domingo, outubro 04, 2009

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O Reino da Delicadeza

Um desconforto vem me acompanhando há bastante tempo. A dificuldade com que muitos recebem a proposta de uma religião radicada no amor e não no medo, na liberdade e não no patrulhamento moral, na maioridade e não na infantilização.

Ouço de tudo. Aquele que acredita que para algumas pessoas uma espiritualidade baseada na consciência e responsabilidade, frutos livres de uma relação de amor e não de constrangimento, é perigosa, quando não, pouco producente para os engajamentos religiosos. Há pessoas, afirmam com um pragmatismo encabulado, que precisam de regras, coerção e cobrança. Precisam de uma religião legalista. Caso contrário, não conseguem vencer seus vícios e pecados.

Outros desconfiam da liberdade. Pregar um Deus que ama em completa independência do desempenho humano é muito arriscado. Deus também é justiça! A Graça de Deus tem que ter limite. Se a pessoa não tiver medo do inferno, vai fazer tudo o que der na cabeça. Se não souber que existe uma punição divina para os seus deslizes, vai se tornar alguém imoral.

Vejo o descontentamento de alguns com a sugestão de que a imperfeição não é pecaminosa, mas um dom divino que torna a vida significativa e mais bonita. E, apesar de ninguém conseguir uma vida perfeita, esbravejam que Deus não pode abrir mão de que sejamos perfeitos.

Tirando de lado a questão semântica, de que a imperfeição a que me refiro é alusão ao que não está pronto, ao que é livre para ser, ou ao que está sempre em via de se tornar. Liberdade e não inconseqüência, leveza e não leviandade. O que, então, incomoda tanto algumas pessoas?

Por que o anúncio libertador de que Deus não espera de nós a perfeição amedronta alguns?

Desconfio de algo. Se tirarem o medo, ou a culpa, de sua fé, ficam sem fé. Se crer em Deus não for um movimento em busca de blindagem diante da insegurança do mundo, ou absolvição sem fim de uma insuperável culpa, revelam-se incrédulos. Ateísmo desesperado.

A religião a que fomos apresentados é um comportamento motivado pelo medo. Medo de não ser aprovado, o que é o mesmo que não ser amado. Ou medo de estar fazendo a coisa errada e ganhar um destino infernal. Foi a partir desse medo que aprendemos a rejeitar comportamentos tidos como réprobos. Fazemos e deixamos de fazer coisas pelo medo de sermos punidos pela implacável justiça divina.

Mas também medo de ficarmos expostos aos infortúnios de uma orfandade religiosa. Vivemos em um mundo inseguro, que muitas vezes se mostra desfavorável à nossa busca de bem estar. A religião promete um apadrinhamento divino. Foi a partir desse medo e da expectativa de um arranjo sobrenatural para garantir uma vida de exceção que aprendemos a cultuar nossas divindades.

A voz divina que aprendemos a ouvir é ou a voz ameaçadora frente à nossa vida moral, ou a voz de uma barganha com o Céu, que em troca de devoção e obediência, oferece a proteção que poucos tem. Propor uma espiritualidade movida por amor e, portanto, gratuidade não é um remendo possível ao que já tínhamos, mas um novo e levíssimo tecido religioso.

E a metáfora não é minha. É de Jesus. A religião que ele propõe não pode ser colocada como remendo em pano velho, ou vinho novo em odre velho. Em ambos os casos a convivência implicará em ruptura. O vinho novo da gratuidade no relacionamento com Deus exige um novo odre. É muita dinâmica para pouca dilatação. Tecer uma relação baseada no amor reivindica um novo tecido. É muita tensão para pouca resiliência.

Por que muitos reagem agressivamente à proposta de que Deus não espera nossa perfeição, mas tão somente nossa integridade? Porque se tirarmos a voz culpabilizadora de sua fé, ficam com uma fé muda. Sua reação escrupulosa revela a compreensão do que pregamos como uma ameaça à sua fé. Intimidam os olhos assustados e hostis. Cansa ver-se nos olhos de alguns religiosos como um inimigo de Deus. Iconoclasta.

Mas não terá sido a mesma tensão vivenciada por Jesus?

Enxergo a mesma dificuldade em seus discípulos quando Jesus sugere outra lógica para a nossa relação com Deus. No momento mais imponente de seus argumentos. Ressurreto contra toda a injustiça e humilhação de sua morte. Com uma prova material irrecusável, forte, violenta. Irresistível. Com visibilidade incontestável. Jesus afirma que nesta exata hora o melhor será sumir. Substituir a presença irresistível, visível e poderosa pela sutileza de uma brisa: o outro paráclito tem o nome de vento, o Espírito de Cristo ao invés do Cristo ressurreto. Ele diz que sumirá nesta hora para o bem de seus discípulos.

