domingo, fevereiro 17, 2019

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MARIGHELLA: COMO OS HERÓIS SÃO FORJADOS


Por Hermes C. Fernandes

“A única luta que se perde é aquela que se abandona.” Carlos Marighella

Quem foi Marighella? É o que muita gente está se perguntando depois que o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, estreou no Festival de Berlim, sob aplausos e calorosa recepção. Em tempo de ascensão do conservadorismo no país, figuras como o guerrilheiro que lutou contra a ditadura militar brasileira são execradas e relegadas ao limbo da história. O filme vem resgatar a importância desta figura icônica que enfrentou a tirania, lutando pela libertação do seu povo e que acabou assassinada numa emboscada em 4 de novembro de 1969.

O filme confirma a versão histórica de que o Brasil sofreu um golpe em 1964, com a tomada de poder pelos militares, ajudados pelo governo norte-americano, sob o pretexto de prevenir o comunismo. Apesar de os militares terem prometido ficar no poder por pouco tempo, até que a situação no país se normalizasse, permaneceram no poder por 21 anos. Foi contra isso que Marighella e tantos outros lutaram bravamente, sucumbindo ante o poder avassalador do estado. Marighella tornou-se um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura militar brasileira, chegando a ser considerado o inimigo "número um" do regime.

Carlos Marighella nasceu em Salvador no dia 5 de dezembro de 1911 em uma família pobre. Filho de um imigrante italiano, que trabalhava como operário, e de uma baiana filha de escravos africanos, tinha seis irmãos. Além do ativismo político, também era um profícuo escritor e poeta.

Toda sociedade que se preze tem seus heróis. São eles que, além de reforçarem a identidade nacional, inspiram novas gerações a lutarem por seus ideais. Uma sociedade sem referências está fadada a experimentar uma sensação de orfandade, algo parecido com o que Israel sentiu ao reivindicar de Deus um rei, já que cada nação tinha o seu.

O Brasil é um país carente de heróis. E não é por não existirem ou não terem existido. Nossa história está repleta de personagens que lutaram bravamente por uma sociedade mais justa, livre e soberana. Então, por que não são celebrados? Em vez disso, muitos deles são propositadamente sabotados, pintados como vilões, monstros sanguinários, terroristas, bêbados, daqueles que merecem ser esquecidos, tamanha a vergonha e repulsa que nos causam.

Os países que buscam exercer hegemonia sobre os demais sabem do perigo que é permitir que cada nação tenha seus próprios heróis, pois temem que estes possam inspirar eventuais insurreições do seu povo. Por isso, medidas preventivas são tomadas para coibir o surgimento destas figuras heroicas. Para preencher o vácuo, não raras vezes, heróis postiços são forjados sob medida, algo como “o caçador de marajás”, que de uma hora para outra, tornou-se quase numa unanimidade no país. Fernando Collor de Mello surge repentinamente no cenário político nacional, fisgando, com seu discurso ensandecido, a confiança de um povo carente de esperança. Deu no que deu. Os mesmos que o forjaram, derrubaram-no quando este ousou contrariar seus interesses.

No dia 21 de abril, celebramos a memória de Tiradentes, o herói da inconfidência mineira. Você já se perguntou a partir de quando Tiradentes passou a ser visto como um herói nacional? Para aqueles que o enforcaram, ele não passava de um vigarista, um trapaceiro, um infame traidor da coroa portuguesa. Por muitos anos, a imagem que prevaleceu foi esta.  Ainda hoje, há quem se dedique a macular sua imagem, alegando, entre outras coisas, que ele se opunha à abolição da escravidão, e que sua luta não era pela independência do Brasil, mas apenas de Minas Gerais. Sem contar, teorias aparentemente mirabolantes que afirmam que ele nem sequer chegou a ser enforcado. Enquanto outro tomava seu lugar no cadafalso, Tiradentes fugia para a França, onde teria vivido confortavelmente com uma identidade falsa.  Se esta teoria estiver correta, o Tiradentes ensinado nas escolas jamais existiu. Trata-se apenas de uma história inventada pelos republicanos do século XIX para tentar legitimar o golpe militar que engendraram, e que foi reforçada pelos ditadores militares entre as décadas de 1960 e 1980.

