quinta-feira, outubro 12, 2006

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Tirando o lixo de debaixo do tapete do inconsciente
Por Hermes C. Fernandes

Não creio que o homem tenha alcançado a consciência depois de comer do fruto proibido, conforme tem sido defendido em alguns círculos teológicos. O que ele adquiriu foi o inconsciente. Sua consciência, em vez expandir-se, como havia prometido o Diabo, foi fendida em duas partes. A partir dali, o homem tornou-se um ser fendido. Ao comer daquele fruto, o ego humano ficou exprimido entre o superego e o id.[1] Essas categorias desenvolvidas pela Psicanálise encontram seus paralelos com as categorias bíblicas de carne e espírito.

É por ser um ser partido, que o homem vive uma crise permanente entre o certo e o errado, entre os desejos da carne e do espírito (Gl.5:17). O homem tornou-se um ser essencialmente neurótico. No meio desta guerra, está o ego, sendo disputado por essas duas instâncias. Se o espírito tem prazer naquilo que é certo, e agrada o Senhor, a carne almeja exatamente o inverso. Tiago levanta a questão: “De onde vêm as guerras e contendas entre vós? Não vêm disto, dos prazeres que nos vossos membros guerreiam?” (Tg.4:1) Paulo confessa ser ele mesmo um campo de batalha entre o bem e o mal: “O que faço não o entendo. Pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço (...) Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum. Com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço (...) Pois segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus, mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm.7:15,18-19,22-23).

Paulo não precisou de um divã para confessar tudo isso. Ele o fez em uma epístola que deveria ser lida em público. Ele sabia que seu dilema era comum a todos os membros da raça humana, desde a Queda.

Se o homem alcançou a tal ‘consciência’, ficou alijado da fonte da vida eterna, experimentando sentimentos até então desconhecidos como a culpa, a vergonha e o medo. A tal ‘consciência’ custou-lhe a inocência.

Na verdade, todos os seres humanos vivenciam essa passagem vivida por Adão. Deixamos pra trás a inocência infantil, e assumimos a consciência adulta.

O retorno ao Paraíso deve nos ‘custar’ uma espécie de retorno à infância. Por isso Jesus salientou que se não nos fizermos como crianças, não podemos entrar no Reino dos céus (Mt.18:3). E para isso, necessário é ‘nascer de novo’ (Jo.3:3), o que equivale, em termos bíblicos, a converter-se das trevas à luz, da potestade de Satanás a Deus (At.26:18), da auto-suficiência à total dependência de Deus. Quando isso acontece, nossos olhos espirituais se abrem, e a verdade, antes oculta, nos é revelada. Tal experiência é chamada na Bíblia de metanóia, que é traduzido por "arrependimento", mas que tem um significado mais abrangente: meta = algo além, que transcende; nóia = de nous, que significa "mente". Logo, metanóia significa literalmente expansão da mente, da consciência.

Enquanto o homem vivia à sombra da Árvore da Vida, ele era um ser perfeitamente integrado a Deus e ao resto da criação. Com a Queda surge o que na psicologia profunda de Jung é chamado de processo de individuação. “No início, a pessoa tem apenas uma visão caótica, não-diferenciada de si mesma. Ao desenvolverem-se, seus lados bom e mau vão-se distinguindo gradualmente um do outro. Em geral, ela reprime o lado mau, provocando o crescimento de uma sombra em seu inconsciente. Se os mecanismos de repressão são demasiado fortes, a sombra se tornará monstruosa e pode acabar explodindo e dominando-o”.[2]

Foi o estado lastimável em que o homem chegou, que fez com que Deus instituísse a Lei. A natureza humana caída se tornou deveras má, e por isso, precisava de um freio. A Lei, escrita em tábuas de pedras no Monte Sinai, e confiada a Moisés, era esse freio.

Mesmo antes da Lei ser promulgada, Deus já havia imprimido na mente humana uma consciência de certo e errado.[3]

Entretanto, a Lei não pôde curar o homem de sua rebelião contra Deus. Pelo contrário. Ela instigou o lado mais sombrio do homem, dando-lhe proporções monstruosas. Paulo diz que através da Lei, o pecado se tornou “excessivamente maligno” (Rm.7:13b). A Lei foi instituída para que “a ofensa abundasse” (Rm.5:20a). Pode até parecer contraditório ou paradoxal. Mas o fato é que a Lei veio tanto para frear a iniqüidade humana, quanto para fazê-la agigantar-se. Ela tornou-se o instrumento pelo qual Deus desejava espremer o carnegão do pecado, e assim, extraí-lo da raça humana. É claro que haveria efeitos colaterais. A região afetada acabaria por inflamar-se. Mas justamente aí que entra a Graça de Deus. Enquanto a Lei, por realçar o pecado, acaba por expô-lo, a Graça, e somente ela, promove a cura. E aí, se cumpre o que disse Paulo: “Mas onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm.5:20b).

Com a emergência do inconsciente, o homem aprendeu a esconder o lixo debaixo do tapete. Suas taras, ambigüidades, complexos, neuroses, são acumulados no porão da sua alma. O que a Lei faz? Ela bate o tapete, fazendo com que a poeira suba! Pouco tempo depois, ela assenta novamente. Já a Graça de Deus revelada no Evangelho age de maneira diferente. Ela primeiro asperge o sangue de Cristo sobre a poeira, pra que ela não se levante, e aí, a remove pela santificação promovida pelo Espírito Santo.

