segunda-feira, julho 10, 2017

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Ossos Expostos - O passo a passo do processo de restauração de tudo



Por Hermes C. Fernandes

"Aonde tenha sol, é pra lá que eu vou..." diz o refrão de uma das mais conhecidas canções da banda mineira Jota Quest. Seu estrondoso sucesso se deve ao fato de que todos queremos estar onde coisas boas acontecem. Sonhamos com cenários paradisíacos, onde impere a harmonia, reminiscências do jardim de onde nossos ancestrais foram excluídos. Todavia, vemo-nos inseridos numa realidade cruel, marcada pela injustiça e o desamor. Sentimo-nos deslocados e desolados. Definitivamente, não é este o lugar onde gostaríamos de estar. Assim como Davi, preferimos ser conduzidos aos pastos verdejantes e às águas tranquilas, mas nos esquecemos de que entre um e outros, às vezes fazemos escalas demoradas em vales nos quais se projeta a sombra da morte.

O profeta Ezequiel nos narra uma experiência mística em foi arrebatado pelo Espírito de Deus e colocado no meio de um vale cheio de ossos secos.[1] Não levando em conta o cenário de horror e o odor insuportável, Deus o fez andar ao redor dele.[2] Qualquer vista seria melhor que aquela. 

Qualquer lugar do mundo seria melhor para se estar do que aquele. Diferentemente de um cemitério onde restos mortais se escondem sob a terra, Ezequiel teve que caminhar entre ossos expostos na superfície do vale. Não deve ter sido tarefa fácil passear entre eles. Porém, era necessário para que pudesse constatar seu estado. Uma coisa é ouvir falar, outra bem diferente é averiguar uma situação com seus próprios olhos.

A primeira constatação feita por Ezequiel foi de caráter quantitativo. Os ossos eram numerosos. Não era algo pontual, mas generalizado. A segunda constatação foi de caráter qualitativo: os ossos estavam sequíssimos. O que indica que já estivessem ali há muito tempo. Não se tratava de algo recente, ocorrido subitamente. Mas de um fenômeno que demandou tempo para ser processado.  Um número tão grande de ossos não chegaria àquele estado de uma hora para outra.

Outro dado importante é que esses ossos estavam espalhados “sobre a face do vale”, isto é, expostos, e não enterrados como era de se esperar. O que sugere que não receberam as devidas honras, mas abandonados a relento. Possivelmente, aquele vale havia sido cenário de uma batalha épica que resultou na morte de milhares de soldados.

Sem entender direito a razão de haver sido transportado àquele lugar, o profeta ouve de Deus a inquietante pergunta: “Filho do homem, poderão viver estes ossos?” Nenhuma outra resposta parecia plausível senão a que deu: “Senhor Deus, tu o sabes.”[3] Ele não se atreveria a responder de maneira diferente. Às vezes, a melhor resposta é a admissão de nossa ignorância. Ninguém é obrigado a saber tudo. O único que conhece todas as respostas e possibilidades é Deus.

Longe de considerar aquela resposta evasiva, Deus lhe dá uma ordem para que profetizasse sobre aqueles ossos: “Ouvi a Palavra do Senhor!”

O que é capaz de mudar a realidade à nossa volta não é a nossa vontade, mas a Palavra do Senhor. Somente um Deus que não muda pode perfeitamente mudar todas as coisas. Não há quadro que se mostre irreversível ante a Sua soberana vontade. Todavia, Sua vontade é revelada em Sua Palavra, e esta, por sua vez, deve ser expressa por lábios que se disponibilizem a tal. Seus lábios são a fonte, os nossos são os canais. O que sai de Sua boca deve encontrar eco em nossa boca e em nosso coração.

“Assim diz o Senhor Deus a estes ossos.”[4] Deus não lança palavras ao vento. Sua Palavra é direcionada a uma situação em particular e não generalizada. “Farei entrar em vós o espírito, e vivereis”.  Logo de início, Ele revela o fim, o objetivo final daquela Palavra: gerar vida. Ele poderia ter feito isso num piscar de olhos, isto é, instantaneamente. Todavia, Deus prefere o processo. Para se alcançar o objetivo anunciado, faz-se necessário passar por várias etapas. Assim como a deterioração é um processo, a restauração também o é. Por isso, logo após anunciar o fim, Ele anuncia também cada etapa do processo desencadeado pela Sua Palavra:

“Porei nervos sobre vós...” [5]A restauração começa pela percepção. É através dos filamentos nervosos que nossos sentidos captam os dados fornecidos pela realidade e abastece nossa mente. Sem esta etapa do processo, tornamo-nos apáticos, alienados, completamente alheios ao que acontece à nossa volta.