Quem seria o verdadeiro Tiradentes, afinal, o que estampa nossos livros de história com uma fisionomia que lembra o Cristo, ou o revelado por seus detratores? Talvez nunca saberemos. Ainda que ele fosse um legítimo herói nacional, para aqueles que o enforcaram, ele não passava de um traidor obstinado.  Assim como Sansão e Davi, ambos heróis dos hebreus, mas vilões dos filisteus. 

Aprendi com o filme “Coração Valente” que a história é a versão dos vencedores.  William Wallace, celebrado no filme estrelado por Mel Gibson, foi considerado herói dos escoceses, mas ainda visto como um vilão traidor para a coroa inglesa.[

Não há heróis que gozem de unanimidade em ambos as trincheiras. Alguns não são unanimidade nem mesmo entre seu próprio povo. Tomemos por exemplo Nelson Mandela. Se você imagina que o homem que derrotou o regime de segregação do Apartheid na África do Sul é celebrado por todos naquele país, você está redondamente enganado. Ainda hoje, Mandela é odiado, principalmente pela classe dominante. Chamam-no de comunista, terrorista, corrupto, e daí para baixo. O mundo inteiro o celebra, menos seu próprio povo, ou parte dele. 

E o que dizer de Martin Luther King? Enquanto morei nos EUA, pude presenciar o desconforto que era, principalmente para famílias brancas, terem que comemorar um feriado dedicado ao pastor responsável pela conquista dos direitos civis dos negros americanos. Para muitas delas, Luther King não passava de um embuste. Espalharam até que, além de comunista, ele também era promíscuo, e teria sido morto durante uma orgia com várias prostitutas. Porém, aqueles que se beneficiaram de sua luta consideram-no seu grande herói. 

De Mahatma Gandhi, o maior pacifista do século XX, dizem que mantinha um caso homossexual, mesmo estando casado.  De Madre Teresa de Calcutá, mulher que dedicou sua vida a cuidar de leprosos na Índia, dizem que era endemoninhada, temperamental e intratável.

Por isso, sempre olho com reservas qualquer tipo de tentativa de difamar alguém que tenha lutado por um mundo mais justo. Se foram vilões para os impérios que combateram, certamente foram heróis de povos que libertaram ou pelo qual lutaram.

Alguns foram guerrilheiros. Enfrentaram bravamente poderios bélicos para libertar seus respectivos povos. Odiados por seus inimigos, seguem amados por seu povo.

Infelizmente, não vemos muito disso no Brasil. A mídia conseguiu nos convencer de que alguns célebres expoentes de nossa brava gente brasileira não passaram de terroristas cruéis, que em nome de sua ideologia mataram, assaltaram bancos, sequestraram autoridades de outros países, etc.  Tentam nos convencer de que o objetivo deles era implantar aqui uma ditadura comunista bem ao estilo da que havia no Leste Europeu e em Cuba. Muitos deles foram assassinados, não em combate, mas friamente, depois de sessões de tortura. Quando se fará justiça à memória dessa gente, cuja maioria morreu ainda na flor da idade? Quando o país reconhecerá sua grandeza? Nem todos impuseram armas. Alguns lutaram em outras frentes contra um regime totalitário, responsável pela morte e desaparecimento de muitos. Entre eles, alguns religiosos como o Frei Betto e seu irmão, Frei Tito, que acabou se suicidando devido à profunda depressão sofrida após sessões de tortura (para entender melhor este triste episódio de nossa história, assista ao filme "Batismo de Sangue").

Recentemente, o Papa Francisco (que também já está sendo acusado de ser comunista!) anunciou a reabertura do processo de canonização de Dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador (1977-1980). Em uma de suas homilias, Dom Romero afirmou que a missão da igreja é identificar-se com os pobres.  Na véspera de seu assassinato, fez um contundente  pronunciamento contra a repressão em seu país: “Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes: cessem a repressão.” Aquilo foi a gota d’água. Óscar Romero foi assassinado enquanto celebrava a missa em 24 de março de 1980 por um atirador de elite do exército salvadorenho, treinado na Escola das Américas. Apesar de ser de tradição protestante, celebro a canonização do Romero por reconhecer seu árduo trabalho em defesa dos excluídos de sua nação.

