sexta-feira, junho 17, 2016

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O INCONSCIENTE COLETIVO E O SURGIMENTO DA KOINOSFERA - Um encontro épico entre Jung, Freud, Darwin, Bauman e Paulo




Por Hermes C. Fernandes 

A teoria da Noosfera foi originalmente desenvolvida pelo geoquímico russo Vladimir Vernadsky, e refere-se à esfera do pensamento humano. O termo tem origem no vocábulo grego “nous” que significa mente. De acordo com esta teoria, a noosfera seria a terceira etapa do desenvolvimento da Terra, precedida pela geosfera (matéria inanimada) e pela biosfera (vida biológica). Assim como o surgimento da vida provocou mudanças significativas na geosfera, o surgimento do conhecimento humano também alterou a biosfera. 

Este conceito foi ampliado pelo teólogo cristão e paleontólogo francês Teilhard de Chardin, segundo o qual a Noosfera seria o próximo degrau evolutivo do mundo em que emergiria uma espécie de cérebro planetário ou superconsciência, onde todas as mentes estariam interligadas, de maneira análoga aos computadores conectados à internet. Essa mudança caracterizaria a próxima Era Geológica denominada “Psicozoica”. Chardin buscava conciliar a teologia cristã com a evolução de Darwin. Para o padre jesuíta, Deus conduziu todo o processo evolutivo, desde o caos primordial até o despertar da consciência humana sobre a Terra, estágio que deverá ser sucedido por uma Noogênese, que seria a integração de todo o pensamento humano numa única rede inteligente que cobriria todo o planeta. É a esta camada que ele chama de Noosfera. Na vanguarda de todo este processo existiria uma força que agiria a partir de dentro da matéria, orientando a evolução em direção a um ponto de convergência chamado de Ponto Ômega, que ele identifica como sendo o próprio Cristo. 

Carl Jung, psiquiatra suíço, conhecido como o pai da psicologia analítica, defendia a existência de um inconsciente coletivo, que seria a camada mais profunda da psique. Para compreendermos o que seria o inconsciente coletivo, temos que entender o que é o inconsciente. De acordo com Sigmund Freud, o inconsciente seria a região da psique onde encontramos o que foi recalcado, escondido, esquecido. Tudo o que foi vivido, porém, esquecido, está lá armazenado. Às vezes, reaparece através dos sonhos, dos chamados atos falhos e até dos sintomas físicos ou psíquicos. Para o pai da psicanálise, o que chamamos de consciência seria apenas a ponta de um iceberg. O inconsciente seria a parte submersa. O inconsciente não seria apenas o porão da psique, mas as bases, os alicerces sobre os quais a consciência é erigida. 

Já o Inconsciente Coletivo não representa o que fora vivido pelo indivíduo, mas pela a humanidade como um todo. É o resíduo psíquico da evolução do homem, acumulado em consequência de experiências repetidas por várias gerações. Os arquétipos são os componentes estruturais do Inconsciente Coletivo. Um arquétipo é uma forma de pensamento universal com imagens que podem ser transmitidas hereditariamente como uma espécie de memória genética. Ao perceber que a transmissão de conteúdos psíquicos por hereditariedade não poderia ser comprovada cientificamente, Jung sugeriu que os arquétipos não seriam propriamente imagens, mas tão-somente a predisposição da psique de gerar certas imagens. Os arquétipos, portanto, seriam estruturais psíquicas herdadas que, ao serem preenchidas com as memórias e percepções do próprio indivíduo, desencadeariam a formação de determinadas imagens. Assim, a forma seria universal, porém, o conteúdo seria específico de cada indivíduo. 

Há uma conexão profunda entre os pensamentos de Jung e de Chardin. Ambos acreditavam no poder exercido pelo futuro sobre a mente humana. Enquanto para Freud, tudo poderia ser explicado a partir do passado, para Jung, o presente não seria determinado apenas pelo passado (causalidade), mas também pelo futuro (teleologia). Algo bem parecido com a ideia de um Ponto Ômega em Chardin, que nos atrai na direção do porvir. Em ambos, o destino do ser humano é essencialmente guiado pelo alvo. Digamos que o passado tenha sido apenas o arco que arremessou a flecha. Mas o arqueiro não o fez a ermo. Em Jung, a personalidade deve ser compreendida em termos do seu destino, e não de sua origem apenas. 

