Por Hermes C. Fernandes
Havia sido um dia difícil. Jesus estava exaurido. Não adiantou tentar fugir da multidão ávida por milagres. Quando desembarcou do outro lado do mar de Tiberíades, surpreendeu-se por ver que o povo o seguira, rodeando o mar.
Já
entardecia, e Jesus não queria despedir aquele povo sem que antes fosse
alimentado. Seu receio era de que muitos desfalecessem pelo caminho, pois
estavam com ele desde muito cedo.
Virando-se
para Felipe, perguntou-lhe:
- Como vamos
fazer pra alimentar tanta gente? Onde compraremos pães suficientes?
Apesar de
saber exatamente o que faria, Jesus quis testar Seu discípulo, atribuindo-lhe a
posição de diretor de logística.
Imagino que
Felipe recorreu à tesouraria para saber quanto havia disponível em caixa. Judas
deve ter-lhe informado que só restaram duzentos denários.
Antes de
responder à pergunta do mestre, Felipe calculou que aquela quantia não seria
suficiente nem para garantir um mísero pedaço de pão para cada pessoa. Afinal, eram
cerca de cinco mil homens, fora mulheres e crianças. Estima-se que havia ali ao
menos quinze mil pessoas.
Ademais,
ainda que houvesse dinheiro suficiente no caixa, que padaria seria capaz de
atender a tal demanda em tão pouco tempo?
Talvez
Felipe tenha considerado argumentar com Jesus mais ou menos nesses termos:
- Senhor,
alimentar este povo não é responsabilidade nossa. O Senhor já os curou, os ensinou;
Sua missão está cumprida. É melhor despedi-los agora.
Vimo-nos diante
de uma importante questão: até onde vai a nossa responsabilidade como igreja para
com o mundo? Alguns dirão que nossa missão se limita a ‘povoar o céu’, salvar
almas, ensinar a sã doutrina, etc. Enquanto isso, o mundo segue faminto por
justiça.
A razão pela
qual evitamos qualquer envolvimento em questões de ordem social é sabermos o quão
oneroso é. Alimentar os famintos, vestir os desnudos, abrigar os sem-teto,
denunciar estruturas injustas, tudo isso tem um preço. Quem se dispõe a arcar
com ele?
A evasiva é
limitar a atuação da igreja à salvação da alma, isto é, garantir às pessoas uma
eternidade feliz.
Porém, a proposta
do Evangelho abarca o homem por inteiro. Tudo o que diz respeito ao ser humano,
suas demandas, seus anseios, devem estar dentro do escopo de nossa missão.
Fica bem mais
em conta a manutenção de nossos templos e programas. Gastamos vastas somas para garantir o conforto
dos fiéis. Construímos nossas suntuosas catedrais. Compramos equipamentos
cada vez mais sofisticados. Mas não nos importamos com o mundo à nossa volta.
A cada dia,
novas cracolândias surgem debaixo do nosso nariz. Mas isso não é da nossa
conta...
Mães
solteiras são abandonadas com os seus filhos... Elas que arquem com o ônus de
sua imoralidade!
Quanto será
necessário para que mudemos este quadro? Quanto temos em caixa atualmente? Quanto
das ofertas e dos dízimos que recolhemos será usado para atenuar a dor dos
nossos semelhantes?
Enquanto Felipe
fazia seus cálculos, outro discípulo, André, se mete no meio da multidão à
procura de alguém que fosse a resposta. André seria o que no mundo empresarial
chamamos de gerente de recursos humanos.
No meio de
tanta gente faminta, eis que surge um menino trazendo consigo uma lancheira. Sua
mãe, ao saber que passaria o dia fora, preparou-lhe uma merenda: cinco pãezinhos
e dois peixinhos. Assim mesmo, tudo no diminutivo.
André
imagina que aquele garoto poderia, no mínimo, disponibilizar parte do seu
lanche para saciar o mestre. Afinal, quem estaria mais faminto do que Ele depois
de atender a tanta gente?
O reino de
Deus não precisa de dinheiro, mas de gente. Não importa a faixa etária, a
etnia, o grau de instrução, ou a situação econômica. A única coisa que, de
fato, importa é que haja disposição e disponibilidade. Não adiante estar
disposto, mas não estar igualmente disponível, nem vice-versa.
Aquele
menino era a solução do problema.
Ao receber
de suas mãos o lanchinho que sua mãe lhe preparara, Jesus tomou-o, deu graças,
repartiu-o e deu aos Seus discípulos. Quando estes já iam levando à boca o seu
pedaço, Jesus os interrompe e diz: Agora é a vez de vocês repartirem com os
demais.
Quem disse
que Deus precisa de muito para fazer grandes coisas? Pelo contrário, Sua
especialidade é fazer coisas extraordinárias a partir daquilo que é considerado
ínfimo, insignificante.
O que não se
pode é multiplicar zero. Deus faz milagres, não mágica. Zero vez mil continua
sendo zero. Zero multiplicado por um trilhão ainda é zero. A única vez que Deus
fez alguma coisa a partir do nada foi na criação dos céus e da terra. A partir
daí, tudo o que Deus fez teve como ponto de partida algo que já existia.
A lógica
divina contraria a humana. Para que haja multiplicação, tem que haver divisão. Sem
partilha, tudo continua como é.
Não subestime
o que Deus lhe tem confiado. Ele sabe exatamente o que fazer para que isso seja
potencializado. Porém, para isso, é mister que confiemos às Suas mãos o que
temos recebido. Não apenas nossos recursos materiais, mas também intelectuais,
emocionais, espirituais, o que inclui nossas aptidões, dons, talentos, know how, experiências. E como confiamos
tais recursos a Ele? Quando os disponibilizamos para ser usado em favor do bem
comum. Nada do que Deus nos deu foi visando exclusivamente a nossa satisfação
pessoal. Nossa vocação primordial é a de ser bênção. E como é gratificante
saber que outros estão sendo beneficiados através do que Deus nos conferiu.
Depois de
alimentar à multidão, ainda sobraram doze cestos lotados de pães e peixes. Não
me pergunte como. Se pudesse ser explicado, já não seria milagre.
Chama-me
atenção a ordem dada por Jesus para que os discípulos não permitissem qualquer
desperdício. Mesmo sabendo que Seu poder é uma fonte inesgotável, não somos
autorizados a sermos pródigos com os recursos que nos têm sido
disponibilizados. Um estilo de vida consumista é incompatível com uma consciência
transformada pelo Evangelho.
Compartilhar
não é o mesmo que desperdiçar, mas aproveitar ao máximo o que recebemos. O
prazer proporcionado ao outro multiplica o nosso próprio prazer. Desperdiçar é
jogar fora, ou gastar irresponsavelmente. Como cristãos, deveríamos estar na
vanguarda das campanhas de reciclagem. O mundo não suporta mais tanto desperdício.
Tanto pela injustiça que produz (uns com tantos, outros com tão pouco), como
pelo uso de fontes nem sempre renováveis e o acúmulo de lixo que compromete a
sustentabilidade.
* Reflexão
baseada em João 6.
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