Por Hermes C. Fernandes
Nada tem sido mais subestimado do que a graça, apesar de figurar entre as mais
queridas doutrinas cristãs. Talvez
justamente por isso. Nós a reduzimos a uma doutrina. Conseguimos a proeza
de dissecá-la e sistematizá-la (como se isso fosse possível!)
Graça é a disposição divina em querer comunicar-se com Suas
criaturas, transpondo todos os abismos que porventura os separe, arcando com
todos os custos envolvidos. Mesmo esta definição, como qualquer outra, não dá
conta de esgotar todos os seus significados. Simplesmente não cabe na lógica
humana. Por isso mesmo, Paulo a chama de “loucura de Deus”.
Como se não bastasse reduzir seu significado, atrevemo-nos a
fixar os limites do seu alcance. Pura perda de tempo. A graça extrapola todas as
bordas, desrespeita todas as convenções, subverte todas tentativas de codificá-la. Nenhuma combinação de consoantes e vogais consegue expressar a vastidão de sentidos que ela encerra. Nenhum número possível pode quantificá-la.
Não se trata de algo contingencial. Não é um plano
tapa-buraco para pôr ordem na bagunça que o nosso pecado provocou. Nada disso!
Onde quer que o pecado haja abundado, a graça superabundará. Desde que há Deus,
há graça. Portanto, ela é anterior ao pecado. E quando já não houver nem resquício
do pecado, ela seguirá suprema por todas as eras. Ela não é apenas o contraponto ao pecado. Longe disso. Ela é
o fundamento da existência.
Graça é o idioma divino. Um Deus que é essencialmente amor
só poderia expressar-se através da graça. E é aí que Ele difere de todas as
divindades frutos da imaginação humana.
A graça se revela majestosa no fato de um Deus que não cabe no
universo se apequenar a ponto de se aconchegar no ventre de uma jovem. O Pai da
Eternidade assumiu corporeidade dentro do tempo e do espaço. O Verbo em quem
todos os códigos da existência estão contidos fez ecoar Sua voz nos subúrbios
da Galileia na mais eloquente declaração de amor. Deus não apenas se agachou,
mas desceu até nós, atribuindo-nos um valor incalculável. Paulo, o apóstolo,
refere-se a este fato como kenósis, o
esvaziamento de Deus. Tal processo não começou na concepção do Cristo. Degraus
anteriores tiveram que ser descidos até que Deus se achasse em forma humana. Sua
kenósis, por assim dizer, começou no
momento da criação. O Deus Trino decidiu que deveria existir algo para além de Si
mesmo. Para tanto, o primeiro passo seria a retração do Criador, cuja finalidade
seria ceder espaço para que outros existissem. Esse movimento de retrair-se
pode ser entendido como um movimento uterino de Deus, uma contração visceral,
assim como a mãe que gera dentro de si para depois dar à luz o que foi gerado.
Seus órgãos internos devem se acomodar, retraindo-se para dar lugar ao novo
ente. Analogamente, Deus abriu espaço em Si mesmo para acomodar um universo
inteiro.
Como uma mãe que sabe o quão arriscado é pôr um filho no
mundo, Deus sabia de todos os riscos envolvidos na criação, principalmente a
partir do momento em que a consciência emergisse no cosmos. Creio que a retração
divina foi ainda maior ao criar seres dotados de consciência. Seres livres,
capazes de refletir por si mesmos, certamente lhe daria muita dor de cabeça.
Aliás, Ele mesmo se queixou disso pelos lábios do profeta: “Deste-me trabalho
com os teus pecados, e me cansaste com as tuas iniquidades.”[1]
Mas somente um Deus absolutamente soberano não se sentiria ameaçado pela
liberdade conferida às Suas criaturas.
Acredito que o tipo de relação que a graça exerce sobre nós tem muito mais a ver com cuidado do que com controle. Como a mãe de Moisés, que o colocou recém-nascido num cesto confiando-o
às águas do Nilo, Deus entregou Sua criação ao fluxo natural. Mas tal qual
Miriam que acompanhou a trajetória do cesto até que fosse resgatado pela filha
de Faraó, em momento algum Deus nos perdeu de vista. Ele sempre soube que,
eventualmente, terminaríamos em Seus braços novamente.
