Por Hermes C. Fernandes
Por que há tanta
discordância entre os cristãos quando o assunto é salvação? Ora, se temos um
único Salvador, não deveríamos pensar e sentir a mesma coisa acerca do assunto?
Talvez, parte do problema se deva aos múltiplos significados da palavra grega “soteria”
traduzida por “salvação” no Novo Testamento. Basta que encontremos tal palavra,
e logo achamos tratar-se do mesmo conceito, isto é, da salvação da alma.
Todavia, há diversas passagens que não nos permitem atribuir o mesmo
significado. Por exemplo: Em Filipenses 1:19, Paulo afirma que as orações
daquele povo lhe resultariam em salvação. Ora, Paulo ainda não era salvo? E
mais: nossa salvação não é obra exclusiva de Cristo? Sua
constante intercessão junto ao Pai não nos bastaria? Porventura, não
lemos em Hebreus que Ele “pode também
salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para
interceder por eles” (Hb.7:25)? Então, que estória é essa que a oração de
alguém pode resultar em salvação para nós? A resposta é óbvia. Não se trata de
salvação no sentido soteriológico, isto é, salvação da alma, mas de livramento
de alguma circunstância em particular. Paulo estava preso e desejava ser “salvo”
daquela condição.
Outra passagem interessante
é a que diz que a mulher só seria salva, “dando
à luz filhos” (1 Tm.2:15). Imagine quão injusto seria se a salvação da
mulher estivesse condicionada à maternidade? Mas é óbvio que não era disso que
o apóstolo falava nesta passagem. Dentre várias interpretações possíveis, ele
estaria se referindo ao fato de que a mulher que não tivesse filhos para ajudá-la
em sua velhice, certamente estaria em maus lençóis, pois aquela era uma
sociedade machista, em que a mulher não gozava da autonomia que conquistou posteriormente
ao longo dos séculos. Se Paulo estivesse se referindo à salvação da alma,
estaria se opondo radicalmente ao resto das Escrituras, dentre as quais destaco
o que fora dito por Pedro de que os maridos deveriam honrar suas esposas como
vaso mais frágil, levando em conta serem elas herdeiras juntamente com eles da
graça da vida (1 Pe. 3:7). Portanto, a mesma graça que salva a homens, salva
igualmente a mulheres, independentemente de serem ou não mães.
Outra passagem
instigante é aquela em que Paulo afirma suportar tudo “por amor dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que
está em Cristo Jesus em glória eterna”(2 Tm.2:10). Logo de cara, temos a
impressão de que ele esteja falando da salvação eterna, isto é, daquela que se
aplica à alma. E de fato, este é o assunto em questão. O desejo do apóstolo era
que todos os eleitos fossem salvos, e, para tal, ele se dispunha a sofrer.
Todavia, não se trata de um sofrimento expiatório, isto é, capaz de salvar. O
que Paulo tinha em mente era o sofrimento decorrido de expor-se pela pregação
do Evangelho. Afinal, o meio escolhido por Deus para que fôssemos salvos é a
pregação. Porém, isso está longe de atribuir aos nossos esforços um valor
salvífico. Caso contrário, seríamos co-redentores. Nada há que se acrescentar
ao sacrifício feito por Cristo, que, não apenas viabiliza nossa salvação, mas a
efetua plenamente. Seu sacrifício não nos torna salváveis, mas absolutamente salvos. Outra passagem que
pode parecer sugerir que nosso sofrimento tenha atribuições expiatórias é a que
Paulo afirma cumprir em sua carne “o resto
das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja” (Col.1:24). Caso
não tomemos os devidos cuidados, cederemos à tentação de atribuir ao sofrimento
impingido a Paulo e aos demais apóstolos um poder salvífico, como se Cristo
houvesse pago apenas a entrada e deixado um carnê para ser quitado por Seus
apóstolos, ou quiçá, por todos os Seus discípulos. Porém, o que lemos nas
Escrituras é que o preço pela nossa salvação foi integralmente pago na cruz. O brado
de “está consumado” indica isso. O
escritor de Hebreus diz que “já não resta
sacrifício pelos pecados” (Hb.10:26) e que “por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que
estão sendo santificados” (Hb.10:14). Então, o que Paulo quis dizer com
isso? O que ele teria a acrescentar ao sacrifício de Cristo, afinal?
