quarta-feira, janeiro 13, 2021

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A CULTURA DO CANCELAMENTO E O TRIBUNAL DAS REDES SOCIAIS

Por  Hermes C. Fernandes

O termo cultura do cancelamento tem ganhado destaque nos últimos anos no ambiente virtual e diz respeito à resposta dada por internautas a políticos, artistas, esportistas, empresas, influenciadores digitais ou qualquer outra figura pública (inclusive líderes religiosos) com o objetivo de provocar uma debandada de seguidores em reação a algum tipo de postura considerada condenável, ofensiva ou preconceituosa.

Trata-se, portanto, de uma espécie de tribunal cibernético. Trocando em miúdos: alguém se depara com uma ação que considera errada nas redes sociais; registra esta falha e posta para os seus seguidores com críticas ácidas (às vezes, desproporcionais). Em pouco tempo, cria-se uma onda de protestos que conta com a adesão de milhares de internautas, muitos deles, formadores de opinião. O estrago está feito. A pessoa criticada passa a sofrer um “cancelamento”, perdendo seguidores em ritmo acelerado. 

Não haveria punição pior para os que vivem em função de sua imagem e da repercussão de seu trabalho pelas redes sociais. 

A "cultura do cancelamento" tem sido tão marcante que o dicionário australiano Macquarie a elegeu como a palavra do ano de 2019, classificando-a como  "uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”.

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, a definição do termo "cancelar" é "destruir a força, efetividade ou validade". Portanto, quando uma pessoa diz que está cancelando uma celebridade, é isso que ela está intentando fazer.

Quais as origens desse fenômeno? O que levaria alguém a ser cancelado? A cultura do cancelamento realmente funciona? Haveria precedentes que remontem a eras anteriores à cibernética?

Cancelar representa um ataque à reputação do alvo. Ele pode perder o emprego ou um contrato, perder seguidores e ter baixas representativas que afetam tanto a sua vida profissional, quanto a pessoal. 

Argumentos favoráveis à cultura de cancelamento afirmam que o movimento faz com que as manifestações das figuras públicas nas redes sociais sejam mais responsáveis. Mas seus críticos dizem que, apesar da ideia sugerir uma nobreza de intenção, na prática pode apresentar problemas, sobretudo, quando não se oferece à pessoa cancelada a oportunidade de se redimir ou de se desculpar. Sem contar que um dos elementos que podem levar a tal veredito são as fake news divulgadas por haters, trolls ou mesmo por alguém que se beneficie deste cancelamento, como por exemplo, uma empresa concorrente. 

Portanto, o cancelamento pode ser uma ferramenta útil, desde que usada com responsabilidade. Não há razão, por exemplo, de repercutir discursos de ódio, exceto com o objetivo de expô-los e contradizê-los. 


Encontramos diversas orientações bíblicas acerca disso. O próprio Jesus diz: “Não julgueis pela aparência, mas julgai segundo o reto juízo” (João 7:24). Nem tudo é o que parece. 

Por outro lado, temos que saber separar. Não preciso cancelar um artista por discordar de seu posicionamento político, a menos que ele mesmo esteja usando de sua fama para disseminar ódio e intolerância. Há que se tomar os devidos cuidados para não jogar fora a criança com a água do banho. O apóstolo Paulo diz que devemos examinar tudo, retendo o que for bom (1 Tessalonicenses 5:21). Mas por outro lado, também não podemos fazer vista grossa a certas posturas simplesmente por admirarmos a uma personalidade do mundo artístico, político ou esportivo. 

Segundo o apóstolo Paulo, “há muitos insubordinados, faladores vãos, e enganadores (...) aos quais é preciso tapar a boca; porque transtornam casas inteiras ensinando o que não convém, por torpe ganância” (Tito 1:10,11).

