“Anarquia,
este sonho de justiça e de amor entre os homens…”
Errico Malatesta, ativista italiano
Errico Malatesta, ativista italiano
Que ideologia estaria mais próxima da proposta do evangelho do reino?
Alguns diriam que socialismo/comunismo devido à ênfase cristã na distribuição
dos bens. Outros diriam que o liberalismo/capitalismo por sua ênfase na livre
iniciativa. Outros ainda diriam que o anarquismo, tendo em vista que os poderes
deste mundo estariam mesmo fadados a desaparecer. Cada qual tem versículos
bíblicos chaves previamente separados como munição para atacar os que pensam de
maneira diferente.
Lendo a parábola do bom samaritano, encontramos ali a representação de
cada uma dessas ideologias.[1]
Jesus estava sendo arguido por um doutor da lei (o mais próximo do que
hoje chamamos de advogado). Em vez de respondê-lo diretamente, Jesus lhe faz
duas outras perguntas: O que está escrito na Lei e como a lês? A primeira tem
caráter objetivo, a segunda, subjetivo. O que diz a Lei revela quem Deus
é, mas a maneira como a lemos revela quem somos.
É aí que mora o problema quando o assunto é ideologia. Quem tem
predileção pelo socialismo, vai ler a Bíblia a partir de sua ótica esquerdista.
E o mesmo se dará por quem tem predileção por qualquer outra ideologia. A bem
da verdade, a Bíblia oferece recursos para reforçar qualquer discurso
ideológico. Difícil é fazer uma leitura isenta, sem as lentes ideológicas.
Perguntando-lhe sobre o que dizia a Lei, este o respondeu: Amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
A resposta está... EEEXATA!!!
–
Faça isso e viva! Respondeu Jesus.
– Mas espera
aí... só isso? Não pode ser! Eu sou um advogado, não posso contentar-me com uma
resposta tão simplista. Hum... Já sei! Tenho uma nova questão: Quem é o
meu próximo?
Com esta pergunta, ele se revelou. Suas entranhas foram expostas.
Alguns se sentem mais próximos dos poderosos. Outros, dos miseráveis.
Outros, dos religiosos. E ainda outros, dos pecadores.
Em vez de respondê-lo diretamente, Jesus resolve contar mais uma de suas
fascinantes estórias: Um homem que descia de Jerusalém para Jericó foi abordado
por assaltantes, que depois de espancá-lo, deixaram-no meio morto.
Podemos atribuir a esses assaltantes o lema “o que é teu é meu”. Eles
não respeitavam a propriedade privada. Achavam-se no direito de subtraí-la a
seu bel-prazer. Mesmo que fossem como Robin Hood, roubando dos ricos para
distribuir entre os pobres, ainda assim seriam ladrões. Facilmente
identificamos sua postura com a ideologia socialista.
Os dois principais mandamentos abrangem a todos os demais. Uns
dizem respeito ao amor que devemos a Deus, como por exemplo, não adorar outras
divindades além d’Ele, não pronunciar Seu santo nome em vão, etc. Os demais
dizem respeito ao amor que devemos ao nosso próximo. Entre esses encontramos
dois que defendem claramente o direito à propriedade privada: não cobiçarás o
que for do seu próximo (cônjuge, bens, etc.), e não furtarás. Não se trata
apenas de deveres, mas da garantia de direitos.
Qualquer regime que atribua ao Estado o direito de ingerência na vida
privada de seus cidadãos está extrapolando suas funções. A justiça social não
pode ter como ponto de partida a violação da propriedade privada. Não é tirando
arbitrariamente dos ricos e dando aos pobres que vamos resolver o problema. Há
vários mecanismos usados pelo Estado para subtrair seus cidadãos,
principalmente através da cobrança de impostos pesados.
Jesus, então, introduz o terceiro personagem de sua trama: o sacerdote.