A Lei é um instrumento repressor. Antonio Moreno, famoso psicólogo que escreveu “Jung, Deuses e o Homem Moderno”, tinha razão ao afirmar: “Quanto mais [uma pessoa] reprime sua sombra, mais escura e densa ela se torna”. [4] E Soljenitsin corrobora: “Ao silenciar sobre o mal, ao enterrá-lo tão fundo dentro de nós que nenhum sinal surja na superfície, estamos implantando-o, e ele subirá mil vezes, no futuro”.[5] É como a criança que afunda com a mão sua bola inflada. Tão logo a solte, ela emergirá com tamanha força que saltará da água.
O Evangelho de Cristo não nos propõe vencer o mal reprimindo-o pela força da Lei, e sim suprimindo-o pela confissão consciente dos elementos malignos que reconhecemos em nós mesmos, e sublimando-os. A repressão só faria aumentar a sombra do inconsciente.
A sublimação descreve o deslocamento de energia dos processos destrutivos, para processos espiritualmente e culturalmente mais elevados. A energia que poderia ser usada para o mal, é redirecionada e usada para o bem.[6] Em vez de simplesmente reprimir, recalcar, o indivíduo desloca sua energia para outra atividade, e assim, ele suprime, ou no linguajar bíblico, faz “morrer” a natureza terrena. É exatamente isso que Paulo recomenda aos Colossenses: “...buscai as coisas que são de cima... pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra” (Col.3:1-2).

Quando, em vez disso, recalcamos nossa energia, simplesmente nos submetendo às ordenanças da Lei, ela se desloca para o inconsciente, sendo ali armazenada, aguardando o momento de ser liberada com maior força. Acrescentando-se energia ao material inconsciente, o inconsciente tende a ficar sobrecarregado. Quando isso acontece, a energia do inconsciente tenderá a fluir para o ego, e a romper o processo racional. O processo inconsciente, intensamente carregado de energia, tentará quebrar a repressão, levando o indivíduo a se comportar de modo irracional e impulsivo.

A sublimação e a repressão são processos que tomam caminhos completamente opostos. Enquanto a sublimação é progressiva, a repressão é regressiva. A primeira faz com que a psique se mova para frente, a segunda faz com que se mova para trás. Uma serve à racionalidade, a outra produz irracionalidade. Uma é integradora, a outra é desintegradora.

Ao sermos alcançados pela Graça libertadora de Cristo, já não precisamos sujeitar-nos a ordenanças do tipo: não toques, não proves, não manuseies. “Todas estas coisas estão fadadas ao desaparecimento pelo uso, porque são baseadas em preceitos e ensinamentos dos homens” (Col.2:22).

Estamos livres da Lei, e por isso, livres do pecado. “O pecado não terá domínio sobre vós, porque não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rm.6:14).

A Lei já cumpriu o seu papel: diagnosticar nossa condição espiritual. Por ela descobrimos que estávamos espiritualmente mortos. Uma vez diagnosticado o problema, é hora de nos submetermos à ministração do remédio: a Graça[7] de Deus.

Devemos reconhecer que o mal não está fora de nós, mas em nossa própria natureza caída (Rm.7:18). E ele é exposto à atuação da Graça de Deus, quando o confessamos. Não se pode tapar o sol com a peneira. Temos que esvaziar nosso porão, através da oração e da confissão.
A Psicanálise desenvolveu o método terapêutico pela fala. Freud percebeu que falando, o indivíduo poria pra fora todo o lixo acumulado no porão de sua psique.

O método bíblico para a cura passa também pela fala. É confessando nossos pecados a Deus que somos perdoados e purificados (1 Jo.1:9), e confessando-os ao próximo, somos curados (Tg.5:16). Desde que nossos pais comeram do fruto proibido, todo ser humano precisa submeter-se a uma faxina regular de sua alma.

[1] Conceitos desenvolvidos pela Psicanálise Freudiana.
[2] Ver Hesse, Hermann, Demian (New York, 1965), e O’Connor, Flannery, The Violent Bear It Away (New York, 1955).
[3] Em Romanos 2:14-15 lemos: “Quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei. Eles mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os”.
[4] Moreno, Antonio, Jung, Gods and Modern Man (Notre Dame, 1970), p.41
[5] Soljenitsin, Alexandre, O Arquipélago Gulad, segundo a tradução inglesa publicada em New York em 1974, p.431.
[6] A energia psíquica é deslocável. Isto significa que pode ser transferida de um processo num sistema particular a outro processo no mesmo ou num diferente sistema. Essa transferência é feita de acordo com os princípios dinâmicos básicos de equivalência e entropia.
[7] Convém salientar que “graça”, do grego karis, significa favor imerecido. Deus nos recebe a despeito de nossos méritos, e perdoa nossos pecados, apenas de merecermos o seu completo abandono. Receber a graça implica admitir a culpa. Em vez de tentar merecer a salvação através de boas obras prescritas pela Lei, rendemo-nos à atuação da graça divina.

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