domingo, maio 29, 2016

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Sim, existe uma cultura do estupro no Brasil




Por Hermes C. Fernandes

O primeiro passo que precisa ser dado para se combater um mal é admiti-lo. Mas, infelizmente, há poucas semanas dos jogos olímpicos, quando o país espera receber milhares de turistas do mundo inteiro, dos quais uma parcela significativa é feminina, não é nada fácil admitir que exista uma cultura do estupro instalada em nossa sociedade.

A imprensa internacional está dando um destaque ao lamentável episódio do estupro coletivo a que foi submetido a jovem de apenas 16 anos, e critica com toda a razão o fato de a imprensa brasileira não dar a devida importância ao caso, tentando até desacreditar a vítima, levantando suspeitas de que houvesse participado de uma orgia consensual. Tratamento bem diferente foi dado ao episódio ocorrido na Índia em dezembro de 2012, quando a jovem Nirbahaya sofreu também um estupro coletivo. A grande mídia brasileira cobriu o episódio em detalhes, rotulando a Índia como um lugar perigoso para mulheres. Esta mesma mídia tendenciosa se cala sobre o caso ocorrido no Rio, e sobre outro estupro coletivo ocorrido no Piauí há apenas uma semana.

O caso ocorrido na Índia repercutiu de tal maneira que provocou mudanças na lei. Com isso em vista, o que devemos esperar de um país onde um deputado diz a uma colega de parlamento que só não a estupraria por ela não merecer? O que esperar de um país onde uma bancada parlamentar religiosa resolve criar um projeto de lei para boicotar a lei que garante o atendimento gratuito na rede pública de saúde para vítimas de estupro? O que esperar de um país onde a plateia de um programa de TV aplaude ensandecida a um ator que acaba de confessar haver estuprado uma mulher depois de deixá-la inconsciente? Este mesmo ator tem a petulância de encontrar-se com o ministro da educação para dar-lhe sugestões para a gestão de sua pasta. 

Daí, alguns patriotas de ocasião saem vociferando que não há uma cultura de estupro no país! Diga isso para cada mulher que é estuprada a cada 11 minutos no Brasil, de acordo com os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diga isso para as 47.646 vítimas somente no ano passado. Será que tais números seriam suficientemente convincentes para que admitamos que haja uma cultura do estupro devidamente instalada na sociedade brasileira?

Primeiro, vamos entender a origem do termo “cultura do estupro”.

Este termo foi cunhado na década de 70, quando feministas americanas se empenhavam numa campanha de conscientização da sociedade acerca da realidade do estupro. Segundo Alexandra Rutherford, doutora em ciência e psicologia, e especialista em feminismo e gênero, antes que o movimento feminista trouxesse à baila este assunto, pouco se falava sobre isso. E pior: acreditava-se que tanto o estupro, quanto a violência sexual doméstica e o incesto raramente aconteciam.

O número crescente de casos de estupros numa sociedade, bem como a típica reação de parte da população, evidencia a existência de uma cultura de estupro. Não significa que o estupro seja visto como algo normal, que deva ser praticado e incentivado, mas que a cultura produz um solo fértil para que ele ocorra com preocupante frequência.

Bem da verdade, a sociedade enxerga com certa condescendência o estupro, mesmo dizendo-se horrorizada. Esta condescendência se revela cada vez que se tenta culpabilizar a vítima e isentar o perpetrador como se isso fosse inerente à sua própria masculinidade.

Pais criam seus filhos meninos para serem predadores, verdadeiros garanhões. Mesmo que não admitam, mas sentem-se orgulhosos de saber que o filho está “passando o rodo geral". A mulher é vista como um objeto a ser conquistado, uma égua selvagem a ser dominada e amansada. Obviamente que isso não é dito abertamente, mas nas entrelinhas, na piadinhas, nas frases de efeito do tipo “prendam suas cabras que meu bode está solto.”

