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sexta-feira, abril 21, 2017

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Um país carente de heróis, mas não postiços



Por Hermes C. Fernandes


"Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder." Cazuza.


"Um Che Guevara você só para na bala. Um Martin Luther King Jr. 
você só para na bala. Um Gandhi você só para na bala. 
Para outros, um cargo no Planalto, uma garrafa de whisky, 
uma mulher, ou uma mala de dinheiro são suficientes." 
Ed René Kivitz, téologo brasileiro

Toda sociedade que se preze tem seus heróis. São eles que, além de reforçarem a identidade nacional, inspiram novas gerações a lutarem por seus ideais. Uma sociedade sem referências está fadada a experimentar uma sensação de orfandade, algo parecido com o que Israel sentiu ao reivindicar de Deus um rei, já que cada nação tinha o seu.

O Brasil é um país carente de heróis. E não é por não existirem ou não terem existido. Nossa história está repleta de personagens que lutaram bravamente por uma sociedade mais justa, livre e soberana. Então, por que não são celebrados? Em vez disso, muitos deles são propositadamente sabotados, pintados como vilões, monstros sanguinários, terroristas, bêbados, daqueles que merecem ser esquecidos tamanha a vergonha que nos causa.

Getúlio Vargas, o pai dos pobres

É difícil entender a razão de não celebrarmos, por exemplo, a memória de Getúlio Vargas, conhecido como pai dos pobres, enquanto os EUA celebram com orgulho a memória de George Washington e Abraham Lincoln. O homem que garantiu os direitos trabalhistas, que industrializou o país, acabou relegado ao esquecimento. O mesmo se dá com Juscelino Kubitschek, construtor de Brasília. 

Os países que buscam exercer hegemonia sobre os demais sabem do perigo que é permitir que cada nação tenha seus próprios heróis, pois temem que estes possam inspirar eventuais insurreições do seu povo. Por isso, medidas preventivas são tomadas para coibir o surgimento destas figuras heroicas. Para preencher o vácuo, não raras vezes, heróis postiços são forjados sob medida, algo como “o caçador de marajás”, que de uma hora para outra, tornou-se quase numa unanimidade no país. Fernando Collor de Mello surge repentinamente no cenário político nacional, fisgando, com seu discurso ensandecido,  a confiança de um povo carente de esperança. Deu no que deu. Os mesmos que o forjaram, derrubaram-no quando este ousou contrariar seus interesses. 

Hoje, dia 21 de abril, celebramos a memória de Tiradentes, o herói da inconfidência mineira. Você já se perguntou a partir de quando Tiradentes passou a ser visto como um herói nacional? Para aqueles que o enforcaram, ele não passava de um vigarista, um trapaceiro, um infame traidor da coroa portuguesa. Por muitos anos, a imagem que prevaleceu foi esta.  Ainda hoje, há quem se dedique a macular sua imagem, alegando, entre outras coisas, que ele se opunha à abolição da escravidão, e que sua luta não era pela independência do Brasil, mas apenas de Minas Gerais. Sem contar, teorias aparentemente mirabolantes que afirmam que ele nem sequer chegou a ser enforcado. Enquanto outro tomava seu lugar no cadafalso, Tiradentes fugia para a França, onde teria vivido confortavelmente com uma identidade falsa.  Se esta teoria estiver correta, o Tiradentes ensinado nas escolas jamais existiu. Trata-se apenas de uma história inventada pelos republicanos do século XIX para tentar legitimar o golpe militar que engendraram, e que foi reforçada pelos ditadores militares entre as décadas de 1960 e 1980.
Tiradentes

Quem seria o verdadeiro Tiradentes, afinal, o que estampa nossos livros de história com uma fisionomia que lembra o Cristo, ou o revelado por seus detratores? Talvez nunca saberemos. Ainda que ele fosse um legítimo herói nacional, para aqueles que o enforcaram, ele não passava de um traidor obstinado.  Assim como Sansão e Davi, ambos heróis dos hebreus, mas vilões dos filisteus.  

