A fé, pelo menos a fé bíblica, não é de maneira alguma, contra a ciência. Pelo contrário, do ponto de vista teológico, a fé incentiva e exige a ciência no que se refere geralmente a qualquer busca pela verdade e no que se refere especificamente à incumbência humana de classificar, compreender e explicar abstratamente a natureza (Gênesis 2.19-20).
1. A busca da verdade (Sl 25.1-5; Pv 1.7; 2.1-6; 23.23; Dn 2.20-21; Jo 14.6; Rm 12.1-2; Fp 4.8)
Paul Tillich definiu certa vez a religião como qualquer “preocupação última” que alguém tenha. Assim, ele foi além das definições tradicionais que restringia a religião ao campo do místico, ou do sobrenatural. Mesmo com esta definição ampla de Tillich, não é difícil associar a fé bíblica com uma preocupação com o divino. É interessante perceber que as Escrituras fazem uma nítida ligação entre o divino e a verdade. Em João 14.6, Jesus alega ser a verdade, não só saber ao seu respeito, mas ser a verdade. E ele não estava inovando. No Antigo Testamento está escrito que o conhecimento (“daath”) pertence a Deus (1 Sm 2.3). E onde a sabedoria é personificada, ela adquire características divinas. Aliás, em Provérbios 1-8 ela é ao mesmo tempo personificada e divinizada. Agora, é importante esclarecer que a afirmação teológica “Deus é a verdade”, deve ser entendida inclusivamente, não exclusivamente. Não é uma negação da ciência. Pelo contrário, é uma afirmação de tudo na ciência e em qualquer paradigma humano que é verdadeiro. Quem busca a Deus, busca a verdade. E quem de fato busca a verdade, está no caminho a Deus, mesmo que não intencionalmente, quer seja teísta, deísta ou ateu. Portanto a fé, pela sua busca pela verdade e de modo geral, incentiva e exige a ciência.
2. A incumbência científica
Também especificamente a fé cristã, nas primeiras páginas da sua constituição, a Bíblia, começa com uma preocupação cosmológica: “no princípio criou Deus os céus e a terra.” E nas suas últimas páginas lemos da recriação dos mesmos. Os diversos relatos da Bíblia sobre o início do universo (só em Gênesis há duas versões logo no início e há outras nos salmos, nos profetas e também no Novo Testamento) demonstram um interesse nos elementos da natureza em si e por si só que em muito supera o interesse que se encontra nos escritos teológicos e que em muito coincide com as descrições científicas.
Agora esta última frase, “a preocupação bíblica… em muito coincide com as descrições científicas” precisa de explicação. Duas observações quanto à linguagem não científica da Bíblia e o papel de auxílio que ciência presta para uma leitura retrospectiva da Bíblia.
Primeiro, tem havido verdadeiras revoluções a partir do fim do século passado e especialmente nas últimas duas décadas sobre métodos de interpretação da Escrituras. Alguns métodos são mais controvertidos que os outros. Mas de grosso modo tem havido uma compreensão e apreciação cada vez mais dos meios culturais e historicamente limitados da composição literária dos diversos livros da Bíblia. Sem necessariamente abrir a mão da autoridade das Escrituras (alguns abrem, outros não), e baseado na analogia da encarnação do divino no ser humano Jesus, e francamente com o auxílio do desenvolvimento da antropologia cultural e social, os teólogos começam a apreciar e dar espaço cada vez mais para a expressão de verdades divinas através de forças de expressão culturalmente influenciadas. Talvez para muitos de vocês estou falando o óbvio. Mas para outros não é tão óbvio. Por exemplo, se Davi não era o pai de Jesus, por que Jesus é chamado constantemente “filho de Davi”? A resposta é simples: a palavra “filho” (“bem”) em hebraico se refere à descendência, não apenas filiação imediata. Semelhantemente o arranjo de eventos na vida de Jesus varia entre os Evangelhos simplesmente porque aqueles que relataram os eventos -- Mateus, Marcos, Lucas, e João -- não seguiram, por razões óbvias, a metodologia da historiografia moderna e ocidental. Escreveram dentro das normas culturais da sua época e a inspiração divina veio através de sua humanidade, não ultrapassando-a.
