quinta-feira, abril 28, 2022

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O DIABO É CRISTÃO, EXU NÃO!

Por Hermes C. Fernandes 

Sim, o diabo é cristão. Não estou dizendo que ele se converteu. Ele segue sendo o pai da mentira, nosso adversário. Então, o que quero dizer com isso? Refiro-me ao diabo como conceito e não como entidade. O conceito de um ser que seja a personificação do mal não é encontrado em qualquer outra tradição religiosa além da cristã. Portanto, dizer que uma entidade cultuada em uma religião de matriz africana é o diabo não passa de um grande equívoco, para não dizer, racismo. Jamais vemos Jesus se referindo a Zeus ou a Júpiter como diabo. Tampouco vemos os profetas do Antigo Testamento afirmando que Baal ou qualquer outro deus cananeu era o diabo. Portanto, não me parece justo que identifiquemos o diabo em entidades do candomblé ou da umbanda. 

Então, de onde vem a ideia de que a entidade conhecida como Exu seja o próprio coisa-ruim? Ela surgiu ainda antes que a escravidão foi instituída no Brasil, durante a colonização europeia da África no século XVI. Devido ao jeito irreverente, brincalhão, provocador, astucioso e sensual, como é representado nos cultos africanos, os colonizadores o identificaram com a figura de Satanás. Entretanto, deve-se ressaltar que na teologia yorubá, a figura de Exu não se opõe a Deus, tampouco é considerada uma personificação do mal. Nas religiões de matriz africana não existem demônios, diabos, entidades que sejam exclusivamente ruins como ocorre no cristianismo, religião na qual há anjos que se rebelaram contra Deus e se tornaram maus. Na teologia yorubá (de onde surgiram o candomblé e a umbanda), cada uma das entidades (Orixás) apresenta natureza ambígua, isto é, possui aspectos tanto positivos quanto negativos, semelhante aos próprios seres humanos. 

Quero deixar claro que, como cristão, seguidor de Jesus de Nazaré, não preciso abonar os elementos de uma religião para poder respeitá-la. E para tal, esforço-me para compreender sua cosmovisão, sua mitologia, e, por conseguinte, suas práticas. 

Sem conhecimento, qualquer conceito que se tenha não passa de preconceito. 

Cresci numa denominação neopentecostal onde cenas de exorcismo eram rotineiras. Protagonizei muitas delas. Em nome de Jesus, expulsei espíritos malignos que se identificavam como “exus”. A julgar pelas feições dos incorporados, pela entonação da voz, pelas mãos em forma de garras, não me restava dúvida: aquilo só poderia ser o coisa-ruim. Desvencilhar-me desta ideia foi um dos maiores desafios que enfrentei nesses trinta e cinco anos de ministério pastoral. 

Algumas pessoas me ajudaram a entender melhor o fenômeno, dentre elas, dois amigos psicólogos junguianos, ambos candomblecistas. Um deles frequenta nossa comunidade, ao lado de sua esposa, também psicóloga, membro de nossa congregação. O outro foi padrinho de casamento da minha esposa. Em ambos encontrei uma ética que não tenho encontrado em muitos dos que se dizem seguidores de Cristo. Foi com eles que aprendi que muito do que se pratica em nome dos Orixás não faz jus à rica tradição vinda do continente africano, sendo, portanto, uma deturpação da mesma. Algo análogo ao que acontece em muitas igrejas evangélicas que há muito deixaram os ensinamento de Jesus, substituindo-os por crendices e charlatanismo. 

Não me vejo em condição de criticar a religião alheia. Mas não faço vista grossa às idiossincrasias de minha própria religião. 

Antes de julgar as manifestações que meu preconceito considera bizarras, olho para dentro do meu próprio perímetro religioso e verifico que há fenômenos atribuídos ao Espírito Santo que não passariam pelo crio de meu senso estético se não fosse o meu temor em cometer o pecado imperdoável (a tal blasfêmia contra o Espírito Santo). 