Em seu livro “Estudos sobre Psicologia Analítica”, Jung escreve: 
“Se o material psíquico acumulado no inconsciente individual pode ser alçado à consciência, não é demais acreditar que o mesmo se dê com o inconsciente coletivo.” 
Ora, não seria de se esperar que se emergisse uma consciência coletiva? Não seria esta a Noosfera defendida por Chardin? Tanto Jung, quanto Chardin eram cristãos. Jung, de origem protestante, filho de pastor. Chardin, sacerdote jesuíta. Não se pode, portanto, negar a influência do pensamento cristão nestes dois gigantes do século XX. Ambos tentaram compreender o fenômeno da espiritualidade a partir de uma abordagem que se pretendia científica. 

Haveria nas Escrituras algum indício de que o Criador pretenda conduzir-nos a um novo degrau de evolução? Poderíamos encontrar em suas páginas algo acerca do surgimento de uma Noosfera? 

Antes de prosseguir em nossa investigação sobre o tema, proponho uma digressão. Estamos entrando no terreno sagrado da subjetividade. Portanto, sugiro que descalcemos nossos pés de toda e qualquer presunção. Sigamos à risca a recomendação de Jung: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.” 

Nenhuma teoria, por mais elaborada que seja, tem a palavra final quando se trata da alma humana. Por isso, nossas sandálias não nos servem aqui. Quando Moisés apascentava o rebanho de seu sogro no deserto, teve uma visão em que um arbusto se incendiava, porém, não se consumia. Suas folhas e ramos permaneciam intactos. O inusitado fenômeno fisgou sua atenção, de modo que não resistiu à curiosidade e resolveu se aproximar para conferir. Provavelmente, Moisés se perguntou se aquilo seria real ou apenas fruto de sua imaginação. De repente, do meio da sarça ouviu-se uma misteriosa voz: “Não te chegues para cá; tira as sandálias de teus pés; porque o lugar em que pisas é terra santa.”[1] 

O que Deus queria dizer com “terra santa”? Será que se tratava de um território demarcado pela divindade? Se fosse este o caso, por que Moisés, a exemplo do que fizeram outros patriarcas hebreus, não edificou ali um altar? Era de se esperar, uma vez que a voz se apresentou como sendo o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, seus ancestrais. Talvez até lhe tenha ocorrido a ideia. Porém, o restante da fala de Deus fê-lo perceber que a o território sagrado a que se referia era outro e não uma localização geográfica específica. Observe: 
“Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto desci para livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra, a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel.” Êxodo 3:7-8a 
O Deus dos patriarcas não abandonara Seu povo à própria sorte. Pelo contrário. Ele observava atentamente a sua aflição sob o regime escravagista imposto pelos egípcios. Se ficasse só na observação, Deus não passaria de um voyeur sádico assistindo apático ao desenrolar da trama humana. Ele diz que também ouvia o clamor dos hebreus. Mas também não era suficiente ver e ouvir. Não bastaria nem mesmo ser empático. Ele declara conhecer as suas dores. Por isso, resolveu dar um passo além, descendo para livrá-los. Imagine: uma divindade que desce, que se rebaixa, que pisa o chão da existência, só para intervir em favor do Seu povo. Isso é mais do que empatia, é compaixão. E repare que Ele desce para fazê-los subir. Terra santa é todo solo onde Deus resolve pisar. Terra santa é toda causa que Ele decide assumir. Terra santa é a alteridade, a subjetividade com suas idiossincrasias. Contrariando Sartre, o existencialista francês, o outro não é o inferno, mas um terreno sagrado. 

O Deus revelado nas Escrituras não é uma divindade apática, que se mantém distante do dilema humano. Em vez disso, mergulha de cabeça na existência, intervindo para livrar Sua criação e elevá-la juntamente com Ele. 

Moisés estava sendo comissionado a participar desta intervenção divina, servindo-lhe de porta-voz. Sua experiência como príncipe do Egito não lhe serviria. Ele teria pisar descalço nesse solo sagrado. 

Descalçar os pés também aponta para vulnerabilidade de nossa condição humana. Somos chamados a abraçar esta condição, sem nos proteger. Chamados a conhecer a dor humana em toda a sua intensidade. Parafraseando Caetano Veloso, somos enviados ao mundo como Moisés a Faraó, para conhecer in loco com cada um a dor e a delícia de ser o que é. 

