sexta-feira, dezembro 11, 2015

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A Igreja e a inserção cultural - Última Parte


Por Hermes C. Fernandes
Arquetipicamente, as atividades agrícola e pastoril representam respectivamente a tradição e a vanguarda. Como disse Jesus, um escriba versado no reino de Deus é como um chefe de família que tira do seu bom tesouro coisas novas e velhas (Mt.13:52). Ambas são importantes na composição da sociedade. O que é bom deve ser preservado, mas jamais se deve prescindir do novo.
“Renovo”, por exemplo, é um termo agrícola. Cristo é profetizado como sendo o renovo do Senhor, “cheio de beleza e de glória” (Is.4:2). Esta profecia parece contrastar com outra proferida pelo mesmo profeta, que diz que Ele “foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos” (Is.53:2). Em ambas as passagens, Cristo é predito como um renovo, porém, numa é dito que Ele viria cheio de beleza e de glória, enquanto que noutra é dito que não veríamos beleza alguma nele. Trata-se, porém, da mesma realidade. O problema não estaria n’Ele, mas em nós, em nossa incapacidade de enxergar Sua beleza. Se não for o Senhor a nos abrir os olhos, permaneceremos indiferentes à beleza revelada em Cristo. Porém, nada altera o fato de que Ele é o renovo da humanidade, brotando de uma terra seca.
Este renovo, todavia, deve se espalhar entre os homens. O salmista profetizou que quando a misericórdia e a verdade se encontrassem e a justiça e a paz se beijassem, “a verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus. Também o Senhor dará o que é bom, e a nossa terra dará o seu fruto” (Sl.85:10-12). Portanto, há uma condição que o solo deve apresentar para que a verdade brote dele. Dois binômios aparecem aqui: misericórdia e verdade, justiça e paz. Será o encontro entre eles que produzirá as condições necessárias para a aparição do renovo entre as nações. Urge, portanto, que haja tal síntese. Tanto a misericórdia, quanto a paz apontam para a oferta de Abel, que por sua vez, tipifica o sacrifício de Cristo pelos homens. Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ora, quando falamos de cordeiro, lembramo-nos da atividade pastoril, aquela desenvolvida por Abel. Já a verdade e a justiça apontam para os frutos, o que nos remete à atividade de Caim. Sua oferta, todavia, não foi recebida por Deus, não por causa de sua natureza, mas por não ter sido entregue com a motivação correta. Todavia, em Cristo, a natureza da oferta de Caim é reabilitada. Por isso, Paulo diz que devemos ser “cheios do fruto de justiça, que vem por meio de Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus” (Fp.1:11). Além de ser o Cordeiro, Ele também é a Videira Verdadeira, da qual o Pai é o agricultor. É por meio d’Ele que somos capaz de produzir frutos excelentes, cheios de justiça e verdade.
Em Cristo, Caim e Abel se reencontram. A oferta de Caim é reabilitada. Pastores e agricultores dão as mãos. A cidade de Deus e a cidade dos homens se tornam numa única realidade.
Assim como a videira precisa ter seus ramos devidamente podados para que continuem a frutificar, para que o solo produza o renovo, precisa ser devidamente preparado. O preparo do solo passa por três processos:
·         Fertilização/Adubação
·         Aragem
·         Irrigação
Adubar significa enriquecer o solo com elementos nutrientes, quando este apresenta deficiência de minerais. Para isso, são utilizados adubos, que podem ser orgânicos (por exemplo: esterco, farinha de osso, folhas, galhos enterrados) ou minerais, que são inorgânicos (por exemplo: substâncias químicas são aplicadas, como nitrato de sódio, um tipo de sal).
O que nos serviria de adubo orgânico na fertilização do solo deste mundo?
Depois de apresentar suas credenciais e seu currículo vitae, Paulo diz que considerava tudo aquilo como “refugo”. O fato de ter sido circuncidado ao oitavo dia, como mandava a tradição, de pertencer à linhagem de Israel, à tribo de Benjamim, de ser hebreu de hebreus, fariseu, zeloso e irrepreensível no cumprimento da Lei a ponto de perseguir a igreja (Fl.3:4-8), era considerado pelo apóstolo como sendo adubo orgânico, capaz de preparar o solo para que a semente nele depositada pudesse germinar e frutificar. Nossas experiências existenciais não podem ser desprezadas. Por mais negativas que pareçam, foram permitidas por Deus para serem o adubo orgânico de que o solo necessita. A educação que recebemos, a família na qual nascemos, nossa formação acadêmica, os lugares por onde passamos, os traumas que sofremos, e até os posicionamentos equivocados que adotamos, preparam o solo de nossa existência para que fôssemos quem nos tornamos. Tudo teve um propósito. Até as tradições nas quais fomos inseridos cooperaram para prover um solo fértil para o surgimento de coisas novas. Todavia, não devemos nos estribar em nada disso. O lugar do adubo é no chão! Devemos reconhecer o papel que tudo isso teve em nossa história, sem, contudo, nos envaidecer. Nossa suficiência vem de Cristo.
E quanto ao adubo inorgânico?
“Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens.” Mateus 5:13

