quinta-feira, março 12, 2009

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"...astutos como as serpentes..."

A história da humanidade pode ser escrita como a história da violência dos fortes sobre os fracos. Os fortes sempre se valeram do poder das armas e do poder do dinheiro para usar os fracos como meios para atingir os seus próprios fins. A escravidão é, talvez, a imagem mais clara desta condição - senhores e escravos - o resto sendo variações sobre o mesmo tema.

Houve, entretanto, um momento em que a humanidade deu um salto: quando se reconheceu, pela primeira vez, que todos são iguais perante a lei, sem discriminação de cor, raça, sexo, idade, religião, educação, riqueza, tendo todos o mesmo direito à felicidade. Numa curta sentença filosófica: os homens e mulheres são "fins" em si mesmos, não podendo ser usados como "meios" de quem quer que seja. Todos têm o direito de lutar por atingir sua própria felicidade, não podendo ser usados como meios para a felicidade de outros.

Foi a partir dessa consciência que se criaram leis para proteger os fracos: para que não ficassem à mercê da vontade dos fortes. Isso é bom e justo: os fracos precisam ser protegidos.

Tem existido, através da história, uma tendência universal curiosa e perversa: a de separar os homens em dois grupos distintos e opostos: de um lado, os "bons"; do outro lado, os "maus": "fiéis" e "infiéis", "ortodoxos" e "hereges" ,"mocinhos" e "bandidos"... O que é bom é só bom; o que é mau é só mau. É uma tendência tão marcante que até recebeu um nome filosófico: maniqueísmo.

O curioso é que nenhum grupo jamais se viu como pertencendo ao "time do mal". As ditaduras mais terríveis se acreditavam a serviço de uma causa sublime, e era isso que justificava a sua crueldade contra os seus inimigos. Os maus são sempre os outros: aqueles que não pertencem ao "time" em que jogamos e por que torcemos. Psicologia de torcida de futebol: o outro time está sempre errado, o outro time sempre merece perder, ainda que, para isso, se faça uso de algumas faltas violentas. O que é uma perna quebrada de um adversário se isso vai permitir que meu time ganhe? O futebol é o jogo que melhor representa a realidade psicológica e política da sociedade. Quer saber como funciona a sociedade? Estude futebol...

E foi assim que a sociedade, por obra de ideologias e teologias, foi dividida em dois times: os patrões e os empregados...

E aí, maniqueisticamente, os bons e os maus, os justos e os injustos, os explorados e os exploradores. O perigo surge quando, por inspiração da tentação maniqueísta de separar tudo em bom e mau, os times são transformados em time dos injustos e exploradores e time dos justos e explorados...

Essa divisão é falsa. É uma deformação ideológica perigosa porque tira das pessoas a capacidade de pensar racionalmente. No livro Alice no País das Maravilhas há um julgamento a propósito do roubo de uma torta em que a Rainha gritava: "A sentença primeiro; o julgamento depois..." Psicologia da torcida de futebol: a sentença já está dada antes do início do jogo. Assim, é fácil chegar à conclusão de que os patrões são sempre injustos e exploradores e os empregados são sempre justos e explorados. A propósito disso desejo relatar alguns casos que conheço.

*Meu amigo, homem honesto e religioso... Apareceu na sua casa uma mulher grávida, pedindo ajuda. As grávidas comovem sempre. Ele a ajudou. Aí ela pediu: "O senhor não tem um servicinho que eu possa fazer?" Ele não tinha, mas ficou com dó. "O que é que você sabe fazer?", ele perguntou. "Sei passar roupa", ela respondeu. "Então entre que a gente arranja umas roupinhas para você passar..." Ele não precisava de alguém que passasse roupa. Até aquele dia as roupas da casa tinham sido passadas sem o auxílio da grávida. Ele só estava querendo, movido por compaixão, arranjar uma "desculpa" para ajudá-la, para que ela não fosse simplesmente uma mendiga. Ela entrou, passou roupa por umas duas horas, ganhou seu dinheirinho e se foi. E assim aconteceu, por uma semana. Aí ela desapareceu por um mês. Depois de um mês, voltou. Explicou que tivera que faltar porque o pai estava doente. De novo o meu amigo permitiu que ela passasse roupa. Ele não precisava. Na ausência da grávida as roupas haviam sido passadas. Mais uma semana, seguida de um mês de desaparecimento. Um mês depois ela volta... Aí ele desconfiou e achou melhor encerrar a caridade. Fez as contas e pagou o devido. Passadas algumas semanas, processo trabalhista contra o meu amigo. "Ela estava registrada em carteira?" Não estava. Ele não tinha contratado uma empregada. Não precisava do serviço dela. Estava só ajudando uma grávida comovente desamparada. "Publicou nos jornais da cidade a ausência dela por um mês, para justificar abandono de emprego?" Não. Por que iria publicar que uma grávida pedinte havia deixado de ir à sua casa? Sentença: condenado a pagar os direitos da grávida. Foi fazer o pagamento no sindicato das empregadas domésticas. Ali, a pessoa responsável o recebeu com esta frase: "Com a gente é assim: patrão que rouba empregado tem de pagar..."