“Farei crescer carne sobre vós...” A restauração passa pela disposição. Sem a força necessária, não podemos responder à altura as demandas da realidade que nos são transmitidas pela nossa percepção.

“E sobre vós estenderei pele.” Trata-se daquilo que se exterioriza, que é visto por todos, que sai da subjetividade em direção à objetividade: nossas ações!

Apesar de o fim ter sido anunciado desde o início, há um alvo para além do alvo, um objetivo que transcende o objetivo anunciado: “Então sabereis que eu sou o Senhor.” Trazer vida é o fim; produzir consciência é o fim para além do fim. Eu diria que este é o fim supremo.

 “Portanto”, declara Ezequiel, “profetizei como me foi ordenado. Enquanto eu profetizava houve um ruído, um barulho, e os ossos se ajuntaram, cada osso ao seu osso.” Assim como há um fim para além do fim, há um início antes mesmo do início. Há algo que precisa ocorrer para que o processo seja deflagrado. Cada osso deve encontrar o seu lugar junto a outro osso. Não surgirá pele sobre esqueletos sem carne. Não haverá carne sem que os filamentos nervosos estejam estendidos por toda a extensão do corpo. E não haverá nada disso sobre ossos desconjuntados.  Mas há um efeito colateral que trará certo desconforto aos que assistirem à cena: para que os ossos sejam reunidos, o barulho será inevitável.  E cá entre nós, costuma ser ensurdecedor. Se os ossos não estivessem expostos “na face do vale”, mas enterrados, certamente não haveria barulho. Porém, a dificuldade para que encontrassem seus respectivos encaixes seria ainda maior. Apesar do desconforto da exposição, às vezes ela acaba por facilitar o processo.

“Olhei, e vieram nervos sobre eles, e cresceu a carne, e estendeu-se a pele sobre eles, mas não havia neles espírito.” [6] Não basta que haja percepção, disposição e atitude se não houver propósito. O propósito produzirá a motivação necessária. O “espírito” é o que unifica todas as coisas e as coloca em perspectiva. O espírito é o agente revelador do propósito. Sem que haja espírito, não há consciência, sem que haja consciência, não há desígnio, não há propósito. Tudo ocorre à revelia, desprovido de qualquer sentido.

“Então ele me disse: Profetiza ao espírito; profetiza, ó filho do homem, e dize ao espírito: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam.”[7] O espírito vem de todas as direções para nos apontar uma direção específica.  Ele não vem de uma para nos apontar várias. Deus parte do Todo para as partes e não das partes para o Todo. Há um propósito maior que abarca todos os demais. O que Ele almeja fazer em nossa vida está diretamente ligado ao que Ele está fazendo na vida dos demais. Tudo se conecta perfeitamente, dentro de uma misteriosa sincronicidade.

Ao profetizar como Deus ordenara, e não como ele quisera, algo inacreditável ocorreu diante dos seus atentos olhos: “O espírito entrou neles e viveram, e se puseram em pé, um exército grande em extremo.”[8] Deus está trabalhando na constituição de Seu poderoso exército espalhado por toda a terra, infiltrado em todas as esferas sociais, pronto a atender às Suas ordens e a executar os Seus desígnios. O caos atual que nos desafia os sentidos está grávido da ordem e da harmonia próprias do Reino de Deus. Em breve, o insuportável odor da morte que empesta o mundo se dissolverá ante a fragrância do bom perfume do amor de Cristo. A vida prevalecerá sobre a morte. O bem sobre o mal. O amor sobre o ódio. A justiça sobre a iniquidade. Quem viver verá. Quem morrer reviverá para ver a glória de Deus. 




[1] Ezequiel 37:1-10
[2] Verso 2
[3] Verso 3
[4] Verso 5
[5] Verso 6
[6] Verso 8
[7] Verso 9
[8] Verso 10

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