A mesma cultura que forja a figura do “macho alfa”, produz a ambiência propícia ao estupro. Meninos crescem ouvindo que quando a mulher diz não, na verdade está querendo dizer sim. O “não” é apenas um charminho. Ela quer se pega à força. Ser jogada contra a parede. Forçada. Mulher não gosta de homem molenga. Mostra pra ela quem é que manda! Toda mulher tem a fantasia de ser estuprada. Mulher gosta mesmo é de apanhar... E por aí vai... Alguém ainda ousa dizer que não há uma cultura de estupro?

Tentar embebedar a menina para depois se aproveitar dela não é estupro? É o quê, então? Mas tudo isso é visto como algo perfeitamente natural. Nada demais. Coisa de adolescente aloprado. 

Muitas mulheres já até se convenceram de que nasceram para ser presas fáceis nas mãos destes cafajestes. Há uma glamourização da cafajestice. Não que todo cafajeste seja um estuprador, mas certamente é um forte candidato, visto ser desprovido de qualquer escrúpulo ou freio moral. 

Se por um lado, busca-se naturalizar a postura do homem predador, por outro, busca-se culpabilizar a vítima. Alguma coisa ela fez para merecer isso!

No caso da  jovem de apenas 16 anos estuprada por 33 homens, as redes sociais ficaram abarrotadas de acusações que tentavam execrá-la e descreditar seu depoimento. Fotos foram postadas em que ela supostamente aparece com fuzis. Eu disse “supostamente”, porque foi comprovado que algumas destas fotos não eram dela. Surgiram depoimentos de supostas amigas que vazaram pelo whatsapp afirmando que ela estava acostumada a transar com vários homens de uma vez. De uma hora para outra, ela deixou de ser a vítima para ser a vagabunda, a descarada, que procurou por aquilo, que consome drogas pesadas, que vive em bailes funk, etc. Ainda que todas estas acusações fossem verdadeiras, não justificam o crime cometido. Ela poderia ser até uma prostituta que já transara com 50 de uma vez. Se ela disse não, tem que ser respeitada. E mais: mesmo que houvesse sido consensual, ela é menor de idade, e pelo que consta, estava dopada. Aliás, não foi o primeiro estupro que sofreu. Foi fartamente noticiado que ela é mãe de uma criança de três aninhos. Logo, foi mãe aos treze e possivelmente tenha se engravidado aos doze. O nome disso é estupro de vulnerável! Sexo com menores, sendo ou não consensual, segue sendo estupro.

Porém, nossa cultura está tão impregnada de machismo, que nem percebemos que ao aderir a este discurso, estamos reforçando-o, adubando assim o solo onde a cultura do estupro floresce. Não importa o tamanho do short que usava, nem os lugares que frequentava, ou as drogas que usava. Nada disso diminui a gravidade do crime.

Houve quem ponderasse sobre o fato de ela não haver procurado a polícia antes que o vídeo viralizasse. Ora, não sejamos cínicos. A razão é a mesma pela qual a maioria das vítimas prefere silenciar-se. Elas sabem do risco que correm de serem culpabilizadas. Por isso, a maioria sofre calada, sendo estuprada por anos a fio. E nem precisa de um ambiente promíscuo como um baile funk proibidão. A maioria é vítima dentre de sua própria casa, por membros da própria família. Outras, a caminho do trabalho ou durante o expediente. Há até quem tenha sido vítima em ambiente improváveis como igrejas.

Como combater a cultura do estupro? Não basta garantir a punição severa dos criminosos (castração química, por exemplo). Precisamos recorrer a medidas preventivas. E isso passa pela família e pela escola. E não será reprimindo ainda mais a mulher, tornando-a duplamente vítima. Aumentar o comprimento da saia, diminuir o tamanho do decote, ou coisa parecida, são medidas paliativas que só reforçam a cultura do estupro. É como dizer que o estuprador tem razão. Que qualquer mulher vestida de maneira mais atraente está pedindo para ser estuprada. Nada mais ridículo que isso, não?