Não há aqui lugar para presunção, nem precaução desmedida. Quem está na chuva é para se molhar. O calçar as sandálias da preparação do evangelho da paz conforme recomendado por Paulo[2] é justamente descalçar-se, engrossando assim o número de paradoxos encontrado nos evangelhos e epístolas. Paradoxos do tipo o menor será o maior, os últimos serão os primeiros, quando se está fraco é que se é forte, o poder se aperfeiçoa na fraqueza, quem quiser salvar-se acabará se perdendo e quem se deixar perder acabará se salvando, etc. 

A palavra ouvida por Moisés naquele dia só viria a se cumprir cabalmente quando Deus Se fizesse um de nós na pessoa de Seu Filho Jesus Cristo. Paulo nos retrata isso no processo que a teologia chama de Kenósis [3]

“Portanto, se há algum conforto em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão no Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, completai a minha alegria, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa. Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.” Filipenses 2:1-8 

Assim como Moisés, o Filho de Deus também teve que se descalçar para experimentar a condição humana. Talvez por isso, ao vê-lo vir ao seu encontro para ser batizado, João Batista tenha dito que não era digno de desatar Suas sandálias. Foi a partir daí que Ele iniciou Seu ministério terreno. 

Paulo toma a Kenósis de Cristo como uma convocação a que também a experimentemos. Somos chamados a descalçar os pés e a pisar no solo sagrado da subjetividade, que inclui tanto a consciência, quanto o inconsciente. Nossos pressupostos, preconceitos, técnicas, teorias, presunções, devem ser postos de lado para não comprometer nossa abordagem. Repare bem na recomendação do apóstolo: “Se há algum conforto em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão no Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões...” O que nos oferece conforto nesta empreitada é a certeza de Sua companhia. Não estamos sós. É a Sua presença que torna sagrado o terreno em que pisamos. É a convicção de que somos amados que nos consola. É o Seu Espírito que possibilita a comunhão entre nós e os demais. Ele pavimenta o caminho que nos faz acessar o outro. Comunhão é koinonia, palavra grega que significa “ter algo em comum”. Esta comunhão patrocinada pelo Espírito provoca em nós o que Paulo chama de “entranháveis afetos”; isto é, somos intimamente afetados por aquilo que afeta os demais. Não apenas vemos e ouvimos, mas também participamos da sua dor. Não é algo de pele, superficial, mas visceral. 

Acho que nesta passagem, Paulo vai mais longe do que Chardin. Em vez de uma noosfera, que seria, por definição, uma esfera de pensamentos, o apóstolo nos propõe o que eu ousaria chamar de koinosfera: uma esfera onde todas as coisas inerentes à nossa condição humana se tornem comuns, a começar pelos sentimentos. Como bem disse Jung, “quando pensamos, fazêmo-lo com o fim de julgar ou chegar a uma conclusão; quando sentimos, é para atribuir um valor pessoal a qualquer coisa que fazemos.” 

Não se trata apenas de saber o que o outro sabe, de crer no que o outro crê, mas de sentir o que o outro sente. Isso só é possível quando nos abrimos ao mesmo sentimento que houve em Cristo, que sendo em forma de Deus, preferiu rebaixar-se à condição humana, esvaziando-se por completo. Ele desceu todos os degraus, fazendo-se escravo desprovido de qualquer direito, entregando-se para morrer como um meliante, mesmo sem jamais ter cometido nada que o fizesse merecer aquilo. 

Um sentimento oceânico 

A experiência kenótica nos possibilitaria provar daquele “sentimento oceânico” a que se refere Freud em seu famoso livro “O Mal-estar na Civilização”. Mesmo admitindo jamais tê-lo sentido, o médico austríaco diz que “nosso presente sentimento do ego não passa [...] de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo – [...] o sentimento oceânico.”[4] Ele chama tal sentimento de “sensação de eternidade”, algo ilimitado, sem fronteiras, de vinculação indissolúvel, de comunhão com todo o mundo exterior que apenas alguns seres humanos experimentam. Freud aponta este sentimento como a fonte da religiosidade. Seria, ainda, uma percepção intelectual provida de certa afetividade. Talvez por jamais tê-lo experimentado, ainda que não ousasse questioná-lo nos outros, Freud julgava que tal sentimento seria apenas uma forma de consolo, um mecanismo psicológico que busca negar os perigos e ameaças do mundo externo. 

