Por Hermes C. Fernandes
Há
como compartilhar a boa nova sem requerer que as pessoas se arrependam de seus
pecados? Não sou linguista, mas gosto de observar como as palavras evoluem ao
longo do tempo. Por exemplo: quem prestaria condolências a uma viúva dizendo
que a morte de seu marido foi algo formidável? A menos que queira criar uma
confusão em pleno funeral. Porém, o sentido original desta palavra é justamente
este. Tempos atrás, dizer que algo era formidável significava dizer que era
terrível.[1] O que um adolescente de
hoje em dia quer dizer quando se refere a algo como “irado”? Provavelmente não
está pensando em algo odioso. O que hoje é apenas uma gíria, amanhã estará nos
dicionários. As palavras simplesmente mudam com o tempo.
“Arrependei-vos!”, bradava Jesus pelas
ruas da Galileia. Para a maioria dos cristãos de nossos dias, o arrependimento
proclamado por Cristo nada mais seria do que um remorso pelos erros cometidos. Dentro
de uma cultura católica como a nossa, arrependimento tem a ver com penitência. Portanto,
arrepender-se implica chorar amargamente, penitenciar-se. Se for protestante, o
penitente deve jejuar, quebrantar-se, prostrar-se com o rosto em terra. Se for
católico, deverá confessar-se com um sacerdote, rezar alguns “pai-nossos” e “ave-Marias” para ser absolvido, etc. Sem querer desdenhar de
tradição alguma, seria isso que Jesus tinha em mente ao conclamar os homens ao
arrependimento?
O vocábulo grego traduzido por “arrependimento” em nossas Bíblias é metanoia. Devo adiantar que não tem a
ver propriamente com sentir remorso ou pesar, ainda que possa, eventualmente,
incluir tais elementos. Metanoia é a
junção de duas palavras: meta, que
teria o mesmo significado de nosso prefixo trans,
e significa “ir além de”. E noia que se origina de nous, que é “mente” em grego. Portanto, numa tradução livre, metanoia significa “ir além de uma mentalidade”, ou simplesmente, “expandir a consciência”. Se fosse hoje, talvez Jesus pregasse em nossas ruas: "Abram a cabeça!" ou até "Parem de pensar dentro da caixa!"
Não é o uso da palavra “arrependimento” que legitima um discurso evangelístico.
Qualquer discurso que conclame os homens a expandir sua consciência, a
libertar-se de um padrão de pensamento, e que apresente o reino de Deus como a
proposta divina à mentalidade vigente, é, sim, um discurso evangelístico. Eu
disse, evangelístico, não proselitista.
De fato, o anúncio do evangelho do reino demanda conversão. Está aí
outra palavra mal compreendida nos círculos religiosos. Converter-se não é aderir
a uma nova religião. Trata-se, antes, de dar uma guinada de 180º, mudar de
direção. Jesus disse que se não nos convertermos e não nos fizermos como
meninos, de modo algum entraremos no reino dos céus.[2] Talvez esta seja a melhor
definição de conversão: tornar-se como um menino. Remover todas as camadas que
se formaram em volta de nosso ser e reencontrar nossa essência. Redescobrir
aquilo para o qual fomos criados.
Arrependimento e conversão caminham juntos. Arrepender-se seria algo
como “cair em si”, perceber que está caminhando na direção contrária. Converter-se
é dar meia volta. Se antes vivíamos para nós mesmos, agora nos voltamos para
fora. Não há como converter-se a Deus, sem que se converta ao próximo.
A essência do pecado é viver para si. Etimologicamente, pecado significa
“errar o alvo”. Antes de nos convertermos, nossas atitudes visavam nosso próprio
benefício. Mirávamos em nós mesmos. Era como se o mundo todo nos orbitasse. Pensávamos
ser o centro gravitacional do universo. A conversão promove um deslocamento de
eixo. Finalmente, tornamo-nos livres para amar a todos à nossa volta.
Emerge daí uma nova percepção da realidade. Como disse Paulo, tudo se
faz novo. Tornamo-nos novas criaturas.[3] Nossa consciência se
expande para além de nós mesmos. Percebemo-nos parte de uma realidade onde tudo
está conectado. Obviamente que isso altera nossas opiniões e conduta. Não dá
para continuar vivendo como antes. A pergunta “em que isso me beneficia ou
prejudica” é substituída por “em que isso poderá trazer beneficiar o meu próximo”.
Ninguém precisará perder para ganharmos. Nossa felicidade não deverá custar a desgraça
de outros.
Imagine um mundo em que todos se convertessem assim? Pois a este mundo
que Jesus chama de “reino de Deus”. Não se trata de um lugar para onde vamos
depois da morte, mas de um lugar onde os homens vivam como irmãos.
Quando as pessoas deixarem de viver para si mesmas, muito daquilo que
consideramos pecado deixará de ser praticado. Mentir, roubar, matar, adulterar,
são comportamentos provenientes de uma vida autocentrada.
Um discurso que ataque os frutos sem mostrar a raiz do problema está
fadado ao fracasso. Daí a ineficiência do discurso moralista.