No Brasil, tivemos Dom Hélder Câmara, que militou bravamente contra a opressão social no país. Certa vez, o arcebispo de Olinda disse: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Quando pergunto por que são pobres, chamam-me de comunista.” O Vaticano já autorizou a abertura de processo de beatificação do Dom Hélder. Homens como Romero e Câmara me inspiram em minha luta contra a desigualdade social. Porém, eles não são os únicos. Na trincheira política, temos gente como Darcy Ribeiro, que dedicou sua vida à educação e à causa indígena. Poucos homens fizeram tanto pelas nossas crianças do que ele. Mas como não era um aliado da mídia, provavelmente ficará no ostracismo. Num momento de frustração, Darcy Ribeiro disse:

"Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu."

A sessão plenária que votou o processo de impeachment da presidente Dilma, deixou o povo brasileiro horrorizado com o nível de seus deputados. A maioria, ao se dirigir ao microfone, dedicava seu voto aos familiares ou ao seu estado de origem. Porém, dois parlamentares chamaram a atenção ao dedicarem seus votos. Um deles foi Jair Bolsonaro que dedicou seu voto a dois personagens controversos: Duque de Caxias e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador durante o regime militar. Duque de Caxias tem sido celebrado como herói nacional e patrono do exército brasileiro. Liderou a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) na Guerra do Paraguai. Os três países mais ricos da América do Sul, insuflados pela Inglaterra, dizimaram, sob o comando de Caxias, 90% da população paraguaia, no maior genocídio da história da América Latina. E sabe por qual motivo? O Paraguai estava começando a incomodar a coroa inglesa por sua rápida industrialização. Obviamente, esse não foi o motivo oficial alegado. Mas o que causou verdadeira repulsa foi a homenagem que Bolsonaro prestou ao coronel Ustra, a quem chamou de "o terror da Dilma". Isso, porque foi ele o responsável por torturá-la quando ela tinha apenas 22 anos. De acordo com o depoimento de um companheiro do DOI-CODI, Ustra era conhecido como o "senhor da vida e da morte", que "escolhia quem ia viver e ia morrer." Suas sessões de tortura tinham requintes de crueldade, com choques nos órgãos genitais, e ratos vivos no ânus ou na vagina das mulheres. Nem crianças eram poupadas destas sessões de horrores. Por ironia do destino, Bolsonaro foi eleito presidente, sendo aclamado nas ruas e nas redes sociais como “mito”. Um mito feito sob medida para manter nosso povo refém de políticas opressoras, comprometidas com os interesses norte-americanos na América Latina.

O outro parlamentar que chamou a atenção foi o deputado Glauber Braga que além de insultar o presidente da Câmara Eduardo Cunha, chamando-o de gangster, dedicou seu voto à memória daqueles que nunca escolheram o lado fácil da história, dentre eles MarighelLa, Plínio de Arruda Sampaio, Evandro Lins e Silva, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Olga Benário, Brizola e Darcy Ribeiro, Zumbi dos Palmares.