Esvaziar-se de toda e qualquer presunção é condição sine qua non para experimentar este sentimento oceânico, esta conexão com o todo e, sobretudo, com o Criador. Não é algo sobre o que se possa especular. Há que se experimentar. 

A contribuição da Neurociência: Os neurônios-espelho e a empatia 

Descobertos acidentalmente, os neurônios-espelho têm sido considerados um dos mais importantes achados das neurociências dos últimos tempos. Há quem ouse dizer que essas células farão pela psicologia o que o DNA fez pela biologia. Outros comparam a importância desses estudos aos das células-tronco. O cérebro tem cerca de 100 bilhões de neurônios - dos quais apenas 5% são espelhos. Apesar de proporcionalmente não serem tantos, respondem por muito do que somos. 

Era 1994, os neurocientistas Giacomo Rizzolatti, Leonardo Fogassi e Vittorio Gallese da Universidade de Parma, na Itália, conduziam um experimento com um macaco, em que instalaram fios numa área do cérebro responsável pelos movimentos. Sempre que o macaco pegava ou movia um objeto, determinadas células cerebrais disparavam. O monitor em que os eletrodos estavam ligados registrava a área de localização desses neurônios e emitia um sinal sonoro. Quando um aluno de pós-graduação entrou no laboratório com uma casquinha de sorvete na mão, o macaco olhou fixamente para ele e, em seguida, algo inusitado aconteceu: quando o estudante levou a casquinha aos lábios, o monitor apitou novamente – mesmo o macaco não tendo feito qualquer movimento, mas apenas observado o aluno. A cena voltou a se repetir com outros alimentos, como amendoins e bananas. Portanto, a resposta de seus neurônios-espelhos só podia vir da ação de outra pessoa. Os cientistas perceberam que as células cerebrais disparavam quando o macaco via ou ouvia alguém fazer algo ou, ainda, quando ele mesmo realizava uma tarefa. Assim chegaram às primeiras conclusões sobre a capacidade dos neurônios-espelhos. Mais tarde, exames de neuroimagem mostraram que os seres humanos têm neurônios-espelho muito mais sofisticados e flexíveis que os dos macacos. 

As pesquisas apontaram que os neurônios-espelho teriam, entre outras coisas, a propriedade de simular a perspectiva do outro. Portanto, eles seriam os responsáveis pela empatia, função que nos habilita a compreender as circunstâncias nas quais o outro se encontra, gerando sentimentos recíprocos tais como a solidariedade e o desejo de compartilhar experiências. A empatia é o aquele sentimento que nos faz enxergar a nós mesmos no outro. Não poderia haver melhor nomenclatura para esses neurônios do que neurônios-espelho. 

O que nos leva a sorrir quando vemos alguém sorrir? E a bocejar quando alguém boceja próximo de nós? Ou a nos emocionar ao flagrar alguém chorando? Empatia. Nosso cérebro funcionaria como um simulador de ação. Mesmo que não conscientemente (implícita, no jargão das ciências cognitivas), imitamos mentalmente qualquer ação que observamos. Quando duas pessoas estão sentadas numa mesa de restaurante, uma tende a copiar a postura da outra. O mais interessante é que isso não acontece somente em termos de linguagem corporal, mas emocional também. Temos a tendência de sentir as mesmas emoções que uma pessoa próxima de nós. Isso se deve à atuação dos neurônios-espelho distribuídos pelas partes essenciais do cérebro, como o córtex pré-motor e os centros de linguagem, empatia e dor [5]. Nosso cérebro reproduz o padrão neural da emoção sugerida pelas expressões faciais e até os movimentos corporais.[6] 

Segundo o pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck College, no Reino Unido,[7] o papel dos neurônios-espelho talvez não seja exatamente o de espelhar ou simular a ação, mas o de antecipar as possíveis respostas a essa ação. O cérebro seria, portanto, um grande gerador de hipóteses que antecipa as consequências da ação, facilitando a tomada de decisão. Esta capacidade nos possibilitaria imaginar o que se passa na mente do outro, colocando-nos em seu lugar e compreendendo suas ações. De modo que, se vemos alguém chorar por qualquer que seja o motivo, os neurônios-espelho nos fazem lembrar de situações em que nós mesmos choramos, e assim, simulamos a sua própria aflição. É justamente esta capacidade de simular a perspectiva do outro que se constitui na base de nossa compreensão de suas emoções. 

