Por Hermes C. Fernandes
Vira e mexe, presenciamos um surto racista inundando as redes sociais. Meses atrás o tempo fechou para Maju, a garota da
meteorologia do Jornal Nacional. As bolas da vez são Taís Araújo, com seus
exuberantes cachos e inquestionável talento para a dramaturgia, e o ator John Boyega, o novo Stormtrooper da franquia cinematográfica Star Wars. Quem estava acostumado com Darth Vader, um vilão branco com armadura negra, terá que se acostumar com um personagem negro em armadura branca. Os personagens
mudam, mas o roteiro é vergonhosamente o mesmo. Não suportamos ver um negro em
proeminência. Isso parece depor contra nossa suposta superioridade. Afinal, não
custa nada relembrar de que somos os detentores de quase todas as patentes
científicas. Nossa genialidade já está mais do que comprovada. Então, o que é
que um negro está fazendo na ancoragem de um telejornal? Já não basta se
destacarem tanto nos esportes? Agora querem também a ribalta, o protagonismo
político, a ascensão econômica? Quem eles pensam que são?
Surge, então, campanhas do tipo “somos todos Maju”. Por um
breve momento, todos discutem o tema, para logo em seguida voltar ao usual ostracismo. Ninguém é Maju, senão ela mesma. Ninguém conhece a dor causada pelo preconceito do que aquele que a sofre na própria pele. O máximo que podemos é nos solidarizar. Mas cada um segue sendo o que se é.
Quando chega novembro, mês em que se comemora a consciência
negra, Morgan Freeman, ator negro norte-americano, surge nas redes sociais para
nos dizer que “o dia em que pararmos de nos preocupar com a consciência negra,
amarela ou branca e nos preocuparmos com a consciência humana, o racismo
desaparecerá.” Muito legal ouvir isso de um negro bem-sucedido em Hollywood.
Mas ouso discordar do “todo-poderoso”. Não será varrendo o problema para
debaixo do tapete que vamos resolvê-lo. Enquanto houver negros sendo
explorados, diminuídos por causa da cor de sua pele, vituperados, perseguidos, o
dia da consciência negra não poderá cair nos descaso. Não basta saber que há negros dirigindo
conversíveis em Beverly Hills, ou morando na Casa Branca, ou à frente de
empresas multinacionais. Enquanto houver negros vivendo em condições subumanas
nas favelas dos grandes centros urbanos, convivendo com ratos à beira do esgoto
a céu aberto, lesados em seus direitos essenciais, mister se fará conclamarmos a sociedade a abraçar a causa do negro.
Nossas raízes mais profundas estão na África. Se Adão, o primeiro homem, fosse branco, teria sido feito da areia da
praia, não do pó da terra (sim, creio que o poema da criação nos ofereça muitas
pistas importantes sobre nossas origens). À medida que nos afastamos do
paraíso, símbolo da integração com o Criador e com o restante da
criação, empalidecemo-nos. O frio das longínquas terras para as quais migramos nos
clareou a epiderme, mas também resfriou nossa alma. Nossos cabelos ficaram
escorridos, pois não precisavam mais reter a água que refrigerava nossas
têmporas durante os dias de sol escaldante das regiões áridas do velho
continente. Perdemos o tônus muscular quando deixamos de correr pelas savanas
para escapar das feras. Passamos a nos refugiar em cavernas para nos proteger
do frio. O fogo agora não nos servia apenas para assar nossa comida, mas também
para aquecer nossas noites e preservar a rica herança negra que carregávamos na
alma. Os tambores jamais deixaram de rufar. Mesmo sem entender direito o que
efeito que causavam na constituição de nosso ser, deixávamos que seu som nos
seduzisse e nos pusesse a dançar. Cada canto, cada passo de dança, cada ritual,
era uma tributo que prestávamos às nossas raízes.
Se nossa mente é grega, nossa fé é judaica, nossas leis são
romanas, nossa moral é vitoriana, nossa alma é africana. Se a Mesopotâmia é o
nosso berço, a África é o útero no qual fomos formados. Não há como negar! A melanina
que nos falta à pele pigmenta nossa alma. Não é possível disfarçar por muito
tempo nossa latente negritude, pois ela ainda vibra ao som dos tambores, se
delicia pelo encanto dos sabores e se inspira nos ideias de heróis como Luther
King e Mandela.
Nem mesmo a escravidão foi capaz de sufocar o espírito
aguerrido que nos habita. Como a fênix, a África renasce das cinzas através de
sua arte, para brindar a civilização com sua desaforada musicalidade.
Somos todos filhos da África. Mas numa espécie de Édipo planetário, ensejamos matá-la e nos apoderar de tudo o que ela produz.
Queremos sua arte, sua jinga, sua fé, sua fibra, mas rejeitamos sua gente. Cobiçamos
as curvas de seus corpos, mas desprezamos os traços de seus rostos. Invejamos
sua virilidade, mas nos enojamos de seu odor.
Ambicionamos sua força e destreza, mas rejeitamos sua companhia.
Nosso preconceito nos entrega. Revela nossa face mais cruel
e indigna. Expõe nossas vísceras fétidas, carregadas de excremento racista.
Fizemos a eles o que Dalila e os filisteus fizeram a Sansão. Vazamos
seus olhos quando lhes oferecemos uma educação tacanha, incapaz de fazê-los
enxergar criticamente o arranjo social no qual são inseridos. Tosquiamos seus
cabelos ao convencê-los de sua suposta fraqueza e inferioridade. Pusemos-los a
trabalhar em nossos moinhos, tornando-os meras engrenagens de nosso sistema,
lubrificado pelo seu sagrado suor. E por
fim, cedemos-lhes (não sem resistência) a ribalta, proporcionando-lhes a ilusão
de serem o centro das atenções enquanto nos divertimos à sua custa. Iludidos
são os que pensam que não haverá uma reação. Tal qual o herói hebreu, abraçaram
os pilares de nossa cultura, mas em vez de derrubá-los, passaram, na verdade, a
escorá-los. Se quisessem, derrubariam nosso templo, e nos soterrariam sob os
escombros de nossa vaidade. Mas surpreendentemente, preferem nos poupar,
abençoando-nos com sua presença no mundo, ensinando-nos a resiliência capaz de
sorrir e festejar mesmo em face da dor.
Para riscar a África do mapa, teríamos que rasgar os poemas
de Machado de Assis, esquecer os solos psicodélicos de Jimmi Hendrix, a voz
rouca de Ray Charles, o balanço de Tim Maia e Jorge Benjor, a genialidade esportiva de Pelé e Tiger Woods, os passos de Michael Jackson, o caráter de
Joaquim Barbosa, a envergadura ética de Desmond Tutu, o carisma de Barack Obama, o idealismo de Nina Simone e Bob Marley, o
empoderamento de Beyoncé, a extensão vocal de Whitney Houston, o humor de
Eddie Murphy, o engajamento de Oprah Winfrey, o brilhantismo da atuação de Sidney
Poitier, Denzel Washington, Will Smith, Milton Gonçalves, Lázaro Ramos e o inesquecível Grande Otelo, o
talento musical de Cartola, Milton Nascimento, Djavan, Alcione, Emicida e tantos outros. Definitivamente,
o mundo não seria o mesmo sem esses ilustres filhos da África. Por essas e
outras, dou boas vindas ao mês da Consciência Negra.
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