Uma presença delicada e discreta invoca e sensibilidade e cuidados como “não apaguem o Espírito.” “Não entristeçam o Espírito.” “Não resistam ao Espírito.” Uma presença que não nos substitui no enfrentamento da vida. Que não nos infantiliza em proteções excepcionais. Que não manipula comportamentos. Sem regras. Que faz da liberdade o ambiente próprio para a nova humanidade esboçada em Jesus. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.”

Somente um Deus com presença discreta, uma quase ausência, é capaz de lembrar-nos de que não somos escravos, mas filhos e não nos esmagar com sua absurda e insustentável grandeza. Daí compreendermos a imagem de Deus permitindo a Moisés ver a sua glória escondendo-o com a mão em uma fenda na rocha. Vê as suas costas, desfilam sua bondade e misericórdia. Tudo de Deus que podemos ter sem sermos desintegrados. Suas costas. Sua ausência de poder e força.

A presença discreta de Deus é a nossa única chance de integridade.

Um Deus discreto é um Deus quase ausente. Uma religião que continua ao substituir seus processos de infantilização é uma religião com pouquíssima religião. A vida proposta por Jesus a Nicodemos, nascida do Espírito, como o vento que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai.

Uma religião com pouco pastoreio e muita tolerância. Com dogmas frágeis e ritos sutis. Que deixa morrer suas instituições para sobreviver sua gente. Que desiste da hierarquia e esconde-se nos santos anônimos. Que ri dos jogos de poder e reverencia os gestos de amor. Que abre os braços, em cruz, para os riscos para não deixar de abraçar os vivos. Acolhimento das angústias e inseguranças das liberdades. Fermentação de humanos.

Um lugar que é menos espaço e mais ajuntamento. Um culto que é menos tempo e mais encontro.

Só uma religião discretíssima sobrevive a um Deus que é Espírito.

Só uma religião discretíssima sobrevive à maioridade dos religiosos.


Elienai Cabral Junior
Fonte:
Bereianos

4 comentários:

  1. Depois de quase 15 anos de pastoreio, após muitos e muitos tombos - e graças a Deus por cada um deles - percebo que estou engatinhando nesse caminho doce que se chama GRAÇA. Amei!!!

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  2. Hermes:
    Eu não leio textos muito grandes na internet, cansa! Desanima só de ver o tamanho. Este ai parece com os seus, as quais eu só li uns quatro. Mas li inteiro, e me pare seu mesmo, ta na mesma linha de raciocínio, que parecem com os meus também. Ai vai uma dica, mesmo que o conteúdo seja bom, creio que poucos vão ler, sei que é difícil condensar alguns pensamentos, mas é melhor intrigar e deixar coisas no ar, do que perder leitores de ditos tão bons como este. Estou realmente seguindo seu blog, ou seja: dou uma espiada todos os dias, e leio quando me desperta interesses, e vou comentar sempre que tiver tempo e o que dizer. Tem lá na minha pagina um texto: “confissões de um filosofo cristão” que impressa exatamente o que o Elienai Junior escreveu, mas com muito mais ritmo e poesia, se você tiver tempo de espiar lá umas duas vezes por semana estaria ótimo. Pois só vou postar umas duas vezes mesmo, eu tenho também uns três textos grandes, mas creia, se você ler o primeiro, a cadência do texto te levara rapidinho ao fim, pois por dom da natureza (ou de Deus?) não escrevo, sou escritor!

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  3. Querido Hermes, ....sabe, a algum tempo descobri esse lugar de Graça e Paz , e sempre soube que esse era o caminho. Por muito tempo fui doutrinada a obedecer cegamente, castrada para não pensar, disciplinada por acreditar no Deus bom e não vingativo, num Deus de Graça e Salvação e não de Leis e condenações.
    Tenho a grande dificuldade de nunca conseguir me aprisionar, sou daquelas que precisam de ventos fortes para respirar...e por isso, fui tachada de herege, rebelde, desobediente, incorrigível e etc...fui praticamente excluída das igrejas mosaicas dessa cidade e sofri demais por desejar um culto e não encontrá-lo entre irmãos.
    Trilhei meu caminho de pedras sozinha, mas encontrei águas tranquilas e pastos verdejantes logo depois da primeira curva...hoje, passados quase 15 anos de labuta, vejo muitos que me julgaram se juntando a mim nesse coro pela Graça e pela única verdade de Cristo.
    Vejo Deus, todos os dias.
    Esse é o Caminho de Verdade e de Vida que nos leva a ter intrínsecos dentro de nós a tal falada "Paz que excede todo entendimento".

    Graças a Deus por suas palavras, sempre tão agraciadas por ELE.

    e cmo diria Gondin: Soli Deo Glória !

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  4. Fui uma filha e sou ainda tão amada, mas tão amada, tão amada de meu pai biológico, que renunciou a tudo e a todos por mim e meus irmãos, que não consigo olhar para DEUS como um pai que não ame.

    Olho para DEUS e vejo nEle todo amor que sempre recebi de meu pai.

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