitler, a frase “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.” Pelo jeito, os marqueteiros de alguns políticos rezam pela cartilha de Goebbels. Daí, a necessidade de massificar a mentira. E se possível, fazê-la ser espalhada por várias fontes diferentes, conferindo-lhe certa credibilidade. A preguiça de alguns, somada à má fé de outros, impedem que as fontes sejam devidamente checadas. Caso seja desmentido o fato, o estrago já estará feito. E a culpa é terceirizada. Dizem cinicamente: “Vendi o peixe pelo preço que comprei. Não inventei nada. Apenas repassei.” Não seria isso o que o apóstolo Paulo condena em sua epístola aos Efésios?: “Não sejais cúmplices das obras infrutuosas das trevas, antes, porém, condenai-as” (Efésios 5:11).
Não confunda verdade com verossimilhança. Algo pode ser verossímil sem ser verdadeiro. Chama-se verossimilhança o atributo daquilo que parece intuitivamente verdadeiro, isto é, o que é atribuído a uma realidade portadora de uma aparência ou de uma probabilidade de verdade, na relação ambígua que se estabelece entre imagem e ideia. É o tal do “parece, mas não é.” Tinha tudo para ser, mas não é. Faz sentido, mas não é. É coerente, mas não é.
Mas não se enganem! Há diversas maneiras de se mentir, e algumas delas passam despercebidas. Há, por exemplo, a distorção dos fatos. Inescrupulosamente, toma-se um fato verdadeiro, transmitindo-o de maneira distorcida, seja exagerando, ou mesmo, atenuando. Por vezes, recorre-se à ironia ou ao sarcasmo para descredibilizar a verdade. A mesma frase pode ser verdadeira ou mentirosa de acordo com o tom de voz usado. E assim, o cínico escapa da acusação de ser mentiroso. Doutras vezes, recorre-se à insinuação com o objetivo de levantarem-se suspeitas. Fato é que, às vezes ficamos tão obcecados em encontrar indícios que nos levem à verdade, que nem percebemos o óbvio. No fundo, o que nos interessa não é a verdade em si, mas apenas a comprovação de nossas suspeitas. Achamos que podemos decifrar as entrelinhas sem nem ao menos nos dar o trabalho de ler o que está claramente escrito nas próprias linhas. Obviedades não nos apetecem! Queremos ter razão, ainda que custe a desgraça e a reputação alheias.
Entender o que diz uma frase isolada é bem diferente de compreender a mensagem que o texto ou o discurso inteiro pretende transmitir. Há que se prestar atenção não apenas nas palavras, mas nos sinais, nas vírgulas, nos espaços e, sobretudo, nos sentimentos que o texto ou a fala pretenda nos despertar. Uma frase pinçada do contexto pode distorcer o sentido que se pretendia dar.
Dentre todos os truques usados para suprimir a verdade, um dos mais perversos é aquele em que se recorre à verdade para enganar. É a mentira se vestindo de verdade para esconder suas verdadeiras intenções. E ainda que os fatos narrados sejam verídicos, o intuito de quem os narra é pernicioso. Digamos que haja verdade ali, porém, não sinceridade. Verdade sem sinceridade tem um poder tão destrutivo quanto a mentira. Não era à toa que Jesus costumava dizer "em verdade, em verdade vos digo..." (algo como: "É na verdade que vos digo a verdade"). Não basta dizer a verdade. A verdade tem que ser dita em verdade. E mais: deve ser dita em amor, com a intenção de edificar, nunca de destruir. Por isso, Paulo diz que devemos seguir a verdade em amor (Efésios 4:15). Qualquer verdade que não seja falada "em amor" é potencialmente destrutiva e demonstra total falta de respeito à sua audiência. Por essas e outras que a igreja vai perdendo sua pertinência e relevância, caindo em total descrédito junto à sociedade.
A mentira jamais provém da verdade (1 João 2:21). Mas muitas vezes, ela se exibe com a capa da verdade a fim de ludibriar os incautos. Como uma das bestas do Apocalipse, ela tem cara de cordeiro, mas voz de dragão. Até a verdade em sua boca é mentirosa, pois carrega a inconfessável intenção de enganar.
