Por Hermes C. Fernandes
O primeiro passo que precisa ser dado para se combater um
mal é admiti-lo. Mas, infelizmente, há poucas semanas dos jogos olímpicos,
quando o país espera receber milhares de turistas do mundo inteiro, dos quais
uma parcela significativa é feminina, não é nada fácil admitir que exista uma
cultura do estupro instalada em nossa sociedade.
A imprensa internacional está dando um destaque ao
lamentável episódio do estupro coletivo a que foi submetido a jovem de apenas 16
anos, e critica com toda a razão o fato de a imprensa brasileira não dar a
devida importância ao caso, tentando até desacreditar a vítima, levantando suspeitas de que houvesse participado de uma orgia consensual. Tratamento bem diferente foi dado
ao episódio ocorrido na Índia em dezembro de 2012, quando a jovem Nirbahaya
sofreu também um estupro coletivo. A grande mídia brasileira cobriu o episódio em
detalhes, rotulando a Índia como um lugar perigoso para mulheres. Esta mesma mídia tendenciosa se cala sobre o caso
ocorrido no Rio, e sobre outro estupro coletivo ocorrido no Piauí há apenas uma
semana.
O caso ocorrido na Índia repercutiu de tal maneira que provocou mudanças na lei. Com isso em vista, o que devemos esperar de um país onde um deputado diz a uma colega de
parlamento que só não a estupraria por ela não merecer? O que esperar de um país
onde uma bancada parlamentar religiosa resolve criar um projeto de lei para boicotar
a lei que garante o atendimento gratuito na rede pública de saúde para vítimas
de estupro? O que esperar de um país onde a plateia de um programa de TV
aplaude ensandecida a um ator que acaba de confessar haver estuprado uma mulher
depois de deixá-la inconsciente? Este mesmo ator tem a petulância de encontrar-se com o ministro da educação para dar-lhe sugestões para a gestão de sua pasta.
Daí, alguns patriotas de ocasião saem vociferando que não
há uma cultura de estupro no país! Diga isso para cada mulher que é estuprada a
cada 11 minutos no Brasil, de acordo com os dados divulgados pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Diga isso para as 47.646 vítimas somente no
ano passado. Será que tais números seriam suficientemente convincentes
para que admitamos que haja uma cultura do estupro devidamente instalada na
sociedade brasileira?
Primeiro, vamos entender a origem do termo “cultura do
estupro”.
Este termo foi cunhado na década de 70, quando feministas
americanas se empenhavam numa campanha de conscientização da sociedade acerca
da realidade do estupro. Segundo Alexandra Rutherford, doutora em ciência e
psicologia, e especialista em feminismo e gênero, antes que o movimento
feminista trouxesse à baila este assunto, pouco se falava sobre isso. E pior:
acreditava-se que tanto o estupro, quanto a violência sexual doméstica e o
incesto raramente aconteciam.
O número crescente de casos de estupros numa sociedade, bem como a típica reação de parte da população, evidencia a existência de uma cultura de estupro. Não significa que o estupro
seja visto como algo normal, que deva ser praticado e incentivado, mas que a
cultura produz um solo fértil para que ele ocorra com preocupante frequência.
Bem da verdade, a sociedade enxerga com certa condescendência o estupro,
mesmo dizendo-se horrorizada. Esta condescendência se revela cada vez que se
tenta culpabilizar a vítima e isentar o perpetrador como se isso fosse inerente
à sua própria masculinidade.
Pais criam seus filhos meninos para serem predadores, verdadeiros garanhões. Mesmo que não admitam, mas sentem-se orgulhosos de saber que o
filho está “passando o rodo geral". A mulher é vista como um objeto a
ser conquistado, uma égua selvagem a ser dominada e amansada. Obviamente que isso não é
dito abertamente, mas nas entrelinhas, na piadinhas, nas frases de efeito do
tipo “prendam suas cabras que meu bode está solto.”
A mesma cultura que forja a figura do “macho alfa”,
produz a ambiência propícia ao estupro. Meninos crescem ouvindo que quando a
mulher diz não, na verdade está querendo dizer sim. O “não” é apenas um charminho.
Ela quer se pega à força. Ser jogada contra a parede. Forçada. Mulher não gosta
de homem molenga. Mostra pra ela quem é
que manda! Toda mulher tem a fantasia de
ser estuprada. Mulher gosta mesmo é de apanhar... E por aí vai... Alguém ainda ousa dizer que não há uma cultura de estupro?
Tentar embebedar a menina para depois se aproveitar dela
não é estupro? É o quê, então? Mas tudo isso é visto como algo perfeitamente
natural. Nada demais. Coisa de adolescente aloprado.
Muitas mulheres já até se convenceram de que nasceram
para ser presas fáceis nas mãos destes cafajestes. Há uma glamourização da
cafajestice. Não que todo cafajeste seja um estuprador, mas certamente é um forte candidato, visto ser desprovido de qualquer escrúpulo ou freio moral.
