terça-feira, dezembro 08, 2020

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NOÉ E O FLAGRANTE DO CANGURU


Por Hermes C. Fernandes

Noé inspecionava os animais que entravam perfilados na arca de dois em dois. De cada espécie, um casal para garantir a preservação da espécie após o dilúvio. Todos entravam pacientemente, esperando a sua vez. Tigres, leões, crocodilos, hipopótamos, todos se comportavam super bem. Mas, de repente, o patriarca percebeu uma movimentação estranha no meio da fila. Deixando sua esposa encarregada da inspeção, retirou-se da entrada da arca e foi verificar o que estava causando aquele tumulto.

Chegando lá, Noé deparou-se com um casal de cangurus que pareciam muito afoitos. Os animais à sua volta os acusavam de estar furando a fila. Cada vez que a fila andava, em vez de dar um passo como os demais, eles saltavam, e assim, passavam a frente de pelo menos outros dois ou três casais.

– Vocês poderiam fazer o favor de esperar a sua vez? – apelou Noé.

– Perdoem-nos, Noé. Não fazemos isso propositadamente. Está em nossa natureza saltar. Simplesmente, não conseguimos evitar – respondeu o senhor canguru.

– Sim, assim como está na natureza dos coelhos, nem por isso estão furando a fila – retrucou o patriarca.

Um papagaio pousou subitamente no ombro de Noé e sussurrou em seu ouvido.

– Então é isso – disse Noé, balançando a cabeça e fitando seriamente o casal de marsupial.

– Já avisaram a vocês que só pode entrar na arca um casal de cada espécie? Filhotes não serão aceitos. Sinto muito, mas são ordens superiores.

– Não estamos trazendo filhote algum – respondeu o senhor canguru.

– Então o que é isso que sua excelentíssima esposa traz na bolsa? – indagou o patriarca.

–Nãooo é na... na... nada – respondeu gaguejando.

– Está na cara que vocês estão escondendo – concluiu Noé.

– Por que faríamos tal loucura? – perguntou a senhora canguru.

– Então, não se importaria que eu a examinasse, não é mesmo?

Noé se aproximou calmamente, temendo que o macho lhe desferisse um golpe, e apalpou a região da bolsa da senhora canguru.

– Aqui está! Eu sabia que escondiam algo. Bem que o papagaio me alertou.

Quando meteu a mão por dentro da bolsa para checar o que havia ali, deparou-se com algo que possuía duas texturas diferentes, uma dura, compacta, e outra mole e gosmenta. Definitivamente, não era um filhote de canguru.

Segurando-o firme, tirou-o rapidamente.

– O que é isso?

O senhor canguru respondeu por entre os dentes:

– É meu amigo caracol.

– E por que precisou escondê-lo? Vocês não sabem que todas as espécies são bem-vindas à arca?

– Sim, mas o caso dele é bem diferente, senhor.

– Se importa em me dizer por quê?

– O senhor foi claro ao dizer que de cada espécie deveria entrar um casal, certo?

– Sim. Qual o problema com isso? Bastava entrar o caracol e sua digníssima esposa... qual é mesmo o nome da fêmea do caracol? Caracolina, certo?

Todos começaram a rir.

– Pois é... Este é o problema. Caracóis são hermafroditas, senhor. Cada um possui os dois sexos. Não há caracol macho e caracol fêmea.

– Agora vocês me arrumaram um baita problema. A instrução que recebi foi muito clara. Somente casais. Ninguém me falou sobre esse tal de herma...

– Hermafrodita, senhor – completou o canguru.

– Isso aí. Isso não estava previsto.

– Então, nosso amigo caracol vai ficar de fora?

– Receio que sim.

– Está vendo por que tivemos que escondê-lo? Sabíamos que não o aceitariam.

– Como já disse, apenas obedeço ordens –justificou Noé.

– E o senhor acha justo deixa-lo morrer no dilúvio? Ele tem culpa de ter nascido com os dois sexos? Não foi o próprio Deus que o criou assim? – argumentou o canguru.

– Acho que vocês estão pegando pesado demais. Já observaram que seu amigo caracol tem uma concha para protegê-lo? Talvez Deus o tenha feito assim já prevendo o que aconteceria. Portanto, nada de caracóis na arca! Ele que se proteja em sua própria concha.

– Então, presumo que o senhor vai liberar também outros animais que tenham algum tipo de proteção como cascos ou conchas, certo? Isso deve incluir tartarugas – disse o canguru.

Ao ouvir isso, o casal de tartarugas protestou:

– Deixem-nos fora disso!

– Exatamente isso, senhor e senhora tartaruga. Esta é a ideia. Deixá-los fora disso, isto é, fora da arca – disse o canguru.

– Nós temos cascos, mas não somos hermafroditas como esta aberração aí – respondeu a senhora tartaruga.

– Aberração? Então Deus criou alguma aberração? – questionou o canguru.

– É melhor vocês se acalmarem, senão ninguém mais entra – ameaçou Noé.

– Se o caracol não puder entrar na arca, nós também não entraremos – protestou o canguru.

– Vocês não podem fazer isso! A sobrevivência de sua espécie está em jogo – argumentou Noé.

– Ou ele entra ou nos afogaremos juntamente com ele no dilúvio.

Alguns outros animais resolveram comprar as dores do caracol e se recusaram a continuar na fila. Entre eles, os camelos, as girafas, as zebras, os tamanduás, os coalas e as avestruzes.

– Gente, não faça isso. O céu já está ficando coberto de nuvens carregadas. A chuva vai cair a qualquer instante – alertou Noé.

– Se o caracol ficar de fora, nós também ficaremos – disseram em uníssono.

– O senhor já parou para pensar que o Criador possa estar nos testando? Por isso somos todos tão diferentes uns dos outros. Olhem ao redor. Vejam quão variadas são as obras de Deus! Quantas cores! Quantas texturas! Quantos sons! – disse o canguru que ousadamente subiu pela tromba de um elefante, transformando-o em um púlpito.

– Ok. Vocês venceram. Mas só deixarei entrar com uma condição: encontrar outro caracol para ser seu par. Sabem como é. Ordens são ordens. Só podem entrar na arca de dois em dois.

– Não seja por isso, senhor – respondeu o canguru. – Nosso amigo caracol já tem um parceiro.

– Se importam de me dizer onde ele se meteu?

– É pra agora, senhor – respondeu o canguru, sinalizando para que o avestruz sacudisse as penas de sua cauda na tromba do elefante para provocar-lhe uma reação alérgica.

Todos se abriram uma clareira, receosos do efeito do espirro do elefante.

- Aaaaaaaaaahhhhhhhh....tim!!!

De sua tromba saiu o caracol, companheiro daquele que se escondera na bolsa da senhora canguru.

Sem conseguir se segurar, Noé danou a gargalhar diante de tão inusitada cena.

"Ó SENHOR, quão variadas são as tuas obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas riquezas." Salmos 104:24


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