Aprendi com o filme “Coração Valente” que a história é a versão dos vencedores.  William Wallace, celebrado no filme estrelado por Mel Gibson, foi considerado herói dos escoceses, mas ainda visto como um vilão traidor para a coroa inglesa.

Não há heróis que gozem de unanimidade em ambos as trincheiras. Alguns não são unanimidade nem mesmo entre seu próprio povo. Tomemos por exemplo Nelson Mandela. Se você imagina que o homem que derrotou o regime de segregação do Apartheid na África do Sul é celebrado por todos naquele país, você está redondamente enganado. Ainda hoje, Mandela é odiado, principalmente pela classe dominante. Chamam-no de comunista, terrorista, corrupto, e daí para baixo. O mundo inteiro o celebra, menos seu próprio povo, ou parte dele.  

Martin Luther King, Jr
E o que dizer de Martin Luther King? Enquanto morei nos EUA, pude presenciar o desconforto que era, principalmente para famílias brancas, terem que comemorar um feriado dedicado ao pastor responsável pela conquista dos direitos civis dos negros americanos. Para muitas delas, Luther King não passava de um embuste. Espalharam até que, além de comunista, ele também era promíscuo, e teria sido morto durante uma orgia com várias prostitutas. Porém, aqueles que se beneficiaram de sua luta consideram-no seu grande herói.  

De Mahatma Gandhi, o maior pacifista do século XX, dizem que mantinha um caso homossexual, mesmo estando casado.  De Madre Teresa de Calcutá, mulher que dedicou sua vida a cuidar de leprosos na Índia, dizem que era endemoninhada, temperamental e intratável.

Por isso, sempre olho com reservas qualquer tipo de tentativa de difamar alguém que tenha lutado por um mundo mais justo. Se foram vilões para os impérios que combateram, certamente foram heróis de povos que libertaram ou pelo qual lutaram.

Alguns foram guerrilheiros. Enfrentaram bravamente poderios bélicos para libertar seus respectivos povos. Odiados por seus inimigos, seguem amados por seu povo.

Infelizmente, não vemos muito disso no Brasil. A mídia conseguiu nos convencer de que alguns célebres expoentes de nossa brava gente brasileira não passaram de terroristas cruéis, que em nome de sua ideologia mataram, assaltaram bancos, sequestraram autoridades de outros países, etc.  Tentam nos convencer de que o objetivo deles era implantar aqui uma ditadura comunista bem ao estilo da que havia no Leste Europeu e em Cuba. Muitos deles foram assassinados, não em combate, mas friamente, depois de sessões de tortura. Quando se fará justiça à memória dessa gente, cuja maioria morreu ainda na flor da idade? Quando o país reconhecerá sua grandeza? Nem todos impuseram armas. Alguns lutaram em outras frentes contra um regime totalitário, responsável pela morte e desaparecimento de muitos. Entre eles, alguns religiosos como o Frei Betto e seu irmão, Frei Tito, que acabou se suicidando devido à profunda depressão sofrida após sessões de tortura (para entender melhor este triste episódio de nossa história, assista ao filme "Batismo de Sangue").

Dom Óscar Romero
Recentemente, o Papa Francisco (que também já está sendo acusado de ser comunista!) anunciou a reabertura do processo de canonização de Dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador (1977-1980). Em uma de suas homilias, Dom Romero afirmou que a missão da igreja é identificar-se com os pobres.  Na véspera de seu assassinato, fez um contundente  pronunciamento contra a repressão em seu país: “Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes: cessem a repressão.” Aquilo foi a gota d’água. Óscar Romero foi assassinado enquanto celebrava a missa em 24 de março de 1980 por um atirador de elite do exército salvadorenho, treinado na Escola das Américas. Apesar de ser de tradição protestante, celebro a canonização do Romero por reconhecer seu árduo trabalho em defesa dos excluídos de sua nação.