Muitos cristãos sinceros e bem intencionados acreditam piamente que o
que vai levar os homens ao arrependimento é anunciar o castigo que os aguardam
depois da morte. Pensam que a ameaça do inferno é suficiente para provocar uma
mudança de conduta nas pessoas. Creio que Paulo não concordaria muito com eles.
Segundo o apóstolo, o que levaria os homens ao arrependimento é a benignidade
de Deus.[4]
É esta mesma benignidade que, segundo Jesus, permitiria que “publicanos e meretrizes” entrassem no
reino de Deus antes mesmo dos religiosos rigorosos.[5]
O que temos visto hoje é um crescente número de adesões à religião evangélica.
Porém, o que as pessoas parecem buscar são vantagens. De um lado, pregadores
anunciam curas milagrosas e prosperidade instantânea, do outro lado, pregadores
fundamentalistas ameaçam as pessoas de serem lançadas no inferno caso se negue
a se converter. Parece que ambos os discursos funcionam. Todavia, assistimos a
emergência de uma geração de cristãos ensimesmada e alienada. Se houvesse, de
fato, conversões legítimas, o número de cristãos neste país já teria provocado
uma revolução sem precedentes. Não haveria mais miséria nos grandes centros
urbanos, uma vez que toda esta massa de convertidos estaria partilhando seu pão.
A religião evangélica se tornou numa hidra famigerada, que só pensa em
estender seus tentáculos e transformar o país de cima para baixo, impondo uma
agenda moralista ao resto da sociedade.
Talvez tenhamos algo a aprender com a muçulmana Rabia
al Adawiya al Qadsiyya que teria vivido no ano 800 de nossa Era. Tente não
emocionar-se com o que ela diz:
“Se eu te
adorar por medo do inferno, queima-me no inferno; se eu te adorar pelo paraíso,
exclua-me do paraíso; mas se eu te adorar pelo que tu és, não esconda de mim a
tua face!”
Nascida em uma família
muito pobre, que não tinha condições de comprar óleo para acender uma lamparina
dentro de casa, Rabia acreditava que Deus deveria ser adorado por amor, não por
medo ou interesse.
Teresa de Ávila, a
freira católica canonizada pelo Vaticano, também esboçava esta percepção. Confira
o soneto composto por ela sob o título “A Cristo Crucificado”:
Não me move, meu Deus, para querer-te
o céu que me hás um dia prometido,
e nem me move o inferno tão temido
para deixar por isso de ofender-te.
Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
cravado numa cruz e escarnecido;
move-me ver teu corpo tão ferido;
movem-me o insulto e a vida que perdeste.
Move-me teu amor, de tal maneira,
enfim, que sem céu ainda te amara
e a não haver inferno te temera.
Nada me tens que dar porque te queira.
E se o que ouso esperar não esperara,
o mesmo que te quero te quisera.
Deus deve ser amado pelo que é. E Ele escolheu ser amado no semelhante. Ele
não se impressiona com mãos estendidas ao céu, mas pede que estendamos nossas mãos
ao próximo. Acolher o próximo é liturgia. Partilhar nosso pão é eucaristia.
O que nos inspira a uma vida voltada para fora de nós mesmos é o sacrifício
de Cristo. Podemos até nos sentir motivados por palavras como as de Rabia ou
Teresa de Ávila, mas teremos que buscar n’Ele a inspiração para viver.
Por isso, o centro de nossa fé é a cruz. Ali, o Deus revelado em Jesus
Se entrega por amor a uma humanidade que se encontrava a deriva no oceano da existência.
Como imaginar aquela cena e não se sentir constrangido? Como disse Paulo, “o amor de Cristo nos constrange,
considerando nós isso, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele
morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si.”[6] João, conhecido
como apóstolo do amor, arremata: “Conhecemos
o amor nisto: que ele deu a vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos.”[7]
Dizer que Ele morreu por nós é apenas parte da verdade. Ele abriu mão de
Sua vida para que nós façamos o mesmo. Ao olhar para aquela cruz, devemos
ver-nos nela. Ela não é somente a Sua cruz, mas a nossa. Ele morreu por todos,
logo todos morreram. Somos conclamados a ser co-participantes do gesto que
alterou para sempre o rumo da história.
Uma vez que nos condiremos crucificados juntamente com Ele, o Espírito
de Cristo passa a viver através de nós. Esta foi a promessa que Ele nos fez. O
mesmo Espírito que ressuscitou a Jesus de entre os mortos, agora nos habilita a
viver uma nova vida, não mais centrada em nós mesmos, mas voltada para os
demais.
Desencadeia-se, assim, um processo que transformação. Tomando emprestada
a expressão cunhada por Raul Seixas, tornamo-nos numa metamorfose ambulante. Aos poucos, o Espírito Santo vai nos remodelando,
tornando-nos cada vez mais parecidos com Jesus.[8] Isso
não nos faz candidatos a anjos, mas resgata completamente a nossa humanidade. Deus
não Se fez homem para nos tornar deuses ou anjos, mas para nos tornar
plenamente humanos.
Jamais foi intenção de Jesus povoar este mundo de cristãos, nem impor
nossa religião aos demais. O propósito do evangelho é o de nos fazer seres
humanos melhores, cumprindo, assim, a razão de nossa existência.
Excelente. Sempre claro e detalhista na exposição.
ResponderExcluirÉ nisso que creio!!!!!
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