Tendo isto em vista, volto a afirmação anterior: “a preocupação bíblica, dentro da linguagem bíblica, …em muito coincide com as descrições científicas”. Por exemplo, Gênesis fala do surgimento de toda a raça humana, não apenas dum indivíduo. A palavra, “Adão” significa simplesmente “ser humano” e é uma derivação da palavra “terra”, de onde o ser humano surgiu. Não é isto a perspectiva científica: que a raça humana se constitui dos mesmos elementos da terra?
Em segundo lugar, a perspectiva bíblica -- nem sempre a mesma dos teólogos -- não se restringe à criação da terra e muito menos da raça humana, mas começa numa escala mais abrangente, a criação do universo. E apesar de tudo que alguns cristãos bem intencionados dizem, a linguagem hebraica a respeito dos “dias” da criação não só permite mas exige o conceito de períodos longos, não somente de 24 horas (como já acreditavam os pais da igreja: Irineu, Orígenes, Basil, Agostinho nos primeiros séculos (1-5), e Tomás de Aquino no século 13, certamente não sob a influência da modernidade). Dentro do campo semântico da palavra, “yom”, está o conceito de períodos. Só para dá um exemplo, pelo menos mil anos depois do relato da criação, o autor de Hebreus no Novo Testamento, disse que podemos entrar no descanso de Deus, a nomenclatura do sétimo dia da criação, dia este no qual ainda passamos conforme o autor de Hebreus.
Em terceiro lugar, todos os relatos da criação na Bíblia pressupõem um alto grau de ordem num relacionamento dinâmico com o caos (Js 10.12; Jz 5.20; Gn 49.25; Êx 15.8,11; Nm 16.30; Dt 33.14ss; Jr 31:35-36 e Sl 29 e 8). A construção ordeira da criação sobressai em Provérbios 8.22-36 como a arquitetura da sabedoria personificada. Também, a ordem é imediatamente evidente no relato de Gênesis 1 da ação inicial de Deus sobre e contra todo o caos (compare Gn 1.2 com Is 45.18). Essa ordem, ou subordinação da criação, continuamente recebe destaque em vários salmos, especialmente Salmo 18.7-15. Hoje, as teorias do caos e especialmente da complexidade (fenômenos de estudo interdisciplinar) confirmam esta relação necessária para o surgimento de sistemas complexos (talvez a relação entre a entropia e as forças “kenéticas” ilustre este ponto).
Antigamente, os teólogos tinham basicamente duas opções para a interpretação do relato cosmológico de Gênesis 1 e 2. Alguns trataram os relatos de Gênesis 1 e 2 como pura invenção sem nenhuma relação com acontecimentos históricos. Isto parecia-lhes a única solução a tantas incompatibilidades com a ciência moderna. Outros estudiosos, no intuito de ser fiel a autoridade das escrituras, forçam uma seqüência restritamente cronológica nos relatos propondo interpretações cada vez mais fantásticas e inacreditáveis.
Hoje, com as lições da antropologia, é mais fácil descartar estas duas interpretações tão preocupadas com a cronologia (ou pela sua negação ou pela afirmação) ambas partindo de conceitos contemporâneos e ocidentais do tempo e da história, em contraposição aos conceitos hebraicos antigos. Nos relatos da criação, Israel não estava interessado na natureza física da criação em si, como nós hoje em dia procuramos entender pela ciência natural a origem das coisas. Para Israel, o relato da criação era importante à medida que explicava seu relacionamento com o plano de Deus, para este mundo todo. Isto é, devemos entender os relatos não cronologicamente mas topicamente, o tópico sendo o propósito de Deus para a sua criação, ou mais precisamente, o reino de Deus.