Muita coisa se tem dito acerca da passagem em que Jesus afirma que somos o sal da terra. Fala-se em sal como tempero que realça o sabor da comida e como conservante que impede que a carne apodreça. Fica a impressão que o papel do sal é sempre o de conservar, manter as propriedades naturais das coisas ou realçar seu sabor. Porém, não era nisso que Jesus pensava quando tomou o sal como referência de nossa atuação no mundo. Ele não disse que éramos o sal da comida ou o sal da carne, e sim, o sal da terra. Para que serve o sal na terra? Para torná-la fértil novamente e assim, possibilitar que produza frutos. Com o passar do tempo, é natural que o solo perca sua fertilidade, e esta se dá pela perda de sais minerais. Portanto, o uso do sal na terra é uma maneira de remediar. O papel da igreja, portanto, é promover a fertilização do solo deste mundo para que ele volte a frutificar diante de Deus. Se, todavia, nos tornamos insípidos, para nada serviremos senão para sermos pisados pelos homens. Não faremos qualquer diferença no mundo. O mundo se manterá indiferente à nossa presença. Os homens transitarão por nós sem nem sequer nos perceber. Passaremos incólumes pela vida.
Nosso papel como sal é resgatar o mundo de sua esterilidade espiritual. E para tal, precisamos ser pulverizados, espalhados pelo mundo afora, distribuídos em cada área da sociedade. Assim como na ocasião em que o profeta Eliseu pediu que lhe trouxessem um prato novo cheio de sal, e o lançou no manancial das águas para que sarassem de sua esterilidade (2 Reis 2:20-21), temos que ser espargidos na cultura, nas ciências, na política, em nossa vizinhança, nos grandes e pequenos centros urbanos, nas comunidades ribeirinhas, nas favelas, nos condomínios, etc. Nenhum ambiente deve ser poupado de nossa presença. 
Apesar de extremamente importante, adubar o solo é remediar.  A questão é: como impedir que o solo perca a fertilidade? Que medidas preventivas podem ser tomadas?