No Brasil, tivemos Dom Hélder Câmara, que militou bravamente contra a opressão social no país. Certa vez, o arcebispo de Olinda disse: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Quando pergunto por que são pobres, chamam-me de comunista.” O Vaticano já autorizou a abertura de processo de beatificação do Dom Hélder. Homens como Romero e Câmara me inspiram em minha luta contra a desigualdade social. Porém, eles não são os únicos. Na trincheira política, temos gente como Darcy Ribeiro, que dedicou sua vida à educação e à causa indígena. Poucos homens fizeram tanto pelas nossas crianças do que ele. Mas como não era um aliado da mídia, provavelmente ficará no ostracismo. Num momento de frustração, Darcy Ribeiro disse:

"Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu."

Leonel de Moura Brizola
E o que dizer de Leonel Brizola, o homem que que obteve direito de resposta no Jornal Nacional e teve sua fala narrada por Cid Moreira (assista aqui)? Ele foi o responsável por revolucionar a educação no estado do Rio, construindo mais de 500 escolas de tempo integral (CIEPS). É dele a célebre frase: "Devemos investir nas crianças, para que as novas gerações tenham, sobretudo, a coragem para fazer aquilo que não fizemos." Lembro-me de que à época, espalharam que as crianças eram ensinadas a rezar pela merenda agradecendo a Brizola no lugar de Deus. É assim que agem os detratores, os que preferem manter nosso povo órfão de heróis. Para ridicularizá-lo, seus oponentes adoravam contar do episódio em que teve que fugir do Brasil para o Paraguai vestido de mulher. 

A sessão plenária que votou o processo de impeachment da presidente Dilma, deixou o povo brasileiro horrorizado com o nível de seus deputados. A maioria ao se dirigir ao microfone, dedicava seu voto aos familiares ou ao seu estado de origem. Porém, dois parlamentares chamaram a atenção ao dedicarem seus votos. Um deles foi Jair Bolsonaro que dedicou seu voto a dois personagens controversos: Duque de Caxias e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador durante o regime militar. Duque de Caxias tem sido celebrado como herói nacional e patrono do exército brasileiro. Liderou a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) na Guerra do Paraguai. Os três países mais ricos da América do Sul, insuflados pela Inglaterra, dizimaram, sob o comando de Caxias, 90% da população paraguaia, no maior genocídio da história da América Latina. E sabe por qual motivo? O Paraguai estava começando a incomodar a coroa inglesa por sua rápida industrialização. Obviamente, esse não foi o motivo oficial alegado. Mas o que causou verdadeira repulsa foi a homenagem que Bolsonaro prestou ao coronel Ustra, a quem chamou de "o terror da Dilma". Isso, porque foi ele o responsável por torturá-la quando ela tinha apenas 22 anos. De acordo com o depoimento de um companheiro do DOI-CODI, Ustra era conhecido como o "senhor da vida e da morte", que "escolhia quem ia viver e ia morrer." Suas sessões de tortura tinham requintes de crueldade, com choques nos órgãos genitais, e ratos vivos no ânus ou na vagina das mulheres. Nem crianças eram poupadas destas sessões de horrores.

Olga Benário
O outro parlamentar que chamou a atenção foi o deputado Glauber Braga que além de insultar o presidente da Câmara Eduardo Cunha, chamando-o de gangster, dedicou seu voto à memória daqueles que nunca escolheram o lado fácil da história, dentre eles Marighela, Plínio de Arruda Sampaio, Evandro Lins e Silva, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Olga Benário, Brizola e Darcy Ribeiro, Zumbi dos Palmares. 