Creio que esta questão
pode ser resolvida considerando porções de outros dois textos da lavra
do mesmo apóstolo. No primeiro deles, Paulo diz: “E, ainda que seja
oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, folgo e me
regozijo com todos vós” (Fp
2:17). E no outro, já em clima de despedida, ele afirma: ”Porque eu já estou sendo oferecido por libação, e o tempo da minha
partida está próximo” (2 Tm
4:6). Repare que em ambos encontramos a palavra “libação”. O que consistia tal
prática? Era uma oferta de líquidos, em geral de vinho ou de azeite, ou mesmo
de água, derramada sobre o sacrifício oferecido a Deus. Paulo dá a entender
que, uma vez que o sacrifício perfeito pela nossa salvação foi oferecido a Deus
por Jesus Cristo, o que nos resta é oferecer nossas vidas como libação sobre
este sacrifício. Isso não agrega valor algum ao sacrifício, mas atribui-lhe
honra e dignidade. É neste contexto que Paulo diz que cumpria o que restava das
aflições de Cristo. Não se trata, portanto, de complementar o que já está
feito, mas de reconhecer seu valor. Sobre isso, João diz em sua primeira
epístola: “Nisto
conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e nós devemos dar a vida
pelos irmãos” (1 Jo.3:16).
Uma das máximas mais usadas
por cristãos no mundo inteiro é a que diz “Só Jesus salva”. Quem, em sã
consciência, se atreveria a discordar dela? Entretanto, deparamo-nos com Paulo aconselhando a Timóteo a ter cuidado de si mesmo e da doutrina, “porque, fazendo isso, te salvarás, tanto a
ti mesmo como aos que te ouvem” (1 Tm.4:16). Ora, se só Jesus salva, que
recomendação mais estranha é esta de Paulo a seu pupilo! Salvar a si
mesmo e, de quebra, os que o ouviam? É
isso mesmo, Arnaldo? Este é mais um caso clássico de salvação fora do
contexto soteriológico. “Salvar” aqui é sinônimo de beneficiar. Com efeito,
Paulo estava dizendo: Se você agir desta maneira, vai ajudar a você mesmo e
àqueles que o acompanham, entende?
O mesmo se dá nas
passagens em que Jesus diz a alguém a quem curou: “A tua fé te salvou”
(Mc.5:34). Ninguém pode salvar a si mesmo no sentido soteriológico. Portanto,
ninguém é salvo por sua própria fé. Caso contrário, teríamos em que nos
vangloriar diante de Deus e o ciclo do pecado se retroalimentaria. Aliás, não
podemos sequer nos estribar em nossa fé, uma vez que a mesma nos fora conferida
por Deus como um dom, e, portanto, não vem de nós mesmos. Neste caso em
particular, não se trata de salvação da alma, mas de cura do corpo.
Ninguém salva ninguém!
Pelo menos, não no sentido soteriológico.
Então, o que dizer das
passagens abaixo?
“Sabei
que aquele que fizer converter um pecador do erro do seu caminho salvará da
morte uma alma e cobrirá uma multidão de pecados.” Tiago 5:20
“E
se é com dificuldade que o justo se salva, o que será do ímpio e do pecador?” 1
Pedro 4:18
“Como
também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de
muitos, para que assim se possam salvar.” 1 Coríntios 10:33
Na primeira passagem em
questão, salvar tem o sentido de poupar. Salvar alguém da morte é o mesmo que
poupar sua vida, isto é, impedir que colha o fruto resultante dos seus erros.
Na segunda passagem, salvar
tem o sentido de escapar. Considerando o contexto, vemos que Pedro está se
referindo ao juízo de Deus que cairia sobre a sociedade como um todo, começando
pela própria casa de Deus. Em outras palavras, ninguém sairia ileso. E os
critérios deste juízo seriam tão rigorosos que dificilmente um justo escaparia,
quanto mais um pecador.