Imagine alguém que não se submeta às orientações da OMS com relação à pandemia, e ainda por cima, divulgue fake news que levem pessoas a arriscarem suas vidas e a vida de seus entes com atitudes inconsequentes.  Não se trata de impor censura, mordaça, cerceando a liberdade de expressão, mas de não reverberar seu discurso, servindo-lhe de megafone. Por isso, concordo com medidas drásticas como as tomadas pelas redes sociais em banir pessoas que incentivem a intolerância, o preconceito e a desinformação, não poupando nem mesmo autoridades como Donald Trump, presidente dos EUA. O que ocorreu no Capitólio nos últimos dias é um exemplo do que um discurso de ódio é capaz de promover. 

CANCELAMENTO E OSTRACISMO

Atenas, o berço da democracia, deparou-se com um sério problema que poderia ameaçar o novo modelo de sociedade que emergia próximo do final do século seis a.C.  Este seria, por assim dizer, um efeito colateral indesejável que exigia reparação, sob pena de colocar em risco a ordem democrática. Se pela democracia se elegiam os representantes da pólis, como se livrar daqueles que só pensavam em si mesmos e em suas próprias ambições?  Se tais indivíduos fossem deixados à vontade, poderiam semear a discórdia, atiçando as pessoas umas contras as outras no afã de tirarem alguma vantagem, promovendo assim a ruína da recém-nascida democracia. Em vez de apelar para medidas violentas, os cidadãos atenienses encontraram uma solução mais civilizada, e, por conseguinte, satisfatória.

A cada ano, eles se reuniam na praça do mercado (Ágora) e escreviam num pedaço de cerâmica chamado de ostrakon,  o nome do indivíduo que desejassem ver banido da cidade por dez anos. Alguns dicionaristas veem nesse ostrakon uma concha de ostra propriamente dita untada de cera; outros acreditam que não passava de um caco de cerâmica. Se um determinado nome recebesse sete mil votos, a pessoa era imediatamente exilada, e, assim, confinada à solidão. Se ninguém alcançasse tal número, então, aquele que houvesse recebido mais votos ficava dez anos em “ostracismo” (ostrakhismós).  Tal ritual tornou-se tão importante que se transformou numa celebração festiva, dado o alívio causado pela expulsão de pessoas consideradas desagregadoras do convívio social. O isolamento social do banido seria análogo à solidão de um molusco encerrado em sua concha. Mas nem sempre o resultado era justo.

Por exemplo: Aristides, um dos grandes generais atenienses responsáveis pela derrota dos persas na batalha de Maratona foi vítima deste processo. Sua integridade lhe rendeu o apelido de “O justo”.  Aos poucos, os atenienses começaram a nutrir uma antipatia à sua figura, principalmente no exercício da função de magistrado. Depois de ter sido quase uma unanimidade entre os atenienses, Aristides foi banido em 482 a.C.  Outro general que teve o mesmo fim foi Temístocles , que após muitas vitórias no campo de batalha, tornou-se no principal líder da cidade. Acusando-o de ser arrogante e autoritário, os atenienses se esqueceram dos templos que construíra e dos perigos de que os havia livrado, exilando-o através do ostrakon em 472 a.C.

Até mesmo Péricles, considerado o “pai” da democracia ateniense, recebeu muitos votos para ser ostracizado, mas nunca chegou a sofrer efetivamente tal sentença.

Nem Sócrates foi poupado, sendo acusado de corromper os jovens a quem ensinava seu método filosófico. Mas o filósofo preferiu a sentença de morte por cicuta à saída de Atenas.

Aristóteles defendeu a utilização de tal mecanismo como método preventivo que evitasse que certos indivíduos acumulassem poder e prestígio em razão de suas riquezas e influência política. Apesar de defender sua utilidade, Aristóteles também foi o primeiro a reconhecer os riscos que representava: “Este princípio, contudo, não tem sido aplicado justamente nos Estados, pois, ao invés de procurarem o bem para a sua Constituição, o ostracismo tem sido usado para beneficiar algumas facções.”

Há presenças que trazem incômodo aos que optam pela mediocridade, pois expõem de maneira eloquente suas vicissitudes. Estes sempre buscam apagar a luz daqueles que os ofuscam.  Foi por isso que Saul perseguiu a Davi depois de ouvir as mulheres de seu povo cantando: “Saul matou a milhares, mas Davi matou a dez milhares!”  Foi também por isso que o próprio Davi intentou se livrar de Urias, marido de Bate-Seba, pois encontrou nele um homem mais justo, íntegro e leal do que ele mesmo.  Não foi só para varrer seu pecado para debaixo do tapete.