A partir daí, sempre que alguém criticava a menção feita por Bolsonaro, outro rebatia dizendo que piores foram as menções de Glauber Braga. Não foram poucos que nas redes sociais saírem em defesa do coronel Ustra, alegando que o mesmo combatia terroristas da pior espécie, gente perigosa como o assassino Marighela. Outros questionavam qual seria a diferença entre o que era feito pelos militares e por aqueles que eles se propunham combater. Os dois lados praticaram atrocidades. Verdade. Não há o que questionar. Porém, há uma enorme diferença. Ustra e seus asseclas praticavam torturas e assassinatos em nome do estado repressor. Homens como Carlos Marighela e Luís Carlos Prestes se engajaram na luta em resistência a este estado. O que os movia era um ideal. Se estes guerrilheiros eram bancados pelo império soviético, como geralmente se diz, por que precisariam assaltar bancos em busca de recursos para bancar sua luta? Temos que encarar os desatinos que eles cometeram como crimes políticos, não comuns. Não eram movidos por avareza, mas por um ideal. É óbvio que não apoio tal conduta. Eles erraram. Bastava que fossem presos, julgados e sentenciados. Mas em vez disso, foram torturados, assassinados, e muitos tiveram seus corpos lançados ao mar para jamais serem encontrados. Isso é desumano. Claro que a reação seria proporcional. Apesar de condenar suas atrocidades,não posso fazer vista grossa ao ideal pelo qual lutavam. Posso até não comungar de sua ideologia, nem de seus métodos desastrosos e criminosos, mas comungo da utopia que os movia, o sonho de um mundo mais justo e solidário. Eles lutaram pelo seu país. Não eram bandidos, terroristas, monstros desalmados, mas em sua maioria, jovens sonhadores e revolucionários.

Deitrich Bonhoeffer
Quando  perseguido pelo nazismo, Deitrich Bonhoeffer, o célebre teólogo alemão, escreveu um tratado considerado uma das maiores obras primas do protestantismo, que recebeu o nome de "Ética". Nesta obra, ele justifica seu engajamento na resistência alemã anti-nazista e seu envolvimento na luta contra Adolf Hitler, dizendo que: "É melhor fazer um mal do que ser mau." Bonhoeffer, que também era pastor, foi considerado um terrorista pelos nazistas e acabou condenado à morte após participar de uma tentativa de assassinato de ninguém menos que Hitler. Devemos concordar com os nazistas e achar que Bonhoeffer não passava de um bandido? Então, por que fazemos isso com os que resistiram bravamente à ditadura militar no Brasil? 


Zumbi dos Palmares
E o que dizer de Zumbi dos Palmares, também citado pelo parlamentar? Já cansei de ouvir ou ler que Zumbi também tinha escravos, e que, portanto, não serve para ser herói da população negra do Brasil. Quem somos nós para eleger os heróis de uma etnia? No imaginário popular, Zumbi foi a resistência. Isso não significa que ele tenha sido perfeito. Cada um é filho de seu próprio tempo. 

Quem sabe o tempo se encarregue de reabilitar alguns que hoje sofrem a ojeriza do mesmo povo pelo qual lutou.  Se Tiradentes se tornou herói, por que não quem conseguiu tirar 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza? Como explicar que Lula goze de tanta credibilidade lá fora, e aqui, mesmo depois de terminar seu governo com o maior índice de popularidade da história (82% de aprovação), tem sido tão hostilizado? Como explicar que uma mulher que aos 22 anos foi torturada, levou choques elétricos em sua genitália, teve dentes quebrados a soco, tornou-se na primeira mulher a ocupar a presidência do país, hoje é xingada pela mesma gente pela qual lutou? 

Che Guevara
Acho que Malcolm X, contemporâneo de Luther King, nos oferece uma resposta: "Se você não tomar cuidado, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as que estão oprimindo." Portanto, antes de torcer o nariz cada vez que ouvir nomes como o de Che Guevara, Simón Bolívar e outros, verifique se o que você sabe acerca deles não é uma vil tentativa de difamar os heróis de seus respectivos povos. Desconfie de tudo o que diz qualquer império midiático. Da mesma maneira que conseguiram nos convencer que Che Guevara é um monstro, tentam fazer isso com Luther King em seu próprio país. O mesmo com Gandhi e com Mandela, como citei acima. Para o restante da América Latina, Che é visto como herói. Até os europeus o reverenciam. Ele foi o cara que calou a ONU. Mas aqui, ele é um monstro, matador de gays, etc. A gente prefere reverenciar Diego Maradona, Pelé e Ayrton Senna. O mesmo preconceito raso se aplica a Simón Bolívar. Quer xingar alguém no cenário político? Chame-o de bolivariano. Mas quem foi Bolívar? O cara que peitou a coroa espanhola e lutou pela independência de suas colônias na América do Sul. É claro que é melhor para o yankees pintá-lo como um vigarista sanguinária. 