Os experimentos com neurônios-espelho parecem contrariar a ideia de que as decisões morais seriam de natureza cognitiva, envolvendo um pensamento moral. Os comportamentos morais teriam um forte traço afetivo, posto serem frutos da capacidade que o indivíduo tem de sentir as emoções do outro. Não aprendemos os valores morais apenas por compreendê-los racionalmente, mas por sermos sentimentalmente educados. 

Os neurônios-espelho nos permitiriam captar a mente dos outros não por meio do raciocínio conceitual, mas pela simulação direta. Sentindo e não apenas pensando.

Sem dúvida, é graças a tal capacidade que podemos estabelecer relações sociais. Predizer as emoções do outro é essencial para um comportamento socialmente aceitável. Isso evita que cometamos atos que sejam dolorosos ou prejudiciais ao nosso semelhante. 

Convém salientar, entretanto, que as bases neuronais da empatia não diminui em nada o valor do sentimento, mas tão-somente nos ajuda a entender um pouco melhor a nossa condição humana. Assim como aprender a ler pautas musicais não interfere em nossa apreciação de uma bela composição. O Criador nos equipou com todos os itens de fábrica necessários para que vivêssemos plenamente nossa humanidade. Pena que ultimamente a impressão que se tem é de que alguns estejam com o espelho embaçado pelo vapor de seu próprio discurso. 

Para além da empatia 

O evangelho nos propõe dar um passo além da empatia. Digamos, para fins didáticos, que empatia seria o equivalente a calçar as sandálias do outro. Compaixão é descalçar-se para pisar o mesmo chão. A empatia nos faz entender o que o outro passa. A compaixão nos faz sentir o que o outro sente. Por que não basta calçar as sandálias do outro? Por que a empatia não é suficiente? Talvez Jung tenha a resposta: “Uns sapatos que ficam bem numa pessoa são pequenos para uma outra; não existe uma receita para a vida que sirva para todos.” 

Nunca daremos conta de entender plenamente o outro. O outro é, por assim dizer, incognoscível. Um mistério que só é superado pelo mysterium tremendum: Deus! Qualquer tentativa neste sentido constitui-se numa profanação de um território sagrado. Portanto, resta-nos uma abordagem reverente que busque sintonizar-nos com os seus sentimentos, ainda que não logremos decodificá-los. E aqui, faço coro com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman que em seu livro “Modernidade Líquida” diz: “Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas.” 

O amor derramado profusamente em nossos corações através da concessão do Espírito Santo[8] nos habilita a estar conectados uns aos outros num nível que jamais teria sido possível de outra maneira. No dizer do apóstolo, temos agora a mente de Cristo.[9] Estamos aptos a ver o que nossos olhos não viram, a ouvir o que nossos ouvidos jamais ouviram e a sentir o que teve origem no coração de Deus e daqueles que com Ele estão conectados pelo Espírito.[10] Comunhão! Esta é a palavra. Infelizmente, o seu significado ficou restrito ao relacionamento entre Deus e o homem. Porém, o mesmo apóstolo que disse que “nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo”[11], também afirmou que “o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco”, e que “se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros.”[12] Obviamente, esta comunhão é possibilitada quando compartilhamos o evangelho com os demais. Porém, ela não para aí. Não se trata de partilhar sua fé apenas. Paulo escreve aos Tessalonicenses que estes lhes eram tão afeiçoados, que de boa vontade ele queria partilhar-lhes não somente o evangelho, mas a sua própria alma.[13] 

Quando partilhamos o evangelho, tudo quanto queremos é que as pessoas sejam partícipes da mesma alegria que nos invadiu a alma no momento em que ouvimos a boa nova. Porém, antes de apresentar-lhes a razão de nossa esperança, devemos nos abrir a receber deles a razão de sua angústia. Comunhão é uma via de mão dupla. 