Foi também por isso que os sacerdotes tramaram para matar a Jesus.

Ninguém que desafie os falsos escrúpulos de uma sociedade fica impune. Mesmo que não recorramos a um processo semelhante ao dos atenienses, sempre damos um jeito de nos livrar daquela pedra em nosso sapato. Obviamente que para submeter alguém ao ostracismo, faz-se necessária uma justificativa plausível que não nos renda a fama de injustos. Saul acusava Davi de usurpar seu trono. Davi nem se deu o trabalho de acusar Urias, preferindo agir sorrateiramente, sem qualquer justificativa a seu ato cruel e desumano. Os sacerdotes alegaram que a presença de Jesus era uma ameaça ao bem-estar da população, pois poderia despertar a fúria dos romanos. Mas no fundo, o que movia Saul em sua perseguição implacável a Davi era o ciúme. O que moveu Davi em sua decisão de ordenar que Urias fosse abandonado na frente da batalha foi a inveja, posto que queria para si o que era dele, isto é, sua mulher. O que moveu os sacerdotes a tramarem para matar a Jesus foi a ganância, principalmente depois do prejuízo dado ao templo ao derrubar as mesas dos cambistas e expulsá-los ao sabor do chicote.

De fato, há pessoas que precisam ser colocadas numa espécie de quarentena a fim de não contagiarem os demais com seus intentos malévolos e facciosos. Paulo nos fala disso abertamente, advertindo  a Timóteo a evitar “as conversas inúteis e profanas, porque produzirão maior impiedade. E a palavra desses se alastra como câncer” (2 Timóteo 2:16-17a). Se não forem devidamente tratados, suas palavras se espalharão como numa metástase, comprometendo a saúde de todo o organismo.  

O que é a síndrome do ostracismo?

Chamamos de “síndrome do ostracismo” o estado mórbido caracterizado por uma série de sintomas que algumas pessoas passam a manifestar após a perda de uma posição de poder,  fama ou prestígio, e que tem como consequência a experiência de anonimato, do isolamento, da exclusão social. Tal síndrome ocorre justamente com as pessoas que, acostumadas aos holofotes, sem mais, nem menos, perdem o poder ou o status social, sendo involuntariamente confinadas ao seu mundinho particular.

Quando alguém alcança a posição de notoriedade, passando a ser o centro das atenções do grupo social, o ego e a autoestima se inflam de tal maneira que é natural que ele se sinta querido e amado. As constantes adulações e elogios podem leva-lo a se considerar superior e mais importante que os demais à sua volta. Sem contar que sua posição social pode lhe conferir acesso a uma série de condições, privilégios e regalias que as pessoas comuns não possuem. A notoriedade, todavia, pode privar a pessoa da consciência de sua própria realidade, da brevidade da sua vida, e dos objetivos prioritários a serem alcançados para que possa crescer e evoluir como ser humano.

As pessoas devem ser amadas, queridas e valorizadas não pelo poder que ostentam, ou pela posição de privilégio que alcançaram, mas pelo que são.  Sair de cena, deixar de ser o centro das atenções, perder os holofotes, não deveria ser motivo de autocomiseração ou autopiedade.

Quem nos abandona nesses momentos revela jamais ter nutrido qualquer sentimento legítimo de amor para conosco. Amavam apenas as vantagens e benefícios que poderíamos proporcionar-lhes no exercício do poder de que dispúnhamos.  Queriam nossa companhia para tirarem uma casquinha do nosso prestígio. Mas jamais amaram nossa essência, aquilo que somos à parte dos papéis sociais que nos cabem.

Deixar-nos só pode ser um grande favor feito por quem dizia nos amar, mas só queria mesmo se locupletar. Às vezes precisamos de certa dose de isolamento para que, tal qual uma ostra, aprendamos a lidar com a nossa dor e transformá-la numa pérola de grande valor.

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