Já ouvi profecias em que Deus supostamente falava através do “vaso” algo de tipo: “Eu não sei onde é que estou com a cabeça que não te fulmino agora mesmo!” Você conseguiria imaginar tais palavras nos lábios de Jesus? Ora, se o diabo se faz passar por “anjo de luz”, por que cargas d’água não se faria passar por Exu ou por qualquer outra entidade com o objetivo de acirrar ainda mais o clima de guerra santa entre crentes e fiéis de religiões de matriz africana? Se ele é o pai da mentira, conforme diz Jesus, por que daríamos crédito a qualquer coisa que ele dissesse? Por que pastores insistem em entrevistar esses diabos em seus cultos midiáticos? Sem contar que muitas destas manifestações não passam de histeria ou encenação de quem almeja algum tipo de atenção especial.  

Quero propor aqui um teste para avaliar o quanto somos preconceituosos.

Seguem abaixo duas histórias, uma extraída da Bíblia e outra da tradição oral do povo yorubá. 

“Exu havia feito uma espada de dois gumes, de quarenta e cinco centímetros de comprimento, e a tinha amarrado na coxa direita, debaixo da roupa. Ele entregou o tributo a Awujale, Obá de Oió, homem muito gordo. Em seguida, Exu mandou embora os carregadores. Junto aos santos que estão perto de Ijebu, ele voltou e disse: "Tenho uma mensagem secreta para ti, ó Obá". O Obá respondeu: "Calado! " E todos os seus auxiliares saíram de sua presença. Exu aproximou-se do Obá, que estava sentado sozinho na sala superior do palácio de verão, e repetiu: "Tenho uma mensagem de Olorum, para ti". Quando o Obá se levantou do trono, Exu estendeu a mão esquerda, apanhou a espada de sua coxa direita e cravou-a na barriga do Obá. Até o cabo penetrou com a lâmina; e, como não tirou a espada, a gordura se fechou sobre ela. Então Exu saiu para o pórtico, depois de fechar e trancar as portas da sala atrás de si. Depois que ele saiu, vieram os servos e encontraram trancadas as portas da sala superior, e disseram: "Ele deve estar fazendo suas necessidades em seu cômodo privativo". Cansaram-se de esperar, e como ele não abria a porta da sala, pegaram a chave e a abriram. E lá estava o seu senhor, caído no chão, morto! Enquanto esperavam, Exu escapou. Passou pelos santos e fugiu para Seirá.”

“Certo homem, lavrador, que precisava de chuvas para irrigar seus campos secos ofereceu um sacrifício a Elohim. No entanto, preparou-o de forma displicente. Elohim enviou chuva em abundância, fazendo com que a água jorrasse incessantemente, inundando e destruindo toda a plantação. Logo após, o lavrador ofereceu um novo sacrifício, mas desta vez, de maneira zelosa. Agradando-se Elohim, fez cessar a chuva.”

Você saberia identificar qual história é extraída das Escrituras e qual é da tradição oral yorubá?

A julgar pelos nomes usados, a primeira teria vindo a tradição yorubá e a segunda de algum texto do Antigo Testamento, certo?

Na verdade é exatamente o inverso. Apenas troquei os nomes. A primeira é extraída do livro de Juízes. Em vez de Exu, lê-se Eúde (Juízes 3:16-26). A segunda é da tradição yorubá. Em vez de Elohim, lê-se Exu. 

Assim como as entidades veneradas nos cultos africanos, Yaweh, a divindade hebreia também chamada de Elohim no Antigo Testamento, pedia sacrifícios de animais. Em Gênesis 8:20 lemos que o Yaweh se agradou do cheiro suave do sacrifício oferecido por Noé e em razão disso, decidiu nunca mais destruir os seres vivos como o fez no dilúvio. 

Repare, a percepção que os antigos hebreus tinham de Deus não difere muito da percepção que a cultura yorubá tem de suas divindades. Atribuir características claramente humanas à divindade é chamado pelos teólogos de Antropomorfismo. Dentre essas características está a ambiguidade. No Antigo Testamento, Deus é bom, mas também vingativo. Deus cria, mas também destrói. Deus é misericordioso, mas também justo e santo. 

Jesus veio corrigir nossa percepção acerca da divindade, introduzindo o conceito de paternidade divina. O Deus de Jesus é Pai de todos os seres vivos. Quando dois de Seus discípulos sugeriram que se pedisse a Deus para enviar fogo do céu para destruir os samaritanos que se negavam a recebê-los em sua aldeia, eles tomaram como referência o profeta Elias que havia pedido fogo do céu para consumir os profetas de Baal. Sabe qual foi a resposta de Jesus a este inusitado pedido? “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lucas 9:55,56).