Todos esperavam que este socorresse o moribundo. Em vez disso, ele nem sequer
se aproxima. Provavelmente, ele estava indo para Jerusalém para prestar seu
serviço no templo. Segundo a Lei, se tocasse em um cadáver, o sacerdote ficaria
impuro, e, portanto, impossibilitado de cumprir seu turno. Seu lema
era “O que é meu é meu”. Em outras palavras, era como se
dissesse: tenho que preservar o que tenho, sem me importar com o que se passa
com o outro. Perceba aqui a similaridade desta postura com a ideologia capitalista, em que cada homem é uma
ilha. O individualismo é enfatizado. A performance não pode
ser comprometida com distrações. A ordem é produzir. Cumprir seu turno.
Preservar seu status a qualquer custo. Neste mesmo espírito,
as sociedades capitalistas promovem a segregação social. Os ricos blindam seus
automóveis. Vivem nababescamente em seus condomínios luxuosos. Isolam-se da
realidade. Enviam seus filhos para estudarem no exterior, longe das ameaças das
ruas. Para estes, cumprir a agenda é mais importante que socorrer uma vítima da
injustiça. Lucrar é o seu afã.
O capitalismo acaba por promover uma espécie de sistema de castas. Todos
almejam chegar ao topo da pirâmide. O sonho do oprimido é um dia tornar-se no opressor,
e assim, ir à forra por tudo o que sofreu. Quem um dia foi cauda, finalmente será cabeça.
Ascensão social é a palavra mágica que mantém a máquina girando. E
a religião está aí para lubrificar suas engrenagens com seu discurso
triunfalista e a justificação do lucro. A Teologia da Prosperidade é a versão
pós-moderna deste discurso. Ela não só justifica, mas canoniza o lucro. Se no
comunismo, o Estado usurpa o lugar de Deus, no capitalismo quem o usurpa é o
capital, a quem Jesus chama de Mamom.
Decepção geral! A audiência de Jesus deve ter reagido mais ou menos como
a torcida quando seu time perde um pênalti. Logo quem... o sacerdote.
Sai de cena o sacerdote e entra o levita.
–
Agora vai! Um homem pertencente a uma tribo totalmente dedicada ao
Senhor... Não vai pensar duas vezes. Aquele homem pode considerar-se
socorrido.
Inusitadamente, o levita adota a mesma postura do sacerdote (que,
diga-se de passagem, pertencia à mesma tribo). Todas as ideologias e regimes
possuem a mesma origem: humana. O que se pode esperar delas? O lema do levita
era “O que é teu é teu”. Em outras palavras: não me envolva em
questões alheias. O sistema é bruto! É cada um por si e... Deus por todos!? Tem
certeza disso?
Esta postura se assemelha com a proposta anarquista, defendida por alguns intelectuais idealistas. Será que
a sociedade humana atingiu tal grau de evolução e sofisticação que possa
dispensar qualquer tipo de governo? É de se considerar um tanto quanto
romântica e atraente esta visão. Mas cada vez que nos deparamos com as
injustiças, sejam individuais ou coletivas, percebemos que ainda não podemos
viver numa sociedade sem leis, sem regras sociais, sem punição para os
criminosos, sem infraestrutura, sem educação, etc. E para que tudo isso seja
possível, ainda é mister a representação política. A anarquia é uma utopia que,
a meu ver, só será plenamente alcançada quando Cristo houver destruído toda
estrutura de poder.[2]
O processo de demolição já começou e passa pela conscientização de que somos
dependentes uns dos outros. Quanto mais o reino de Deus avançar, menos a
sociedade humana necessitará do Estado. Até que chegue o dia em que finalmente
teremos aprendido a nos articular em função do bem comum sem a necessidade de
mediação e da tutela de qualquer governo. Tão logo o prédio se erga, os
andaimes são dispensados. Porém, enquanto estamos em fase de acabamento, eles
são necessários, caso contrário, corremos o risco de nos isolarmos uns dos
outros, como andares de um edifício cujas escadas que os ligam estão
obstruídas. Neste caso, os andaimes oferecem acesso externo. Quando a obra
terminar, as escadas estarão liberadas. Circularemos por entre todas as esferas
sociais sem recorrer a aparatos externos.
Enquanto isso não acontece, não se pode dispensar o papel do Estado.