Por eras, fomos açoitados pelas correntezas dos processos
naturais, ameaçados pela presença de predadores, porém, guardados num cesto
impermeável, carinhosamente preparado para nos embalar e sob o olhar atento do
Unigênito de Deus. Toda vez que nosso cesto se agarrava a algum junco, era Ele
que vinha nos desencalhar. Se algum crocodilo se nos aproximava, era Ele quem o
espantava, fazendo-o recuar.
Que cesto seria esse? Um cesto de junco! Nada mais frágil. O
que nos favoreceu ao longo das eras no processo natural foi justamente a nossa
fragilidade. Não fosse por ela, não teríamos sobrevivido. Aprendemos a tirar
força da fraqueza como os heróis descritos na epístola aos Hebreus.[2]
Devemos a ela nossa inventividade. Descobrimos o fogo porque precisávamos nos
proteger do frio, razão pela qual também costuramos nossas roupas. Inventamos
ferramentas para driblar a fraqueza de nossos músculos e as nossas limitações anatômicas. Refugiamo-nos em
cavernas para nos proteger de predadores e da fúria das tempestades. Em vez de
simplesmente nos render às imposições da natureza, nós a sobrepujamos. Tudo
isso por causa de nossa fraqueza. Eis o cesto que nos tem protegido por eras.
Como Moisés, escapamos da extinção. Somos sobreviventes de
um processo evolutivo cruel que fez desaparecer milhões de espécies ao longo
dos tempos. Sobrevivemos num ambiente inóspito, hostil à nossa presença. Mas cá
estamos. Tudo isso, fruto da inexplicável graça divina que nos brindou com o
dom da fraqueza.
Paulo percebeu que graças a esta fraqueza o poder de
Deus encontra seu encaixe perfeito em nós.[3]
Ela se constitui, por assim dizer, na maior de nossas vantagens. No dizer do
apóstolo, somos vasos de barro que têm como conteúdo um inestimável tesouro. [4]
Conhecedor de todas as coisas, inclusive do futuro, Deus
sabia exatamente aonde nosso cesto de junco aportaria. Sua acolhida no palácio
de Faraó seria passageira, assim como nossa absorção pelos sistemas deste mundo.
Cristo, nossa “Mirian” trataria de nos reconduzir aos braços de nosso Pai/Mãe
celestial, tão se comprovasse a inabilidade de tais sistemas em nos prover, não
apenas meios de sobrevivência, mas, sobretudo, sentido para a nossa existência.
Mirian não poderia acompanhar o cesto sem molhar os pés e
arriscar sua própria pele. Semelhantemente, Cristo não poderia nos reconduzir
ao Pai se não sujasse Seus pés na poeira deste mundo. A diferença entre Mirian
e Jesus é que a primeira passou incólume, só se manifestando diante da princesa
para sugerir-lhe que se chamasse a mãe do menino para ser sua ama de leite.
Jesus, não. O cosmos inteiro voltou sua atenção para Ele desde que pôs Seus pés
neste mundo. Anjos celebraram. Demônios tiveram que abrir alas para que Ele
passasse. Reis se sentiram ameaçados pela Sua presença. Sacerdotes conspiraram
para matá-lo. Até dentre os Seus discípulos houve quem O traísse, quem O
negasse e quem se recusasse a crer.