1 - Rotação de culturas
A rotação de culturas consiste de alternar o plantio de leguminosas com outras variedades de plantas no mesmo local. Dessa forma as leguminosas, pela associação com bactérias que vivem nas suas raízes, devolvem para o local nutrientes utilizados por outras plantas, evitando o esgotamento do solo.
O que tal rotação de culturas representaria para nós que cooperamos com a implantação do reino de Deus neste mundo?
Se há um adjetivo que não cabe em Deus é a previsibilidade. Isso porque Deus está sempre inovando. Suas obras não seguem escala industrial. Quantas vezes O vemos abrir o Mar Vermelho, por exemplo? Quantas vezes O flagramos andando por cima das águas? Quantas vezes transformou água em vinho? Infelizmente, preferimos lidar com uma divindade que seja absolutamente previsível, que haja sempre dentro de um padrão. Sentimo-nos confortáveis com isso. Nada mais desconcertante do que lidar com um Deus que não cabe dentro de uma caixinha, e age com a mais absoluta soberania. Portanto, não há como nos acostumar com Ele. Sempre somos surpreendidos com Suas obras. Daí a exclamação do salmista que nos faz saltar os olhos:
“Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas riquezas.” Salmos 104:24
A igreja deve, no mínimo, buscar parecer com o Deus a quem cultua. Se somos, de fato, a agência do reino de Deus neste mundo, não podemos cair na mesmice. É pela igreja que “a multiforme sabedoria de Deus” é revelada no mundo (Ef.3:10). Portanto, não podemos nos tornar reféns da monotonia, nem esboçar uma fé que cheire a naftalina.
Tudo o que Deus faz por nós, em nós e através de nós tem a marca da variedade. Paulo diz que “há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil”(1 Coríntios 12:4-7). A despeito da variedade de Suas manifestações, o critério é imutável: a utilidade. Em outras palavras, os dons visam a produção de frutos. Deus não desperdiça recursos. Compete, entretanto, a cada um de nós administrar de melhor maneira possível “o dom como o recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1 Pe.4:10), visando sempre o bem de outrem, e não nossa promoção ou aprazimento pessoal.
Além da variedade de dons e manifestações, há também uma variedade de abordagens. Basta uma leitura superficial dos evangelhos para perceber que Jesus jamais foi repetitivo em Suas abordagens. A igreja, porém, parece preferir usar uma mesma abordagem à exaustão, até que não produza mais os efeitos desejados.
A Nicodemos, o velho fariseu, Jesus disse que era necessário nascer de novo. À mulher samaritana à beira do poço, Ele disse que lhe daria uma água que a saciaria de uma vez por todas. A Zaqueu, o cobrador de impostos corrupto, Ele disse que desejava hospedar-se em sua casa. À mulher flagrada em adultério e prestes a ser executada sumariamente, Ele admoestou: Vai e não peques mais! A Pedro, o pescador, Ele convidou a segui-Lo e a tornar-se num pescador de homens. Repare que eram abordagens distintas e personalizadas. O problema é que o que Jesus fazia no varejo, queremos fazer no atacado. Achamo-nos no direito de padronizar a atuação de Deus no mundo. E qualquer coisa que nos pareça diferente, julgamos ser excêntrica e herética.
A sabedoria e a graça de Deus não são uniformes, mas multiformes. Portanto, deixemos de lado as fórmulas preconcebidas, os apelos padronizados, e recorramos à criatividade concedida pelo Espírito Santo, evitando, assim, que as pessoas se tornem evasivas e resistentes à mensagem do Evangelho.

2 - Aragem do solo
Arar o solo é outro cuidado que se deve tomar para que o solo não fique compactado, "socado". Revolver a terra, além de arejar, facilita a permeabilidade do solo, permitindo que as raízes das plantas penetrem no solo, além de levar para a superfície o húmus existente.
A ferramenta usada na aragem é o arado. Nos tempos bíblicos, o arado era puxado por um animal, geralmente um boi. Por isso, o arado é uma ferramenta que representa a união de duas culturas: a agrícola e a pastoril. Tradição e vanguarda precisam somar esforços para manter o solo fofo, pronto a receber as sementes.
É através da aragem que se abre espaço para a circulação do ar. Engana-se quem pensa que o Evangelho seja um sistema tão hermeticamente fechado que não permita espaço para o diálogo respeitoso com tradições de diversos matizes.
Além da aragem artificial, há também a aragem natural feita pelas minhocas. Um solo sem minhocas indica infertilidade. Por mais asqueroso que nos pareçam, as minhocas cumprem um importante papel na fertilização do solo. As minhocas comem o material do solo e da planta, deixando para trás pedaços de excrementos indigestos - esterco de minhoca, (húmus). Estes pedaços, como qualquer outro estrume, fertilizam o solo, adicionando nutrientes e outros materiais que proporcionam benefícios biológicos, químicos e físicos para o crescimento das plantas. O húmus é o produto resultante da matéria orgânica decomposta, a partir do processo digestório das minhocas, formando uma compostagem natural, agregando ao solo os restos de animais e plantas mortas e também seus subprodutos. É considerado o mais completo adubo, apresentando as seguintes características físico-químicas: não possui cheiro, é uma substância asséptica, rico em nutrientes, além de possuir textura macia.
As minhocas do subsolo escavam túneis e, assim, fornecem drenagem durante os períodos de chuva forte, além de passagem para o ar e para as próprias raízes das plantas. Também ajudam soltando e misturando o solo de modo a formar as condições ideais de plantação.
Não há porque ter nojo, mesmo porque, ninguém vai comê-las. De maneira análoga, há ideologias e tradições humanas que não devem ser ‘digeridas’, mas que servem para manter o solo revolvido e fofo. Instigam os homens a refletirem e a se reposicionarem acerca de grandes temas e dilemas que os cercam.