Não dá para cada um viver por si e para si mesmo, ignorando a
necessidade dos demais. O levita da parábola é uma pipa avoada. Passa levitando pelos demais, sem importar-se, sem
perceber sua ligação com o todo. Apatia é o seu sobrenome.[3]
Portanto, nosso problema não é com a anarquia, mas com a apatia. Não é a
ausência de governo, mas de paixão. O amor faz com que o outro exerça poder
gravitacional sobre nós. Somos atraídos a ele e levados a considerar sua
condição, buscando fazer alguma coisa que atenue a sua dor.
De repente, Jesus introduz em sua estória uma figura depreciada pelos
judeus: Um samaritano.
– O que se pode
esperar daquele mestiço, lembrança de que um dia estivemos sob o domínio
assírio? Ele não tem o nosso pedigree.
Ele é um gaiato em nossa nau. Um ser asqueroso, com um sotaque ridículo, sem qualquer
etiqueta. Se o sacerdote passou batido, e o levita passou voado, o mínimo que o
samaritano vai fazer é cuspir no pobre coitado e passar por cima.
Para escândalo de sua atenta audiência, o samaritano interrompe sua
viagem de negócio, se aproxima do moribundo, presta-lhe os primeiros socorros,
coloca-o em sua cavalgadura, hospeda-o com recursos próprios, e ainda custeia o
seu tratamento. Seu lema era “o que é meu é teu”. Nada do que fez
foi por imposição do Estado, nem visando obter algum lucro ou vantagem, mas por
livre e espontânea vontade. O texto diz que ele foi movido por compaixão. A
solidariedade era a sua bandeira. Não importava a nacionalidade daquele a quem
socorria. Ele nem mesmo esperava receber qualquer recompensa.
As ideologias nos distanciam. Os ideais do reino nos aproximam. Não
precisamos demonizar, tampouco canonizar ideologia alguma. Todas têm suas
incongruências e idiossincrasias. Os ideais preconizados por cada uma delas só
será alcançado mediante a práxis do evangelho do reino.
Usamos o neologismo reinismo para identificar tal
práxis. Mesmo sem identificar-se como uma ideologia, o reinismo ofereceria, por
assim dizer, a grande síntese ideológica tão almejada pela sociedade humana, em
que a liberdade almejada por liberais/capitalistas é preservada, sem que para
isso seja sacrificada a justiça social tão cara aos comunistas/socialistas; em
que a auto-governança defendida por anarquistas seja possível, não como
alternativa à hierarquia governamental, mas como base para toda e qualquer
governança.
O ideal anarquista [4], como dissemos há pouco, só será possível quando finalmente Cristo
houver desfeito toda estrutura de poder, quando a humanidade houver alcançado
tal maturidade mediante Cristo, que não precisará submeter-se a nenhuma
autoridade, senão a de Deus. Como bem afirmou Paulo: “Então virá o fim
quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio,
e toda autoridade e todo poder” (1 Co. 15:24). Até lá, compete-nos
submeter-nos a toda autoridade que preze pelo bem comum (Rom.13), que estimule
a prática do bem enquanto coíba a propagação do mal através da aplicação da
justiça.
[1] Limito-me às ideologias
principais, sem ignorar o vasto espectro ideológico existente em nossos dias.
[2] 1
Coríntios 15:24 – “Então virá o fim quando ele
entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio, e toda
autoridade e todo poder.”
[3] Considerada por alguns como
alternativa ao comunismo e ao capitalismo, o Distributismo é uma filosofia
econômica que defende que a posse dos meios de produção deve estar o mais
amplamente distribuída possível entre a população, em vez de estar centralizada
no Estado (como defende o comunismo/socialismo) ou concentrada em uma minoria
de indivíduos (capitalismo liberal). Nesse sistema, a maior parte das pessoas
deveria conseguir sobreviver sem ter que contar com o uso da propriedade
alheia. Valoriza-se a propriedade privada ao passo que valoriza o acesso a tais
propriedades. Entre os que defendiam tal ideologia estavam o celebrado
Chesterton e Hilaire Belloc.
[4] Dois célebres anarquistas cristãos foram o francês Jacques Ellul e o russo Leon Tolstói |
* Este texto foi extraído do livro "Ao oriente do Éden", de nossa autoria. Saiba como adquiri-lo, clicando na aba "livros" em nosso blog.
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