A partir daí, sempre que alguém criticava a menção feita por Bolsonaro, outro rebatia dizendo que piores foram as menções de Glauber Braga. Não foram poucos que nas redes sociais saírem em defesa do coronel Ustra, alegando que o mesmo combatia terroristas da pior espécie, gente perigosa como o assassino Marighella. Outros questionavam qual seria a diferença entre o que era feito pelos militares e por aqueles que eles se propunham combater. Os dois lados praticaram atrocidades. Verdade. Não há o que questionar. Porém, há uma enorme diferença. Ustra e seus asseclas praticavam torturas e assassinatos em nome do estado repressor. Homens como Carlos Marighella e Luís Carlos Prestes se engajaram na luta em resistência a este estado. O que os movia era um ideal. Se estes guerrilheiros eram bancados pelo império soviético, como geralmente se diz, por que precisariam assaltar bancos em busca de recursos para bancar sua luta? Temos que encarar os desatinos que eles cometeram como crimes políticos, não crimes comuns. Não eram movidos por avareza, mas por um ideal. Se eles erraram na mão, bastava que fossem presos, julgados e sentenciados. Mas em vez disso, foram torturados, assassinados, e muitos tiveram seus corpos lançados ao mar para jamais serem encontrados. Isso é desumano. Claro que a reação seria proporcional. Apesar de condenar suas atrocidades, não posso fazer vista grossa ao ideal pelo qual lutavam. Posso até não comungar 100% de sua ideologia, nem de seus métodos desastrosos e criminosos, mas comungo da utopia que os movia, o sonho de um mundo mais justo e solidário. Eles lutaram pelo seu país. Não eram bandidos, terroristas, monstros desalmados, mas em sua maioria, jovens sonhadores e revolucionários.
Quando  perseguido pelo nazismo, Deitrich Bonhoeffer, o célebre teólogo alemão, escreveu um tratado considerado uma das maiores obras primas do protestantismo, que recebeu o nome de "Ética". Nesta obra, ele justifica seu engajamento na resistência alemã anti-nazista e seu envolvimento na luta contra Adolf Hitler, dizendo que: "É melhor fazer um mal do que ser mau." Bonhoeffer, que também era pastor, foi considerado um terrorista pelos nazistas e acabou condenado à morte após participar de uma tentativa de assassinato de ninguém menos que Hitler. Devemos concordar com os nazistas e achar que Bonhoeffer não passava de um bandido? Então, por que fazemos isso com os que resistiram bravamente à ditadura militar no Brasil?

Quem sabe o tempo se encarregue de reabilitar alguns que hoje sofrem a ojeriza do mesmo povo pelo qual lutou.  Se Tiradentes se tornou herói, por que não quem conseguiu tirar 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza? Como explicar que Lula goze de tanta credibilidade lá fora, e aqui, mesmo depois de terminar seu governo com o maior índice de popularidade da história (82% de aprovação), tem sido tão hostilizado? Como explicar que uma mulher que aos 22 anos foi torturada, levou choques elétricos em sua genitália, teve dentes quebrados a soco, tornou-se na primeira mulher a ocupar a presidência do país, hoje é xingada pela mesma gente pela qual lutou?

Acho que Malcolm X, contemporâneo de Luther King, nos oferece uma resposta: "Se você não tomar cuidado, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as que estão oprimindo." Portanto, antes de torcer o nariz cada vez que ouvir nomes como o de Che Guevara, Simón Bolívar e outros, verifique se o que você sabe acerca deles não é uma vil tentativa de difamar os heróis de seus respectivos povos. Desconfie de tudo o que diz qualquer império midiático. Da mesma maneira que conseguiram nos convencer que Che Guevara é um monstro, tentam fazer isso com Luther King em seu próprio país. O mesmo com Gandhi e com Mandela, como citei acima. Para o restante da América Latina, Che é visto como herói. Até os europeus o reverenciam. Ele foi o cara que calou a ONU. Mas aqui, ele é um monstro, matador de gays, etc. A gente prefere reverenciar Diego Maradona, Pelé e Ayrton Senna. O mesmo preconceito raso se aplica a Simón Bolívar. Quer xingar alguém no cenário político? Chame-o de bolivariano. Mas quem foi Bolívar? O cara que peitou a coroa espanhola e lutou pela independência de suas colônias na América do Sul. É claro que é melhor para o yankees pintá-lo como um vigarista sanguinário.

O que me assusta é ver o povo elegendo heróis que poderão se tornar em breve seus algozes. Homens que desdenham das minorias, que não respeitam mulheres, nem negros, nem homossexuais. Deus que nos livre desta sina.

Que tal lermos um pouco mais bons livros de história, e menos revistas tendenciosas à serviço de interesses nada altruístas?

Abaixo um dos mais belos poemas da lavra de Carlos Marighela:

Liberdade

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome.

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