sexta-feira, setembro 03, 2010

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Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:

Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:

Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu?


O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama.

Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política.

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na m*.

Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas.

O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2]

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes.

Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida.

Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualidade, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.

A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável.

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça.

Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.

Continua...

Jorge Pinheiro (Via metodista.com.br)


[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.

Um comentário:

  1. Caro amigo,

    Excelente página e posso ver, pelo número de seguidores, que suas publicações engrandecem a internet.

    Já estou seguindo...

    SDS

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