E na terceira passagem,
Paulo está falando sobre abrir mão de agradar a si mesmo para que isso traga
algum benefício aos demais. Aqui, “salvar” significa “aproveitar”.
Como vemos, o assunto é bem mais complexo do que geralmente
julgamos. Há tantos significados para “salvação” que mesmo um calvinista ferrenho
poderá concordar que, num sentido estrito, pode-se perder a salvação. Não a
salvação eterna, oferecida como um dom irrevogável, mas a salvação como um
livramento de uma situação, por exemplo. O escritor de Hebreus inclui na
galeria dos heróis da fé as mulheres que “receberam
pela ressurreição os seus mortos”, mas também os que “foram torturados, não aceitando o seu livramento, para alcançarem uma
melhor ressurreição” (Hb.11:35). O vocábulo traduzido aqui como “livramento”
é apolytrósis que em todas as demais
passagens bíblicas é traduzido como “redenção”, um sinônimo para “salvação”. Seria
como dizer que eles tiveram que perder aquela salvação para receber uma
superior.
Tudo vai depender do
sentido da palavra geralmente apreendido quando se considera o contexto
imediato em que é aplicada.
Porém,
quando o assunto é a salvação, aquele dom imerecido nos outorgado
exclusivamente pela graça, as Escrituras são unânimes e consistentes em dizer: “Não há salvação em nenhum outro, pois,
debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At. 4:12). E
Ele só foi aprovado como nosso Salvador por não haver sido salvo! Isso mesmo!
Jesus perdeu a salvação! Antes que me chame de herege, leia atentamente o que
dizem as Escrituras:
“Agora o meu coração está angustiado, e que direi? Pai, salva-me desta
hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” João 12:27
Apesar da
disposição demonstrada nesta passagem, o fato é que, no auge de Sua angústia,
Ele chegou mesmo a pedir que o Pai O salvasse daquela hora.
Imagina se o Pai
O houvesse atendido, salvando-O daquela hora? Estaríamos todos
irremediavelmente perdidos. Salvá-lo “daquela hora” resultaria em nossa
perdição por toda a eternidade. Uma hora que valia pela eternidade. Não foi em
vão que Ele rogou aos Seus discípulos que O acompanhavam na hora decisiva para
toda a humanidade: “Nem uma hora podeis
vigiar comigo?” O peso da responsabilidade era tão grande que Ele apelou
aos Seus companheiros que O ajudassem a carregar. Mas eles insistiam em
dormir...
O escritor sagrado nos informa que “durante os seus dias
de vida na terra, Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com
lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, sendo ouvido por causa da sua
reverente submissão. Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio
daquilo que sofreu; e, uma vez aperfeiçoado, veio a ser o autor da eterna
salvação para todos os que lhe obedecem”(Hb.5:7-9).
Deus, o Pai, ouviu-O, mas não O atendeu. Para
que pudesse salvar-nos sem o custo de Sua justiça, Seu Unigênito não poderia
ser poupado. Ora, se “nem mesmo a seu
próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também
com ele todas as coisas?” (Rm.8:32). A salvação oferecida em Jesus não se
limita à alma, mas abarca tanto nossa existência quanto nossa essência. Ele é
quem nos salva em todos os sentidos possíveis. Ele é quem nos livra, nos poupa,
nos cura, nos esforça, nos beneficia, quer diretamente, quer através de Seus
inúmeros canais. Portanto, a Ele, e exclusivamente a Ele, sejam dados a honra,
a glória, o poder e a majestade por todas as Eras e gerações.
Fantástico como sempre❣
ResponderExcluirMuito bem explicado e conduzido.
Fazia tempo que não aparecia e já estava com saudades, bispo.
Pena que não consegui mais te adicionar no meu novo face, devido a tanta gente no seu.
Fica aqui meu abraço.
PAZ!!
Amem
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