Então, o que fazer? Ensinar os meninos a respeitar a mulher desde cedo. Prepará-los para ser homens de verdade, e não sex machines. Realçar neles o sentimento de empatia. Ensinar-lhes, por exemplo, que homem também chora. Que isso não é coisa de mulherzinha. Que a mulher não é um pedaço de carne pronto para ser devorado. Ela tem sentimentos.

Se o menino não tem contato com seus próprios sentimentos, ele não respeitará o sentimento de outros, nem mesmo de uma mulher.

Há que se tratar o problema em suas raízes e para isso, a educação é imprescindível. Tanto no lar, quanto na escola, as crianças precisam aprender a respeitar tanto o semelhante, quanto o diferente. Daí a importância da chamada “educação para a diversidade”, tão combatida por setores religiosos fundamentalistas, por acharem que se trate de apologia velada à homossexualidade.

Algo precisa ficar bem claro: estupro não tem nada a ver com sexo ou desejo sexual. Esta vergonhosa prática tem a ver com uma relação de poder, na qual os homens, através de um processo de intimidação, mantêm as mulheres em um estado de medo permanente.

Dizem que o maior receio de um homem ao ser preso é ser estuprado por seus colegas de cela. Quem dera soubessem que este é o maior receio da mulher o tempo inteiro. Até mesmo dentro de sua própria casa.

Como pais de duas filhas, desejo deixar-lhes um mundo menos hostil perigoso do que aquele no qual viveram suas avós. E que meu único filho homem seja o tipo de homem que toda sogra sonha ter como genro.

Diga não à cultura do estupro, recusando-se a ecoar discursos machistas que objetificam a mulher. Suas filhas e netas agradecerão. 

7 comentários:

  1. Pastor, parabéns e muito obrigada pela sensibilidade e clareza cognitiva de suas palavras! Já repeti várias vezes entre os meus: esses últimos episódios de estupro são as pontas de um iceberg q tende a crescer se nós, enquanto sociedade, não tomarmos medidas imediatas.

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  2. Poxa adoro teus textos nem parece pastor... tão lúcido... tão pé no chão.

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  3. Culpar a roupa da vítima é apelar pra uma justificativa bastante usada no oriente médio pelos partidários da burca, em que pese por lá a burca igualmente não constituir maior empecilho à prática do estupro. Considerando a selvageria que alguns apoiam, aos moldes dos linchamentos aplaudidos nas redes sociais, talvez fosse indicado que o governo federal trouxesse o programa de volta para o meu Iraque, onde poderiam se deliciar desmedidamente os partidários de tais sandices.

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  4. Pois é, pastor o senhor se orgulha de comentário como o do Unknown? Pois ele(a) acha pastor um doido que vive nas nuvens, afinal o senhor é pastor ou não?

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  5. Anônimo11:09 AM

    pastor, o senhor esqueceu: O que esperar de um país onde o ex-presidente diz que uma mulher recebeu a visita de 05 homens e achou que era um presente de Deus?

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  6. Anônimo2:16 PM

    Não sei exatamente o que quer dizer “cultura do estupro”, mas suspeito que tal frase tem mais uma conotação ideológica do que uma manifestação em defesa da vítima. Acredito que o tema está mais associado à defesa de interesses ideológicos-cultural do que uma proposta para enfrentar a realidade do problema. Talvez estejamos a confundir “cultura do estupro” com “cultura machista”, como se essa, necessariamente, fosse a causa daquela.
    O Estupro é uma imoralidade sexual que existe desde que o mundo é mundo, assim como o homicídio, o adultério, o incesto, a pedofilia. Então, por que não vemos nas redes sociais e na mídia campanhas contra estes outros crimes, que são tão hediondos como àquele? Quantas crianças, de 02, 03, 04... anos são estupradas no Brasil por seus pais, enteados, tios, etc. há muitos anos? E não vemos nenhuma mobilização contra esta monstruosidade? Acho que existe um interesse escuso, oculto, por detrás desta atual comoção social. Ou melhor, é uma comoção dirigida, coordenada para atender uma agenda ideológica específica.
    Neste passo, existem os conservadores e os religiosos, fundamentalistas que interpretam os fatos como um problema individual, na esfera da responsabilidade exclusiva dos envolvidos. Os estupradores são homens entregues aos seus desejos mais primitivos e a vítima tem um comportamento fora dos padrões morais aceitáveis, vive uma vida desregrada, sem base familiar, frequenta os bailes funks, é usuária de drogas, enfim, uma vítima do sistema em que está inserida. Na verdade, é contra tudo isto que se insurge os defensores da tal “cultura do estupro”. Ou seja, estes não estão preocupados com a dor física e psicológica da vítima, mas, a real intenção é se apropriar do fato em si, para combater o “padrão” destes fundamentalistas.