Desta perspectiva, Deus primeiro cria três grupos básicos de reinos, ou domínios, durante os primeiros três dias. Nos próximos três dias, Deus cria os reis para governarem nos reinos, anteriormente criados. O último rei a ser designado (constituindo a primeira Grande Comissão!) é o homem, que recebe o mandato representativo e real como governador-administrador sobre todos os outros reis e reinados. Por representativo, quer dizer que a humanidade foi criada por Deus à sua imagem (“çelem”) e semelhança (“dêmûth”), isto é, segundo a sua espécie (Gn 1.26,11).
O importante no relato, então, é ressaltar o propósito da criação do homem, e não tanto a forma que assumiu. Semelhantemente, o relato se importa mais com o propósito do resto da criação, do que com a forma e com a natureza desta origem em si, sendo estas últimas, preocupações da ciência moderna.
Dentro do esquema apresentado a humanidade tem um chamamento representativo para reinar como Deus reina. Por esta razão, o ser humano é não somente o servo do Senhor, como também representante dele. Assim como Deus faz, o representante deveria fazer, refletindo as características do Criador. Nisto, a realeza e o domínio de Deus são refletidos no domínio e na administração apropriados da humanidade sobre a criação. A função que a imagem de Deus no ser humano tem, portanto, é exatamente o que o texto bíblico elabora em Gênesis 1.28, “ter domínio” (“râdhâh”) e “sujeitar” (“kôbhash”) a terra. Isto é o seu status como senhor no mundo. Deus coloca a humanidade no mundo como sinal da sua soberania. E de acordo com Gênesis 2.19-20, esta soberania é exercida pela incumbência (divina) de classificar, compreender, e explicar abstratamente a natureza. A incumbência e o destino do ser humano estão ligados ao universo e vice versa (Rm 8.19-21).
O Salmo 8 concorda com este conceito de Gênesis 1 de que a humanidade realiza sua comissão como rei do reino terrestre, assim como Deus é Rei do reino celeste, e o status do ser humano sendo por um pouco menor do que Deus. Daniel Thambyrajah Niles, teólogo e missionário indiano, ilustra esta relação da seguinte forma:
"O homem é a única criatura que Deus fez cujo ser não está em si mesmo, e que por si mesmo não é nada. A ‘canicidade’ do cão está no cão, mas a ‘humanidade’ do homem não está no homem. Está na sua relação com Deus. O homem é homem porque reflete Deus, e somente quando ele assim o faz.” [tradução] (1958:60-61)
O ser humano é “homo Dei”, ou está aquém da sua própria humanidade. As implicações desta incumbência divina do ser humano para a tarefa da ciência são grandes. Repare, por exemplo, que tal incumbência é da essência da humanidade, e não um derivado da sua salvação. Pois em Gênesis 1 e 2 não se fala da salvação simplesmente porque não havia ainda a queda. A queda aparece somente no capítulo 3. Novamente afirmo: a incumbência divina para governar o mundo natural especialmente através da sua classificação nominal das suas diversas partes (sem dúvida a ciência é campeão na fabricação de palavrões!) É da essência de toda a humanidade, não só dos religiosos. Precede a queda. Aliás, mesmo depois da queda a incumbência permanece em pé (Gn 9.1-7). Na teologia esta incumbência comum é denominada “graça comum” ou “revelação comum” e se distingui da “graça especial” pela salvação, ou a “revelação especial” através das Escrituras. Só que “especial” não significa que a revelação é verdadeira que a revelação comum (por exemplo, por meio da ciência). A qualificação, “especial”, se refere ao meio da revelação -- as Escrituras -- não a sua qualidade.
