quarta-feira, dezembro 09, 2015

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A igreja e a inserção cultural


Por Hermes C. Fernandes
A vocação primordial do homem é a de cultivar a terra. O texto sagrado diz que o Criador tomou o homem a quem criara à sua imagem e semelhança e o pôs no Jardim do Éden, incumbindo-o de guardá-lo e cultivá-lo (Gênesis 2:15). Surgia aí a cultura. A própria etimologia da palavra encerra este significado. “Cultura”do latim colere, que significa cultivar. Portanto, a cultura surge a partir da interação do homem com o meio em que está inserido. A cultura, portanto, abrange toda a produção de conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes, bem como todos os hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade, e geralmente deixados como legado para as gerações posteriores.
A agricultura foi o ponto de partida desta interação entre o homem e o ambiente. Todavia, ela se intensificou na medida em que o homem se deparava com novas demandas. Por exemplo, tomando a referência bíblica como base, quando se percebeu nu, o homem coseu folhas de figueira, uma das árvores que ele cultivava no jardim (Gn.3:7).
O Criador, entretanto, preparou-lhe uma vestimenta de pele de animal. Surgia, então, a espiritualidade, parte essencial da cultura humana.  A espiritualidade emerge da reflexão acerca da finitude da vida. Os antropólogos identificam a emergência da espiritualidade na raça humana no tratamento dispensado aos mortos. Desde que começou a vislumbrar a possibilidade da vida após a morte, o homem passou a sepultar seus mortos de maneira reverente. Em vez de abandoná-los para serem devorados pelas feras, passou a enterrá-los em covas, acompanhado de flores e objetos de uso pessoal. A cultura, então, toma um rumo inusitado, pois não se resume à interação com o meio, mas também à resposta que se dá à existência, revestindo-a de sentido e significado. A vida deixa de ser vista como um acidente e passa a ser encarada como cheia de propósito. As folhas de figueira são substituídas por vestes feitas da pele de um animal sacrificado. Pela primeira vez, um altar é erigido. Interessante notar que “culto” e “cultura” têm a mesma origem etimológica. Cultuar também é cultivar. A diferença é que se cultiva o que está no chão enquanto se cultua o que está no céu. O surgimento do fenômeno da espiritualidade é a resposta à inexorável sentença da morte: a gente não foi feito para acabar!

A humanidade representada em Adão se bifurca em duas estirpes. Duas cosmovisões começam a se digladiar entre si. Uma tem como arquétipo a figura de Caim, o primogênito de Adão. A outra, a figura de Abel, seu segundo filho. Caim, o agricultor, representa a fase em que a humanidade dá seus primeiros passos na composição de sua cultura. O que importava era a sobrevivência num mundo hostil, cheio de cardos e espinhos. Diferentemente da Adão, seu pai, que representa o estágio em que o homem vivia da coleta daquilo que encontrava. Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas, e representa o desenvolvimento da prática pecuária. Neste estágio, o homem deixa de se preocupar exclusivamente com sua sobrevivência e passa a considerar assuntos relativos à transcendência. A interação entre as duas cosmovisões nem sempre foi amistosa. Todos  conhecemos o desfecho do relato bíblico: Caim mata Abel. Foragido, cabe a ele a construção da primeira cidade. Portanto, a civilização nasce daí, do conflito, da fuga e do desejo de estabelecer-se. Caim representa a humanidade que se assenta nos lugares férteis, geralmente próximos de grandes rios e ali edifica seus centros urbanos. Abel representa a humanidade em trânsito, nômade, hebreia, em busca de novos horizontes. Se esta aspiração houvesse terminado com Abel, talvez ainda estivéssemos às margens do Eufrates. Porém, Abel sai de cena dando lugar a Sete que dá prosseguimento à saga daqueles que não têm cidade permanente, mas buscam a que se insinua no lugar onde nasce o sol, a cidade do futuro (Hb.13:14).
Desde então, a humanidade tem estado dividida entre dois grupos. Os que almejam a manutenção das coisas exatamente como são ou como foram um dia, e constroem suas vidas nas vizinhanças do Éden. E há os que acenam para o futuro, desejando-o, não como repetição de uma história cíclica, mas como algo novo e inusitado. O primeiro grupo tende a produzir uma cultura estática, que valoriza, sobretudo, as tradições, sem ao menos contestá-las ou colocá-las à prova. O segundo grupo tende a produzir uma cultura dinâmica, condenada a reformular-se constantemente. Para uns, a era áurea se encontra no passado, do lado de dentro dos portões do Éden. Para outros, o melhor ainda está por vir. Enquanto, uns sonham voltar para o paraíso, outros sonham com a Nova Jerusalém, arquétipo da civilização do reino de Deus. Esses são os descendentes de Abraão, que deixa sua parentela rumo a uma terra desconhecida que lhe será mostrada no caminho.
Para os que seguem o que chamo de paradigma caímico, a cultura se resume no que se produz para o próprio consumo. Para estes, a gente é feito para acabar. Esta sentença nos persegue por toda a existência. Portanto, aproveitemos ao máximo o tempo de que dispomos. Mas para os que seguem o paradigma abélico, a cultura é o rastro que se deixa para os que virão depois. É a pista de que passamos por aqui. É a sinalização da estrada aberta e pavimentada pelos que nos antecederam. A cultura é, por assim dizer, o que restou de nós. Nossas paixões. Nossos sonhos. Nossos amores. Nossos temores. É o DNA de nossa essência deixado como marca indelével de nossa existência. Tudo fica espalhado pela estrada na qual transitamos durante nossa peregrinação existencial, indicando aos que virão qual o melhor caminho a seguir e qual deve ser igualmente evitado. 

* Para melhor compreensão do tema, leia os dois posts que sucedem a este.

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