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  7. O assunto do momento na mídia nos últimos dias é o estupro da jovem de 16 anos. E muita coisa sem sentido tenho ouvido.

    Uma coisa precisa ser dita: apesar do estilo de vida que a jovem levava, nada, absolutamente nada!, no comportamento da jovem justifica o estupro.

    Como cristão, nesse episódio, sinto profunda tristeza pelo animalesco ato e em ver como o sexo é tratado e praticado por boa parte da sociedade.

    De outro lado, o movimento feminista aproveitou para fazer barulho: “Eu luto contra a cultura do estupro”.

    Aí eu descordo do senhor.

    O seu texto do senhor, que não parece ser resumido, não conseguiu trazer uma definição precisa do termo "cultura do estupro". Sua tentativa é explicar o termo por exemplos que podem ser facilmente confundidos com outros termo como o machismo, por exemplo.

    Qual seria a definição para termo “cultura de estupro”? Em que ele ajuda as mulheres violentadas.

    Em artigo publicado na revista Time (em 2014), sobre estupros nas universidades norte-americanas, a RAINN (Rape, Abuse & Incest National Network), principal organização que combate e luta na prevenção de estupros nos EUA, afirma que:

    “Nos anos recentes, tem havido uma tendência despropositada de culpar a "Cultura do Estupro" pelos extensos problemas de violência sexual nas universidades. Enquanto é útil apontar as barreiras sistêmicas para lidar com o problema, é importante não perder de vista um simples fato: o estupro não é causado por fatores culturais, mas pelas decisões conscientes de um pequeno percentual da comunidade de cometer um crime violento.”

    Não há cultura de estupro.

    Eu já trabalhei em presídios e testemunho que até mesmo entre os criminosos o estupro é visto como algo condenável (isso não é novidade pra ninguém). Os estupradores ou ficam em celas separadas dos demais presos ou pagarão caro, sendo violentados e executados pelos próprios presidiários.

    Então qual é o problema?

    O que existe é uma cultura que vulgariza o sexo e faz com que o corpo vire um objeto consumível e descartável. Também podemos culpabilizar (lembrando que culpa é diferente de dolo) o feminismo. A culpa do movimento feminista se dá por ver esse tipo de comportamento partindo das mulheres pós-modernas, pois, em seu discurso, o feminismo promoveu uma libertação sexual que serviu apenas para intensificar a objetização feminina e promover uma “cultura do sexo animalesco e irresponsável”.

    Quando pensamos no estupro ou temos a oportunidade de ouvir um depoimento de quem o sofreu, podemos identificar as palavras “desonra, ferimento e destruição da vida”. Mulheres que passam por tal trauma, muitas vezes, não conseguem mais ter uma vida normal, tendo sonhos e projeções destruídas por conta da violência que sofreram.

    Assim sendo, devemos lutar para que haja maior severidade na punição dos estupradores. Essa é uma maneira legítima e sensata de combater essa prática horrenda. Falar em “cultura de estupro” pode até dar visibilidade a uma pauta ideológica, mas é só. O termo em nada contribui - eficazmente - para minorar o crime, exercer a justiça e apoiar as vitimas.

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