sexta-feira, novembro 06, 2015

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Taís Araújo, Maju e o lado negro da força




Por Hermes C. Fernandes

Vira e mexe, presenciamos um surto racista inundando as redes sociais. Meses atrás o tempo fechou para Maju, a garota da meteorologia do Jornal Nacional. As bolas da vez são Taís Araújo, com seus exuberantes cachos e inquestionável talento para a dramaturgia, e o ator John Boyega, o novo Stormtrooper da franquia cinematográfica Star Wars. Quem estava acostumado com Darth Vader, um vilão branco com armadura negra, terá que se acostumar com um personagem negro em armadura branca. Os personagens mudam, mas o roteiro é vergonhosamente o mesmo. Não suportamos ver um negro em proeminência. Isso parece depor contra nossa suposta superioridade. Afinal, não custa nada relembrar de que somos os detentores de quase todas as patentes científicas. Nossa genialidade já está mais do que comprovada. Então, o que é que um negro está fazendo na ancoragem de um telejornal? Já não basta se destacarem tanto nos esportes? Agora querem também a ribalta, o protagonismo político, a ascensão econômica? Quem eles pensam que são?

Surge, então, campanhas do tipo “somos todos Maju”. Por um breve momento, todos discutem o tema, para logo em seguida voltar ao usual ostracismo. Ninguém é Maju, senão ela mesma. Ninguém conhece a dor causada pelo preconceito do que aquele que a sofre na própria pele. O máximo que podemos é nos solidarizar. Mas cada um segue sendo o que se é. 

Quando chega novembro, mês em que se comemora a consciência negra, Morgan Freeman, ator negro norte-americano, surge nas redes sociais para nos dizer que “o dia em que pararmos de nos preocupar com a consciência negra, amarela ou branca e nos preocuparmos com a consciência humana, o racismo desaparecerá.” Muito legal ouvir isso de um negro bem-sucedido em Hollywood. Mas ouso discordar do “todo-poderoso”. Não será varrendo o problema para debaixo do tapete que vamos resolvê-lo. Enquanto houver negros sendo explorados, diminuídos por causa da cor de sua pele, vituperados, perseguidos, o dia da consciência negra não poderá cair nos descaso.  Não basta saber que há negros dirigindo conversíveis em Beverly Hills, ou morando na Casa Branca, ou à frente de empresas multinacionais. Enquanto houver negros vivendo em condições subumanas nas favelas dos grandes centros urbanos, convivendo com ratos à beira do esgoto a céu aberto, lesados em seus direitos essenciais, mister se fará conclamarmos a sociedade a abraçar a causa do negro. 

Nossas raízes mais profundas estão na África. Se Adão, o primeiro homem, fosse branco, teria sido feito da areia da praia, não do pó da terra (sim, creio que o poema da criação nos ofereça muitas pistas importantes sobre nossas origens). À medida que nos afastamos do paraíso, símbolo da integração com o Criador e com o restante da criação, empalidecemo-nos. O frio das longínquas terras para as quais migramos nos clareou a epiderme, mas também resfriou nossa alma. Nossos cabelos ficaram escorridos, pois não precisavam mais reter a água que refrigerava nossas têmporas durante os dias de sol escaldante das regiões áridas do velho continente. Perdemos o tônus muscular quando deixamos de correr pelas savanas para escapar das feras. Passamos a nos refugiar em cavernas para nos proteger do frio. O fogo agora não nos servia apenas para assar nossa comida, mas também para aquecer nossas noites e preservar a rica herança negra que carregávamos na alma. Os tambores jamais deixaram de rufar. Mesmo sem entender direito o que efeito que causavam na constituição de nosso ser, deixávamos que seu som nos seduzisse e nos pusesse a dançar. Cada canto, cada passo de dança, cada ritual, era uma tributo que prestávamos às nossas raízes.

Se nossa mente é grega, nossa fé é judaica, nossas leis são romanas, nossa moral é vitoriana, nossa alma é africana. Se a Mesopotâmia é o nosso berço, a África é o útero no qual fomos formados. Não há como negar! A melanina que nos falta à pele pigmenta nossa alma. Não é possível disfarçar por muito tempo nossa latente negritude, pois ela ainda vibra ao som dos tambores, se delicia pelo encanto dos sabores e se inspira nos ideias de heróis como Luther King e Mandela.

Nem mesmo a escravidão foi capaz de sufocar o espírito aguerrido que nos habita. Como a fênix, a África renasce das cinzas através de sua arte, para brindar a civilização com sua desaforada musicalidade.

Somos todos filhos da África. Mas numa espécie de Édipo planetário, ensejamos matá-la e nos apoderar de tudo o que ela produz. Queremos sua arte, sua jinga, sua fé, sua fibra, mas rejeitamos sua gente. Cobiçamos as curvas de seus corpos, mas desprezamos os traços de seus rostos. Invejamos sua virilidade, mas nos enojamos de seu odor.  Ambicionamos sua força e destreza, mas rejeitamos sua companhia.

Nosso preconceito nos entrega. Revela nossa face mais cruel e indigna. Expõe nossas vísceras fétidas, carregadas de excremento racista.

Fizemos a eles o que Dalila e os filisteus fizeram a Sansão. Vazamos seus olhos quando lhes oferecemos uma educação tacanha, incapaz de fazê-los enxergar criticamente o arranjo social no qual são inseridos. Tosquiamos seus cabelos ao convencê-los de sua suposta fraqueza e inferioridade. Pusemos-los a trabalhar em nossos moinhos, tornando-os meras engrenagens de nosso sistema, lubrificado pelo seu sagrado suor.  E por fim, cedemos-lhes (não sem resistência) a ribalta, proporcionando-lhes a ilusão de serem o centro das atenções enquanto nos divertimos à sua custa. Iludidos são os que pensam que não haverá uma reação. Tal qual o herói hebreu, abraçaram os pilares de nossa cultura, mas em vez de derrubá-los, passaram, na verdade, a escorá-los. Se quisessem, derrubariam nosso templo, e nos soterrariam sob os escombros de nossa vaidade. Mas surpreendentemente, preferem nos poupar, abençoando-nos com sua presença no mundo, ensinando-nos a resiliência capaz de sorrir e festejar mesmo em face da dor.

Para riscar a África do mapa, teríamos que rasgar os poemas de Machado de Assis, esquecer os solos psicodélicos de Jimmi Hendrix, a voz rouca de Ray Charles, o balanço de Tim Maia e Jorge Benjor, a genialidade esportiva de Pelé e Tiger Woods, os passos de Michael Jackson, o caráter de Joaquim Barbosa, a envergadura ética de Desmond Tutu, o carisma de Barack Obama, o idealismo de Nina Simone e Bob Marley, o empoderamento de Beyoncé, a extensão vocal de Whitney Houston, o humor de Eddie Murphy, o engajamento de Oprah Winfrey, o brilhantismo da atuação de Sidney Poitier, Denzel Washington, Will Smith, Milton Gonçalves, Lázaro Ramos e o inesquecível Grande Otelo, o talento musical de Cartola, Milton Nascimento, Djavan, Alcione, Emicida e tantos outros. Definitivamente, o mundo não seria o mesmo sem esses ilustres filhos da África. Por essas e outras, dou boas vindas ao mês da Consciência Negra. 

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