O interesse estético e teleológico da ciência
Acima usei a analogia de gêmeos criados separadamente para descreve a relação entre a ciência e a fé. Disse que a fé, certamente a fé cristã, literalmente começa e termina com uma preocupação cosmológica, uma preocupação que normalmente relegamos a ciência e elaborei um pouco sobre isso. Também disse que a ciência está fazendo perguntas cada vez mais teleológicas e estéticas, que se refere à finalidade e a beleza da realidade conhecível, perguntas que geralmente relegamos à religião. Já que tal afirmação foge da minha competência profissional, não vou arriscar uma elaboração deste ponto. Vou apenas ilustrá-lo através de alguns cientistas mundialmente conhecidos e respeitados.
Primeiro, algumas citações do astrônomo John Barrow (co-autor com Frank Tipler do livro que elabora o princípio cosmológico antrópico), no seu livro, “The Artful Universe” (Oxford: Oxford University, 1995):
”Incrivelmente, descobrimos que algumas das propriedades do Universo que são essenciais para a existência de qualquer forma de vida fazem um papel chave na determinação de respostas psicológicas e religiosas para o Cosmos.”
“A fascinação científica com o fruto da complexidade organizada em todas as suas formas deveria levá-los às artes criativas aonde se encontra m exemplos extraordinários de precisão estruturada.”
Segundo, John Holland, um dos maiores matemáticos e simuladores de inteligência no computador de MIT, no seu livro, “Hidden Order: How Adaptation Builds Complexity” (Reading, Massachusetts: Addison-Wesley, 1995):
“A construção de modelos é a arte de selecionar aqueles aspectos dum processo que são relevantes para a pergunta sendo feita… esta seleção é guiada por gosto, por elegância e por metáfora; é uma questão de indução ao invés de dedução. A alta ciência depende desta arte.”
Terceiro, o prêmio nobel, Steven Weinberg, no seu livro, “Dreams of a Final Theory” (New York: Pantheon Books, 1992):
“O progresso na física é frequentemente guiado por julgamentos que somente podem ser chamados de estéticos.”
“Acredito que a aceitação geral da relatividade geral se deve em grande parte à atração da teoria em si -- em síntese, à sua beleza.”
“Cientistas e historiadores da ciência já há muito tempo desistiram da perspectiva antiga de Francis Bacon, que as hipóteses científicas deveriam se desenvolver pela observação patente e sem preconceito da natureza.”
“Não somente nosso julgamento estético é um meio para chegar às explanações científicas e julgando sua validade -- faz parte daquilo que queremos dizer por uma explanação.”
“O alvo da física no seu nível mais fundamental não é somente descrever o mundo mas explicar por que ele é do jeito que é.”
Conclusão
Portanto é tanto pelo interesse científico -- explicar por que o mundo é do jeito que é -- quanto pelo interesse da fé bíblica -- que a grosso modo incentiva e apoia a investigação cientifica, que prefiro ver a fé e a ciência como irmãs gêmeas, ou para diminuir o exagero, pelo menos como irmãos. Mas ainda não falamos dos métodos e muito menos das conseqüências dos dois paradigmas que tanto os distinguem. Quem sabe, tanto Rubem Alves quanto eu, no fim, temos razão e devemos ver os agentes da fé e da ciência, isto é os religiosos e os cientistas como lobos gêmeos, embora criados separadamente.
Passagens bíblicas para meditação:
Sl 25.1-5
Pv 1.7; 2.1-6; 23.23
Dn 2.20-21
Jo 14.6
Rm 12.1-2
Fp 4.8
• Timóteo Carriker é teólogo, missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. É autor de A Visão Missionária na Bíblia e coordena diversos sites (acesse www.tim.carriker.com).
Passagens bíblicas para meditação:
Sl 25.1-5
Pv 1.7; 2.1-6; 23.23
Dn 2.20-21
Jo 14.6
Rm 12.1-2
Fp 4.8
• Timóteo Carriker é teólogo, missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. É autor de A Visão Missionária na Bíblia e coordena diversos sites (acesse www.tim.carriker.com).
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