*Precisei fazer uma reforma. Contratei um empreiteiro. Todas as minhas relações foram exclusivamente com ele. Jamais tive qualquer coisa a ver com quem quer que fosse que trabalhasse para ele. Terminada a obra, um mês depois, sou intimado pela justiça do trabalho. Dois ajudantes de pedreiro alegavam, por meio de uma advogada, que na data tal eu os havia contratado, que na data tal eu os havia despedido, sem aviso prévio, sem pagar férias e o 13º. Queriam uma indenização de R$12.000,00. Fiquei perplexo. Eu nunca tivera qualquer tipo de relação com eles, não os contratara e não os despedira. Argumentei com meu advogado: "O que eles dizem é mentira. Eles sabem que é mentira. Isso é falso testemunho. Mentir para a justiça não é crime?" Informou-me o meu advogado: "O empregado pode alegar o que ele quiser sem precisar provar. O empregador é que tem de provar que aquilo que está sendo alegado não é verdade..."

*Já velhinha, andava com dificuldade, valendo-se de uma bengala. Tinha uma cozinheira. Um dia, sentindo-se fraca, pediu à cozinheira: "Será que você pode me dar o braço para eu ir à quitanda? Não estou me sentindo bem..." A cozinheira lhe deu o braço e lá se foram elas. Dois dias depois a situação se repete. "Será que você pode me dar o braço para eu ir à quitanda?" A cozinheira lhe deu o braço e enquanto andavam pela rua observou: "Agora não sou apenas cozinheira. Tenho uma função a mais. Sou também sua 'acompanhante'. Todos os que nos vêem são testemunhas..." A velhinha lhe agradeceu o braço e desde esse dia foi sozinha com sua bengala até a quitanda...

*Se um rapazinho pedir para lavar seu carro e você concordar - e ele passar a regularmente lavar o seu carro às 2as. feiras, tudo bem. Mas se ele sugerir que ele poderia, às 5as. feiras, varrer o seu jardim - não aceite. Duas vezes por semana configura uma relação empregatícia.

*Tenho uma amiga que se comove com adolescentes. Comoveu-se com uma menina de uns 12 anos, maltrapilha, que começou a aparecer na sua loja. Pôs-se a ajudá-la: sabonete, banho, roupa nova. Aí, por essas coisas da economia, teve de fechar a loja. A menina lhe disse: "Agora estou perdida. Minha mãe está morrendo no hospital e você se vai..." Disse-lhe a minha amiga: "Enquanto eu for viva eu a protegerei." E assim foi. Passaram-se os meses. A menina ficou grávida. Mudou-se com o pai da criança para o sul do estado. O pai desapareceu. Não tendo como cuidar do filho ela o deu para uma tia. Aí, ficou grávida de novo. Num belo dia toca a campainha da casa da minha amiga. À porta, a adolescente com um nenezinho de dois meses nos braços. Não tinha para onde ir. Minha amiga a recebeu e a alojou no quarto de empregada, que estava vazio. Adolescente e nenê se integraram na família e ela passou a fazer as coisas que todo mundo faz, numa casa: varrer, lavar louça. A criancinha passou a ser cuidada como se fosse filha. Tudo tão puro, tão simples... Aí um advogado amigo a advertiu: "Faça um contrato de aluguel com a adolescente. Ela terá que ser sua 'inquilina'. Vai alugar o quarto por R$1.00 por mês. Se você não fizer isso e se ela arranjar um namorado malandro, você terá de pagar salários, 13o, férias - pois ela varria e lavava e muita gente via..."

Moral da estória: não há classes justas. Dentro de todas as pessoas, moram os mesmos anjos e os mesmos demônios, as mesmas pombas e as mesmas cascavéis. Portanto, é preciso seguir o conselho de Jesus: "Ser simples como as pombas...e astutos como as serpentes..."

Texto de Rubem Alves, teólogo e educador que aprendi a admirar

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