O que me assusta é ver o povo elegendo heróis que poderão se tornar em breve seus algozes. Homens que desdenham das minorias, que não respeitam mulheres, nem negros, nem homossexuais. Deus que nos livre desta sina. 

Que tal lermos um pouco mais bons livros de história, e menos revistas tendenciosas à serviço de interesses nada altruístas?  #ficadica

quarta-feira, maio 18, 2016

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Por que cristãos demonizam Karl Marx?




"Jesus faz milagres e dá. O homem não faz milagres, e vende."


O pastor Ed René Kivitz se atreveu a publicar em seu perfil no facebook  a seguinte citação de Karl Marx:
"Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e se pode vender. O tempo em que as próprias coisas que até então eram coparticipadas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas - virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. Agora de tudo isso se faz comércio. Irrompeu o tempo da corrupção universal ou, para falar em termos de economia política, inaugurou-se o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, uma vez tornada valor venal, é levada ao mercado para receber seu preço."
Pergunto: alguma inverdade no trecho acima? Algo que contradiga nossa fé e prática cristãs? Quando li as reações nos comentários, fiquei a imaginar se as mesmas seriam diferentes se em vez de atribuir o texto a Marx, ele o atribuísse a algum autor cristão incensado entre os evangélicos, em especial, os reformados.

Propus, então, fazer um teste em  meu próprio perfil.

Publiquei várias frases de Marx, atribuindo-as a João Calvino, Martinho Lutero, Charles Spurgeon, John Stott e Agostinho. Um bocado de gente curtiu e compartilhou, sem imaginar seu verdadeiro autor. Publiquei também frases destes mesmos autores, porém, atribuindo-as a Marx. Obviamente, muitos também curtiram. Entretanto, as críticas vieram e foram duras. 

Por exemplo: "A família é a fonte da prosperidade e da desgraça dos povos." Esta frase é do reformador Martinho Lutero. Mas como estava atribuída a Karl Marx, houve quem comentasse: "Família e a base de Deus entre os que ele criou, homens e mulheres. Karl Maxx era um apócrifo imbecil. Era morreu, e com ele suas idéias idiotas" (sic).

Outra frase que atribuí ao sociólogo alemão é de autoria do príncipe dos pregadores C.H. Spurgeon: "Não creia em metade do que você ouve; não repita metade do que você crer; quando ouvir uma notícia negativa divida-a por dois, depois por quatro, e não diga nada acerca do restante dela." Lindíssima frase, não? Mas como estava assinada por Marx, gerou foi confusão. Num dos comentários, lia-se: "Vdd...a vida dele mostra quem ele foi...Marx teve apenas um trabalho fixo e, embora fosse estudioso... Por esse amor, ele aceitou a morte de quatro dos sete filhos, duas filhas se suicidaram, e que dependeu financeiramente da mulher durante os 16 anos que se dedicou a escrever "O Capital". UM EXEMPLO, SÓ QUE NÃO" (sic). Outro comentário dizia: "Sujeito ordinário, preguiçoso e imoral, que não conseguiu sequer colocar a própria vida em ordem. É este pilantra, em muitos aspectos similar ao Lulla, o criador do sistema que tem a pretensão de trazer a solução para o mundo? Pois é. Cada um tem a referência que merece" (sic).

O que tudo isso tem a ver com as frases? O fato de ter tido uma biografia desastrosa, como teve tantos outros, inclusive cristãos, porventura desabona qualquer lampejo de genialidade que tenha tido? O fato de Sócrates ter se suicidado desfaz toda a sua filosofia? Fico a me perguntar se a maioria de seus críticos já reservou um tempinho para ler uma linha de "O Capital". Provavelmente, não. Estavam ocupados assistindo aos vídeos do grande mestre astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho, ou lendo seu maravilhoso livro "O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota." (Antes que me perguntem se já o li, minha resposta é não. Não me apetece. As coisas que assisti em seus vídeos foram suficientes para que formasse um juízo acerca de suas ideias).