Repare, por exemplo, na recomendação do escritor sagrado: 
“Lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos com eles, dos maltratados, como sendo-o vós mesmos também no corpo.” Hebreus 13:3 
Não basta uma simples lembrança. Isso seria muito raso. Devemos, antes, nos imaginar presos e maltratados juntamente com eles. Enquanto não nos dispusermos a sentir suas dores, não poderemos compartilhar-lhes nossa alegria. E com isso, nossa alegria jamais será plena. Ou não é isso que Paulo diz na passagem em que aborda a Kenósis de Cristo? Ao mencionar os tais“afetos entranháveis”, ele arremata: “Completai a minha alegria, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa.” E um pouco abaixo, ele diz: “Não atente cada um somente para o que é seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus.”[14] 

Este era o padrão seguido pelos cristãos primitivos, que em vez de estarem preocupados com o que possuíam, preocupavam-se com o que podiam repartir com os demais. Não por uma imposição dos apóstolos, mas por nutrirem uns pelos outros o mesmo sentimento que houve em seu mestre. Lucas, o evangelista, dá testemunho disso em seu relato: 
“Era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas eram compartilhadas.” Atos 4:32 
Ninguém era obrigado a nada. Tudo era feito com absoluta espontaneidade, uma vez que o evangelho não trabalha com imposição. Algo compulsório não poderia ser fruto de uma consciência constrangida pelo amor. Lembremo-nos de que “o amor de Cristo nos constrange”[15], de modo que não desejamos mais viver para nós mesmos. 

Foi este amor que fez com que os gálatas acolhessem a Paulo num dos momentos mais críticos de sua vida, quando estava acometido de uma enfermidade nos olhos, talvez até contagiosa. Repare a intensidade de seu relato: 
“E vós sabeis que primeiro vos anunciei o evangelho estando em fraqueza da carne. Embora minha enfermidade na carne vos fosse uma tentação, não me rejeitastes nem me desprezastes; antes me recebestes como a um anjo de Deus, como ao próprio Cristo Jesus. Qual é, logo, a vossa alegria? Dou-vos testemunho de que, se possível fora, teríeis arrancado os vossos olhos, e os teríeis dado a mim.” Gálatas 4:13-15 
Onde impera o amor, não há porque disfarçar nossas fraquezas. Somos levados a acolher uns aos outros independentemente de sua condição física, emocional, financeira ou espiritual. Porém, isso não significa ser indiferente ao sofrimento do outro. Pelo contrário. Os gálatas se dispunham a fazer qualquer coisa para atenuar o sofrimento de seu mentor espiritual. 

Que bom seria se os líderes espirituais de nosso tempo se desvencilhassem desta espiritualidade de fachada, sempre preocupados em parecer bem aos olhos de seus fiéis, como se qualquer admissão de fraqueza atentasse contra a credibilidade de seus ministérios. Foi ninguém menos que o grande rei Davi quem disse que quanto mais se expunha ante os seus súditos, mais eles o honrariam. 

O mundo não busca líderes impecáveis, opulentos, mas francos e coerentes. Tais quais os líderes são os que os seguem. Daí vermos tantos cristãos intragáveis que arrotam arrogância e acabam vacinando as pessoas à sua volta contra o evangelho. Como disse o dramaturgo romeno Eugène Ionesco, "ideologias nos separam, sonhos e angústias nos unem". 

Um dia, todos os homens sentir-se-ão ligados uns aos outros, de modo que a injustiça feita a um, será como se houvesse sido sofrida por todos. Somente assim, este mundo poderá se tornar naquilo com que seu criador sonhou na eternidade.



[1] Êxodo 3:1-8a
[2] Efésios 6:15
[3] Kenósis – Grego: Esvaziamento
[4] FREUD, Sigmund. O Mal-estar da Civilização,  São Paulo: Companhia das Letras, 2013,  pg.8
[5] Rizzolatti, G.; Craighero, L.; The Mirror – Neuron system, Parma: 2004
[6] Ekman, P. & Davidson, R. J.  Voluntary Smiling Changes Regional Brain Activity, Psychological Science, 1993
[7] Csibra G. Action mirroring and action understanding: an alternative account. In: Haggard P, Rosetti Y, Kawato M (eds.) Sensorimotor foundations of higher cognition. Attention and performance XII. Oxford University Press, Oxford: 2007.
[8] Romanos 5:5
[9] 1 Coríntios 2:16
[10] 1 Coríntios 2:9-10
[11] 1 João 1:3
[12] v. 8
[13] 1Tessalonicenses 2:8
[14] Filipenses 2:2,4
[15] 2 Coríntios 5:14

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