E que tal as passagens abaixo?:

“Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo! E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.” 2 Reis 2:23,24

O personagem em questão é ninguém menos que o profeta Eliseu, o sucessor de Elias. Nada vingativo o profeta, não? Você consegue enxergar nesta atitude algo que se assemelhe a Jesus? Absolutamente, não! Com Jesus a gente aprende a perdoar.

A mesma característica vingativa encontrada em Eliseu pode ser vista no mito yorubá de Exu, como na vez em que ele levou dois amigos camponeses a uma luta de morte. De acordo com esse mito, Exu, furioso, por não ser louvado pelos camponeses pôs-se no caminho dos dois, na divisa das duas roças, tendo um a sua direita e outro a esquerda. Exu utilizou-se de um boné de um lado branco e do outro vermelho, de forma que cada camponês via apenas uma cor. A verdade sobre a cor do boné do estrangeiro, Exu, provoca discussão entre os amigos e acaba na morte de ambos a golpes de enxada. 

Ambíguo como a própria natureza humana, encontramos na figura de Exu tanto qualidades, quanto vicissitudes. Ele é vingativo, mas também se revela humilde com relação aos demais orixás, razão pela qual “o mais novo dos orixás, o que era saudado em último lugar, passou a ser o primeiro a receber os cumprimentos. O mais novo foi feito o mais velho. Exu é o mais velho, é o decano dos orixás.” Estas palavras encontram eco nas célebres palavras de Jesus: “Pois há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (Lucas 13:30). 

Dado à sua condição humana ambígua, personagens bíblicos como Eliseu, Elias, Davi e Moisés revelam traços de caráter completamente opostos aos de Jesus, mas também expressam algumas das características mais marcantes encontradas n’Ele. Tais personagens nos servem de referências e lembretes de nossa própria ambiguidade, porém, o padrão que devemos seguir é Cristo em quem não há mudança, nem sombra de variação. É disso que fala o episódio bíblico conhecido como Transfiguração. De repente, Moisés e Elias aparecem conversando com Jesus no monte, e os discípulos ouvem do céu uma voz que diz: “Este é o meu Filho amado, a Ele ouvi” (Lucas 9:35).

E quanto ao diabo? Ele seria a antítese de Cristo. Se Cristo é a luz, o diabo é a sombra. Se Cristo é o caminho, o diabo é a cancela. Todavia, ele não é tudo o que muitos crentes acreditam que seja. Ele não é e jamais foi páreo para Deus. Ele não é o rei do inferno. Ele não é rei de nada. Se fosse tão somente uma entidade qualquer, não haveria tanto com que nos preocupar. Mas ele é um arquétipo arraigado no inconsciente coletivo. O mal não está fora de nós, mas impregnado em nossa própria natureza. Como no filme “O Diabo de Cada Dia”, o mal se faz presente nos lugares mais inusitados, mesmo numa típica cidade interiorana do cinturão bíblico dos EUA. Ao enxerga-lo meramente como uma entidade que se opõe a Deus, nós o transformamos na desculpa perfeita para os nossos erros, no bode expiatório por excelência dos que não assumem a responsabilidade por suas atitudes. 

Independentemente do credo que professemos, o mal nos acompanha, seja latente ou patente. Como disse Paulo, o apóstolo, “eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18). Preferimos, entretanto, ignorar isso, atribuindo o mal ao outro, ao diferente, à sua crença, às entidades que venera. Se há quem recorra a Exu para fazer o mal, também há quem recorra a Deus em busca de vingança. O despacho numa encruzilhada não é muito diferente do sacrifício de subir a um monte no afã de convencer a Deus a destruir seus inimigos. 

Como seguidor de Jesus, desejo que meus amigos candomblecistas e umbandistas conheçam Sua mensagem e se deixem conquiste por Seu amor incondicional. Mas não alcançarei tal objetivo enquanto não aprender a dialogar, a construir pontes e, sobretudo, a respeitar suas crenças e valores.  

Definitivamente, o problema somos nós. Daí a insistência de Cristo, dos profetas e apóstolos, a que nos convertamos e façamos o bem, motivados exclusivamente por amor. Para tal, temos que admitir nossa sombra e buscarmos a iluminação de nossa consciência.

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