Até quando comeremos com as mãos dos outros? Quem recebeu procuração para pensar por nós? Conheço calvinistas que nunca leram uma linha das Institutas ou do Sínodo de Dort. Citam Agostinho sem jamais terem lido "Confissões" ou "A Cidade de Deus."  Detonam Darwin sem terem lido nem o prefácio de "A origem das espécies". Criticam acidamente Simone De Beauvior sem nunca terem lido "O segundo sexo" (mesmo porque, a grossura do volume é assustadora! rs). Caem de pau no coitado do Paulo Freire (celebrado no mundo inteiro!), mas nunca leram "Pedagogia do Oprimido". Desdenham de Foucault sem terem lido "Vigiar e Punir" ou "A Arqueologia do Saber".

Não estou dizendo com isso que todos temos a obrigação de ler tudo isso. Mas se formos honestos, ao menos, procuraremos nos inteirar de algumas ideias antes de sair por aí combatendo-as com frases prontas que ouvimos de terceiros.

Alguns dos que criticaram as frases falsamente atribuídas a Marx, curtiram e até compartilharam frases de sua autoria, porém, falsamente atribuídas a alguns dos grandes ícones cristãos. Abaixo, algumas delas:

"De cada um, de acordo com as suas habilidades, a cada um, de acordo com as suas necessidades." (atribuí a John Stott). 
"Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária." (atribuí a Agostinho). 
"Se uma pessoa ama sem inspirar amor, isto é, se não é capaz, ao manifestar-se uma pessoa amável, de tornar-se amada, então o amor dela é impotente e uma desgraça." (atribuí a Spurgeon).

"Os olhos que só enxergam a mentira quando percebem a verdade, cegam." (atribuí a Lutero). 
"Quem usa o nome da justiça para defender seus erros é capaz de muito mais para desvirtuar um direito." (atribuí a Calvino...rs).

Espero que nenhum dos meus amigos que curtiram qualquer das citações se sinta aborrecido comigo. Foi, digamos, um experimento... E que demonstrou que, de fato, ainda há muito preconceito entre nós, inclusive, de cunho intelectual.

Vira e mexe, sou chamado de Marxista, principalmente, quando saio em defesa das minorias, ou quando denuncio injustiças, e mais recentemente, ao posicionar-me contra o impeachment. O que me consola é saber que eu, Kivitz, Ariovaldo e tantos outros, não somos os únicos a lidar com a mentalidade tacanha que insiste em prevalecer em alguns setores cristãos. Dom Helder Câmara dizia que quando ele alimentava os pobres, chamavam-no de santo, mas ao questionar a razão da pobreza, chamaram-no de comunista. Fazer o quê? Ossos do ofício...rs

É mais fácil rotular do que debater ideias. Rotulando, encerra-se a discussão. Posso garantir, mesmo não sendo marxista, que quem ler Marx desprovido de preconceito, poderá sentir-se constrangido ao encontrar em seus escritos mais de cristianismo do que em muitos escritores cristãos. O mesmo se dá com Nietzsche, Sartre, Voltaire, Espinoza, Freud, Jung e tantos outros. Experimente ler também Rubem Alves, Leonardo Boff, Frei Betto e Teresa d'Ávila com a mesma disposição com que lê Agostinho (se é que lê o bispo de Hipona). Aproveite e leia o rabino Nilton Bonder (ele me surpreendeu! principalmente com "A alma imoral"). Vai por mim... deixe de lado a teologia enlatada "made in USA" e varie um pouco seu cardápio de leitura. Garanto que fará bem à sua alma. 

A propósito, sabe de quem é a frase postada no cabeçalho do meu post? Dele mesmo. Do miserável do Marx! Alguém ousa discordar do velho barbudo? Aliás, Karl Marx faz parte do dileto grupo dos cinco judeus que mudaram o mundo, ao lado de Jesus, Moisés, Einstein e Freud. Dorme com um barulho desses...rs

E responde à pergunta do post: talvez demonizemos tanto Marx porque suas teorias acabam revelando que não somos tão cristãos como deveríamos ser. Como disse um tal Martin Luther King, "só existe o comunismo porque não somos suficientemente cristãos." Podíamos dormir sem essa, não?