Por Hermes C. Fernandes
Ontem fui ao inferno. Não foi uma visão, nem uma experiência
extracorpórea, do tipo “arrebatamento”, mas algo real, concreto. Foi difícil
remover o odor que ficou entranhado em meu corpo. O que vi no inferno? Não havia diabos com tridentes, nem
caldeirões. Mas vi muitos anjos de pele escura que insistiam em sorrir para
mim, apesar de não encontrar qualquer razão para sorrir.
Pasmem! Encontrei o céu bem ali... no inferno!
A palavra traduzida por “inferno” nos evangelhos é geena, que também poderia ser traduzida
como “Lixão”. O Geena ficava do lado
de fora dos portões da cidade de Jerusalém, e nele eram lançados todos os
detritos, aquilo que jamais poderia ser reciclado e que, portanto, só serviria
para alimentar as chamas que ali ardiam ininterruptamente.
Nosso Geena fica num bairro de Duque de Caxias chamado
Jardim Gramacho. Mesmo tendo sido desativado pelo governo recentemente, o lixo
de toda a região metropolitana do Rio continua sendo lançado lá.
Centenas de pessoas vivem ali, disputando com os urubus e as
ratazanas as sobras de uma sociedade consumista ao extremo.
Devo confessar que a pobreza não é novidade para mim. Numa
cidade como o Rio, acostumamo-nos com o contraste resultante do convívio entre
riqueza e pobreza. Todavia, nunca havia me deparado com tamanha miséria. As
condições de vida ali são desumanas. Casas feitas de papelão, pedaços de telha
e madeira podre.
Não há água encanada, tampouco saneamento básico. Vi quando
uma criança pisou em cima de fezes, e sequer se importou. Apenas esfregou seu
calcanhar no solo enlameado para removê-la.
O cheiro era insuportável. Havia momentos em que sentia
ânsia de vômito. Como seres humanos poderiam viver em tais condições? Lágrimas
vinham aos olhos...
E aqueles sorrisos? Como explicá-los? Como entendê-los? Eram
um insulto à minha arrogância burguesa.
Quando entrávamos em alguma casa (se é que posso chamá-las
assim), éramos recebidos como príncipes. As crianças nos abraçavam o tempo
todo, revelando sua carência de amor.
Se num dia ensolarado como ontem foi tão difícil caminhar
pelas ruas enlameadas, imagina quando chove.
Na ótica de Jesus, o lixão era lugar para vermes, não seres
humanos, feitos à imagem e semelhança de Jesus. Então, o que eles estariam
fazendo ali? Quem os condenara a uma existência tão indigna? Que pecados teriam
cometido? O pecado de existir numa sociedade corrompida pela injustiça. Eles
são os efeitos colaterais da nossa estúpida ganância. Preferimos varrê-los
para debaixo deste enorme tapete de lixo. Desde que estejam fora de nossa
vista, tudo bem. Vamos ignorá-los como sempre fizemos.
Foi ali naquele inferno dantesco que tive uma das mais
incríveis experiências espirituais da minha vida. Não digo por causa das
línguas que falamos enquanto orávamos com os olhos encharcados de lágrimas. Aquela
gente abandonada foi o instrumento usado por Deus para conduzir-nos, a mim, e
aos irmãos aos quais acompanhava, a uma espécie de êxtase real. Fomos
arrebatados de nossa espiritualidade gnóstica e devolvidos ao chão da
existência. Levamos um baita choque de realidade. Nosso coração foi batizado no
amor. Certamente que recebemos ali muito mais do que fomos levar. Encontramos
Deus no inferno!
Jamais me esquecerei das cenas protagonizadas pelo casal
Stéphannie e Victor, dois jovens cristãos de classe média que saem de suas
casas duas vezes por semana para estender as mãos àquele povo sofrido. Foi
difícil conter as lágrimas vendo Stéphannie, que é filha do jogador Bebeto,
fazendo curativos em mulheres enfermas. Uma delas, carinhosamente chamada de
Preta, perdeu um dos dedos do pé por causa da diabetes. No final do
atendimento, foi ela quem nos abençoou com sua singela oração.
O bispo Bill Mikler dos Estados Unidos parecia um pinto do lixo, abraçando e
deixando-se abraçar por todos, sem o menor constrangimento.
O que seria responsável por tanta miséria? Descaso das
autoridades? Certamente que este é um dos fatores, porém, não é o único. A propósito, construíram uma enorme usina de extração de metano bem ao lado. Todo aquele lixo vai financiar luxo de muitos. Se ao menos parte do lucro fosse usado para melhorar as condições de vida daquela gente...
O fato é que a miséria que encontrei no Lixão depõe diante
de Deus contra a nossa religiosidade apática e nossa alienação crônica. Para
reverter este quadro, precisamos de um choque de amor que nos devolva à
realidade e resulte em ações efetivas que manifestem a justiça do reino.
Deixemos, portanto, o conforto de nossos templos e saiamos ao encontro de Deus
que insiste em esconder-se nos excluídos e desprezados.
O desejo de minha alma é que se cumpra em cada um deles a escritura que diz:
“Ele levanta do pó o necessitado e ergue do lixo o pobre, para fazê-los sentar-se com príncipes, com os príncipes do seu povo.” Salmos 113:7-8Todavia, para que esta palavra se cumpra, "os príncipes do seu povo" precisam deixar sua zona de conforto, de seus castelos eclesiásticos, para ir ao encontro daqueles a quem Deus estabeleceu como prioridade do Seu reino.
Taí uma boa dica para o papa Francisco... #Vem pro lixão, vem! Afinal de contas, o amor transforma infernos em paraísos, e o terrível odor do lixo no bom perfume de Cristo.
Muito bom Hermes seu artigo, eu conheço o ex lixão do jardim Gramacho. Mas estão construindo casas encima do ex lixão??
ResponderExcluirTriste, famílias ali disputando com urubus o que comer. Mas ja vi coisas piores fora do Rio. Muito boa sua matéria.
Obrigado, Rô. O ex-lixão agora é ex-ex-lixão. Fizeram uma usina enorme para extrair metano lá. Os moradores já estavam lá antes, há muitos anos. Como o lixão de Seropédica não deu vazão, o lixo vou a ser jogado lá.
ResponderExcluirExcelente Matéria. Li chorando, porque consegui me colocar no lugar dessas pessoas e percebi o quanto tenho sido negligente em ajudar ao próximo. Na minha cidade não é muito diferente do que acontece no Rio. A verdade é que a gente está sempre preocupado com nossas mazelas e esquecemos que existem pessoas vivendo em situação sub humana. Essa matéria me fez enxergar que preciso agradecer a Deus por tudo que ele tem feito por mim.
ResponderExcluirObrigado, Michelli. Li seu comentário para o bispo americano que está hospedado em minha casa (Bill Mikler) e ele ficou muito tocado. Precisamos nos deixar tomar, ao mesmo tempo, por um sentimento de gratidão pelo que temos recebido, e de inconformismo pelo o que acontece à nossa volta. Abraço!
ResponderExcluirPrecisamos de um choque de amor e de um choque de integridade.
ResponderExcluirPAIXÃO, Edson.
Suas materias são de conteudo inteligente.
ResponderExcluirVamos deixar a nossa luz do amor de Deus iluminar essas pessoas vamos arregacar nossas mangas e nos dar em amor por elas
ResponderExcluir