Se você usa uma verdade para chantagear, obter vantagens, difamar e ameaçar, o que você tem não é a verdade propriamente, mas apenas informações que podem estar distorcidas, desencontradas, equivocadas, exageradas, adulteradas, mal interpretadas. A verdade não serve a outra coisa que não seja libertar. Certas “verdades” escondem intenções inconfessáveis que à seu tempo são relevadas.
Há, ainda, outro truque fartamente usado pelos mentirosos de plantão. Usam-se verdades periféricas para ofuscar a verdade central. Tais verdades periféricas são como bois de piranha que visam distrair o cardume enquanto a boiada passa incólume do outro lado. É o recurso geralmente usado pelos ilusionistas.
Há pseudoverdades que partem de uma premissa verdadeira, contudo, sua conclusão é equivocada. Entretanto, constrói-se uma linha de raciocínio tão sofisticada e elaborada, que quem ouve não consegue detectar o engodo. Se remover a pedra fundamental, o edifício inteiro vem a baixo.
Há que se ter cuidado para não confundir mentira com uma versão alternativa dos fatos. Pode-se enxergar uma verdade sob diversos ângulos, não significando que um deles seja necessariamente enganoso. Tratam-se, antes, de versões complementares que nos leva a uma visão tridimensional de um mesmo fato. Há, porém, versões antagônicas e excludentes. Isto é, se uma estiver correta, a outra só pode estar errada.
E quanto à omissão? Seria correto igualá-la à mentira?
Consideremos que haja pelo menos três tipos de omissão:
1 – Aquele em que a verdade é omitida de quem tem o direito de sabê-la. Este tipo de omissão é irmã gêmea da mentira. Seu propósito é tão somente o de enganar, sendo, portanto, o mesmo propósito da mentira. Paulo nos adverte quanto a ela: “Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça” (Romanos 1:18).
2 – O segundo tipo de omissão é aquele em que a verdade é omitida de quem não tem nada ver com o fato, e que, portanto, não é de sua conta. Por exemplo: Jesus diz que a diferença entre servos e amigos é que o servo não sabe o que faz o seu senhor (João 15:15). Logo, ele não pode cobrar que seu senhor lhe preste contas de verdades que não são de sua alçada. Jesus tinha doze discípulos, mas somente três testemunharam tanto a Sua transfiguração no monte, quanto a Sua desfiguração no Getsêmane, e ainda ouviram d’Ele o desabafo de que Sua alma estava triste até a morte. Certamente, os outros nove não estão prontos para vê-lo rasgar o coração desta maneira. Ninguém deve se intrometer na vida alheia, cobrando que se lhe revele situações que não lhe interessam. Logo, tal tipo de omissão é plenamente justificável. Paulo nos admoesta sobre aqueles a quem chama de “falsos irmãos” que se intrometem na vida alheia e gostam de espiar a nossa liberdade (Gálatas 2:4). Ninguém tem o direito de cobrar a exposição de nossa vida privada. “Honroso é para o homem desviar-se de questões, mas todo tolo é intrometido” (Provérbios 20:3). O papel da verdade não é matar a nossa curiosidade, mas nos libertar, sem que isso torne ninguém refém de nossas presunções.
3 – Há ainda um terceiro de tipo de omissão que é a momentânea, que respeita as limitações emocionais e intelectuais do outro, de modo que optar por esperar a hora certa de revelar-lhe toda a verdade. O melhor exemplo disso é o próprio Jesus. Ele diz aos Seus discípulos que havia muita coisa para revelar, mas que eles ainda não podiam suportar (João 16:12).
No caso das fake News espalhadas pela campanha de Bolsonaro, um líder comprometido com a verdade não pode se omitir, pois o povo tem o direito de saber a verdade, uma vez que é o povo quem sai lesado, por ter seu discernimento prejudicado na hora de votar.
Se o Diabo é o pai da mentira, quem a adota é seu padrasto e quem a divulga é seu enteado (João 8:44).

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