3 - Irrigação e drenagem
Irrigar e drenar são alguns dos cuidados que devem ser tomados para manter o nível da umidade necessário ao solo a fim de garantir que ele continue fértil.
Com a irrigação, a água chega às regiões ou áreas mais secas. Já com a drenagem, retira-se o excesso de água do solo, possibilitando que ele seja arejado. Com o aumento dos poros, criam-se passagens de ar entre as partículas do solo.
Enquanto a aragem se faz antes de lançar a semente no solo, a irrigação começa antes e continua ao longo do cultivo.
De maneira análoga, nosso trabalho na implantação do reino de Deus deve ser visto dentro de um contexto geracional. Se somos os que plantam, quem nos antecedeu teve que arar a terra, e quem nos suceder terá que regar a plantação.
Paulo demonstra isso tomando-se como exemplo juntamente com Apolo:
“Pois, quem é Paulo, e quem é Apolo, senão ministros pelos quais crestes, e conforme o que o Senhor deu a cada um? Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento. Por isso, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento. Ora, o que planta e o que rega são um; mas cada um receberá o seu galardão segundo o seu trabalho. Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus.” 1 Coríntios 3:5-9
O cultivo é um trabalho conjunto de várias gerações. Somos todos cooperadores. Tanto quem arou, quanto quem semeou e regou, são partes importantes no processo. Todavia, cabe a Deus garantir que a semente vingue, germine, cresça e frutifique.

4 – Descanso da terra

Quando Deus alojou Seu povo na terra prometida a Abraão e sua descendência, ordenou que a cada sete anos, a terra deveria descansar (Lv.25:3-5). Durante um ano inteiro, nada seria cultivado. Porém, o povo de Israel sonegou o descanso devido ao solo. Por 490 anos a terra continuou sendo cultivada ininterruptamente. Interessante que hoje, milhares de anos depois, a ciência comprova que se a terra não descansar a cada seis colheitas, ela perde a fertilidade.

Foi necessário que Deus permitisse a invasão de Jerusalém por parte do exército da Babilônia e que seus filhos fossem levados em cativeiro por 70 anos.  Chegara a hora da cobrança. A terra já não suportava mais. E se ela deixasse de produzir, a fome destruiria aquela nação. Se dividirmos 490 por 7, veremos que dá exatamente 70 anos, o tempo de descanso acumulado.

Deixar a terra descansar é entregá-la a si mesma, permitindo que produza espontaneamente, no ritmo que a própria natureza impõe, sem interferência humana. O que podemos aprender com isso?

Às vezes temos que diminuir o ritmo e esperar por um tempo de maturação, deixando que as coisas aconteçam sem qualquer pressão externa.

Nas sábias palavras do escritor de Eclesiastes, há um tempo para tudo debaixo do sol. Há um tempo que deve ser dedicado à evangelização ostensiva, e há um tempo em que devemos apenas esperar pacientemente. Uma igreja viciada em proselitismo terá sérias dificuldades de entender isso. Ela está mais preocupada com números, com estatísticas. É daí que surgem os números evangelásticos. Tudo para impressionar. Afinal de contas, quanto mais membros, mais capital político se tem, maior o poder de barganha. É lamentável constatar isso. Quando daremos descanso à terra? Quando a deixaremos produzir por si só, em seu próprio ritmo, sem pressão, sem compromisso com resultados? Durante o tempo de descanso da terra não há poda, nem semeadura, nem colheita. A terra recobra seu estado selvagem.

Precisamos de um tempo de refrigério. Era assim que chamavam ao ano sabático em que a terra deveria entrar em descanso. Chega de estratégias mirabolantes, de avivamentos de marketing, de técnicas de crescimento de igreja. Tudo isso cansa. Exaure a terra. Suga suas energias.

Negar-se a entrar no descanso proposto pelo Senhor é um ato de flagrante rebeldia (Hb.4:1-11). Corremos o risco de recapitular Israel nos tempos dos profetas, quando o Senhor lhes dizia:“Este é o descanso, dai descanso ao cansado; e este é o refrigério; porém não quiseram ouvir. Assim, pois, a palavra do Senhor lhes será mandamento sobre mandamento, mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem e se enlacem, e sejam presos” (Is.28:12-13).

O que vemos hoje, senão uma igreja refém de suas estruturas e programas? Uma máquina eclesiástica preocupada apenas com a manutenção de suas engrenagens. Regras, técnicas, verdadeiras receitas de bolo visando tão somente resultados considerados positivos. 

Por isso temos hoje uma igreja performática, viciada em aplausos e disposta a promiscuir-se com os poderes deste mundo. 

* Para uma melhor compreensão do tema, leia os dois posts anteriores desta série.

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