A filha de Faraó acatou sem resistência à sugestão de
Mirian. Mas Cristo teve que despojar principados e potestades, arrancando-lhes
das mãos o domínio que tinham sobre os homens.[5]
E como o fez? Demonstrando Seu poder? Não. Revelando Sua
desconcertante vulnerabilidade. Foi em Sua completa rendição de amor que Ele
desarticulou os poderes, ridicularizando sua presunção. A kenósis iniciada na
criação, na retração divina, agora alcançava seu apogeu. O Onipotente revela
Sua oni-debilidade. O Onisciente se faz momentaneamente ignorante, a ponto de
desconhecer o dia de Sua vinda. O Onipresente agora está preso, totalmente
imobilizado numa cruz. Aquele que enche todas as coisas, de repente, se
esvaziou. O último degrau da kenósis foi descido. Aquele que era em forma de
Deus, não usurpou ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo ao criar todas
as coisas, tomou a forma de servo, fez-se semelhante aos homens, humilhou-se a
si mesmo, e agora, por obediência à vontade do Pai, experimentou nossa morte.[6]
Não de uma maneira convencional, natural. Não de “morte morrida”. Mas da maneira
mais aviltante. Ele teve a morte destinada a todos os que se insurgem contra o
sistema. Não morreu entre príncipes, mas entre ladrões comuns.
Jesus redefiniu os atributos divinos. De modo que, agora,
onipotência tornou-se infinita capacidade do dom de si mesmo ao outro.
Onipresença deixou de ser apenas estar presente para se tornar presente. Onisciência
deixou de ser saber de tudo para ser o conhecimento por experiência própria.
Misericórdia se tornou em compaixão. O Deus revelado em Jesus conhece o
sofrimento, a dor, a humilhação, não pelo que contaram a Ele, mas pelo que Ele
mesmo experimentou. Não há dor humana que Ele desconheça.
Os anjos devem ter achado que Deus perdera o juízo. Não é à
toa que Paulo se refere à loucura de Deus, associando-a a Sua inebriante
fraqueza.[7]
Quão subversivo é o Deus revelado em Jesus! Ele Se esvazia para poder encher
todas as coisas. Sua majestade resplandece na Sua humildade que beira à descompostura. Seu poder se revela na fraqueza, Sua presença na ausência
provocada por Sua retração, Sua sabedoria em Seu desvario. Sua vida pulsa
vibrantemente através de Sua morte. Sua soberania se sobressai ao conferir liberdade
aos seres dotados de consciência. Sua justiça se impõe na exposição de Seu
amor.
Eis a graça! Tão graciosa que nos deixa absolutamente sem
graça, desconcertantemente constrangidos. Nossos argumentos mais refinados vão
para o lixo. Nossa sofisticação se torna obsoleta. A graça implode nossos
castelos de areia. Ficamos sem chão. Entregues à vertigem da liberdade. Fiados
exclusivamente em Seus propósitos, cuja equação inclui misteriosamente a Sua
soberania e a nossa liberdade.
Assisti recentemente a um trecho de um sermão onde o
pregador insistia que a porta da graça estaria prestes a se fechar. Para esta
linha de pensamento, a graça é uma porta que se abriu na cruz e se fechará
quando Cristo vier raptar o Seu povo. Ledo engano. A graça precede a existência
do cosmos. Ela se firma na disposição amorosa de Deus em criar todas as coisas.
Se a tal “porta da graça” se fechasse, o cosmos entraria em colapso.
Cada partícula subatômica é mantida pela mesma graça cujo
guarda-chuva cobre o restante da criação.
E aqui, vale dizer que não há graça meia-boca, capaz de
permitir a convivência entre os homens, mas incapaz de conduzi-los à consumação
do propósito de suas existências. Quando falamos “graça comum”, referimo-nos a
uma graça comungada por todos os seres.
Mas isso não a torna vulgar. Num certo sentido, a graça é absolutamente
incomum. A mesma que conduz o elétron em sua órbita em torno do núcleo do
átomo, conduz o homem à redenção de sua alma. A mesma que inspira o artista na
elaboração de sua obra prima, inspira profetas a denunciar as injustiças e
apontar o caminho da equidade.
Tal graça não cabe dentro de compêndios e esquemas doutrinários. Ninguém detém seu copyright,
nem o monopólio de sua ação. Toda vez que nos apossamos dela, ela vaza por
entre nossos dedos.
A graça é onipresente! Com os olhos iluminados, podemos detectar seus rastros na cultura, na ciência, na história e em todos os caminhos por onde temos transitado. Deixemo-nos, portanto, nos surpreender e encantar com o seu brilho e jamais ousemos novamente subestimá-la.
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