Se por um lado, busca-se naturalizar a postura do homem
predador, por outro, busca-se culpabilizar a vítima. Alguma coisa ela fez para
merecer isso!
No caso da jovem
de apenas 16 anos estuprada por 33 homens, as redes sociais ficaram abarrotadas
de acusações que tentavam execrá-la e descreditar seu depoimento. Fotos foram postadas em que ela supostamente aparece com
fuzis. Eu disse “supostamente”, porque foi comprovado que algumas destas fotos
não eram dela. Surgiram depoimentos de supostas amigas que vazaram pelo whatsapp afirmando que ela estava
acostumada a transar com vários homens de uma vez. De uma hora para outra, ela deixou de ser a vítima para
ser a vagabunda, a descarada, que procurou por aquilo, que consome drogas
pesadas, que vive em bailes funk, etc. Ainda que todas estas acusações fossem verdadeiras, não
justificam o crime cometido. Ela poderia ser até uma prostituta que já transara
com 50 de uma vez. Se ela disse não, tem que ser respeitada. E mais: mesmo que houvesse sido consensual, ela é menor de idade, e pelo que consta, estava dopada. Aliás, não foi o primeiro estupro que sofreu. Foi fartamente
noticiado que ela é mãe de uma criança de três aninhos. Logo, foi mãe aos treze
e possivelmente tenha se engravidado aos doze. O nome disso é estupro de vulnerável! Sexo com
menores, sendo ou não consensual, segue sendo estupro.
Porém, nossa cultura está tão impregnada de machismo, que
nem percebemos que ao aderir a este discurso, estamos reforçando-o, adubando assim
o solo onde a cultura do estupro floresce. Não importa o tamanho do short que usava, nem os lugares
que frequentava, ou as drogas que usava. Nada disso diminui a gravidade do
crime.
Houve quem ponderasse sobre o fato de ela não haver
procurado a polícia antes que o vídeo viralizasse. Ora, não sejamos cínicos. A
razão é a mesma pela qual a maioria das vítimas prefere silenciar-se. Elas
sabem do risco que correm de serem culpabilizadas. Por isso, a maioria sofre
calada, sendo estuprada por anos a fio. E nem precisa de um ambiente promíscuo
como um baile funk proibidão. A
maioria é vítima dentre de sua própria casa, por membros da própria família. Outras, a caminho do trabalho ou durante o expediente. Há
até quem tenha sido vítima em ambiente improváveis como igrejas.
Como combater a cultura do estupro? Não basta garantir a
punição severa dos criminosos (castração química, por exemplo). Precisamos recorrer a medidas preventivas. E
isso passa pela família e pela escola. E não será reprimindo ainda mais a mulher, tornando-a
duplamente vítima. Aumentar o comprimento da saia, diminuir o tamanho do
decote, ou coisa parecida, são medidas paliativas que só reforçam a cultura do
estupro. É como dizer que o estuprador tem razão. Que qualquer mulher vestida
de maneira mais atraente está pedindo para ser estuprada. Nada mais ridículo
que isso, não?
Então, o que fazer? Ensinar os meninos a respeitar a mulher
desde cedo. Prepará-los para ser homens de verdade, e não sex machines. Realçar neles o sentimento de
empatia. Ensinar-lhes, por exemplo, que homem também chora. Que isso não é
coisa de mulherzinha. Que a mulher
não é um pedaço de carne pronto para ser devorado. Ela tem sentimentos.
Se o menino não tem contato com seus próprios
sentimentos, ele não respeitará o sentimento de outros, nem mesmo de uma
mulher.
Há que se tratar o problema em suas raízes e para isso, a
educação é imprescindível. Tanto no lar, quanto na escola, as crianças precisam
aprender a respeitar tanto o semelhante, quanto o diferente. Daí a importância
da chamada “educação para a diversidade”, tão combatida por setores religiosos
fundamentalistas, por acharem que se trate de apologia velada à
homossexualidade.
Algo precisa ficar bem claro: estupro não tem nada a ver
com sexo ou desejo sexual. Esta vergonhosa prática tem a ver com uma relação de
poder, na qual os homens, através de um processo de intimidação, mantêm as
mulheres em um estado de medo permanente.
Dizem que o maior receio de um homem ao ser preso é ser
estuprado por seus colegas de cela. Quem dera soubessem que este é o maior
receio da mulher o tempo inteiro. Até mesmo dentro de sua própria casa.
Como pais de duas filhas, desejo deixar-lhes um mundo
menos hostil perigoso do que aquele no qual viveram suas avós. E que meu único
filho homem seja o tipo de homem que toda sogra sonha ter como genro.
Diga não à cultura do estupro, recusando-se a ecoar discursos
machistas que objetificam a mulher. Suas filhas e netas agradecerão.