terça-feira, outubro 14, 2014

0

Reino, ideologias e utopia Anarquista


 “Anarquia, este sonho de justiça e de amor entre os homens…”
Errico Malatesta, ativista italiano



Que ideologia estaria mais próxima da proposta do evangelho do reino? Alguns diriam que socialismo/comunismo devido à ênfase cristã na distribuição dos bens. Outros diriam que o liberalismo/capitalismo por sua ênfase na livre iniciativa. Outros ainda diriam que o anarquismo, tendo em vista que os poderes deste mundo estariam mesmo fadados a desaparecer. Cada qual tem versículos bíblicos chaves previamente separados como munição para atacar os que pensam de maneira diferente.

Lendo a parábola do bom samaritano, encontramos ali a representação de cada uma dessas ideologias.[1]

Jesus estava sendo arguido por um doutor da lei (o mais próximo do que hoje chamamos de advogado). Em vez de respondê-lo diretamente, Jesus lhe faz duas outras perguntas: O que está escrito na Lei e como a lês? A primeira tem caráter objetivo, a segunda, subjetivo.  O que diz a Lei revela quem Deus é, mas a maneira como a lemos revela quem somos.

É aí que mora o problema quando o assunto é ideologia. Quem tem predileção pelo socialismo, vai ler a Bíblia a partir de sua ótica esquerdista. E o mesmo se dará por quem tem predileção por qualquer outra ideologia. A bem da verdade, a Bíblia oferece recursos para reforçar qualquer discurso ideológico. Difícil é fazer uma leitura isenta, sem as lentes ideológicas.

Perguntando-lhe sobre o que dizia a Lei, este o respondeu: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

A resposta está... EEEXATA!!!

Faça isso e viva! Respondeu Jesus.

Mas espera aí... só isso? Não pode ser! Eu sou um advogado, não posso contentar-me com uma resposta tão simplista.  Hum... Já sei! Tenho uma nova questão: Quem é o meu próximo?

Com esta pergunta, ele se revelou. Suas entranhas foram expostas.

Alguns se sentem mais próximos dos poderosos. Outros, dos miseráveis. Outros, dos religiosos. E ainda outros, dos pecadores.

Em vez de respondê-lo diretamente, Jesus resolve contar mais uma de suas fascinantes estórias: Um homem que descia de Jerusalém para Jericó foi abordado por assaltantes, que depois de espancá-lo, deixaram-no meio morto.

Podemos atribuir a esses assaltantes o lema “o que é teu é meu”. Eles não respeitavam a propriedade privada. Achavam-se no direito de subtraí-la a seu bel-prazer. Mesmo que fossem como Robin Hood, roubando dos ricos para distribuir entre os pobres, ainda assim seriam ladrões.  Facilmente identificamos sua postura com a ideologia socialista. 

Os dois principais mandamentos abrangem a todos os demais. Uns dizem respeito ao amor que devemos a Deus, como por exemplo, não adorar outras divindades além d’Ele, não pronunciar Seu santo nome em vão, etc. Os demais dizem respeito ao amor que devemos ao nosso próximo. Entre esses encontramos dois que defendem claramente o direito à propriedade privada: não cobiçarás o que for do seu próximo (cônjuge, bens, etc.), e não furtarás. Não se trata apenas de deveres, mas da garantia de direitos. 

Qualquer regime que atribua ao Estado o direito de ingerência na vida privada de seus cidadãos está extrapolando suas funções. A justiça social não pode ter como ponto de partida a violação da propriedade privada. Não é tirando arbitrariamente dos ricos e dando aos pobres que vamos resolver o problema. Há vários mecanismos usados pelo Estado para subtrair seus cidadãos, principalmente através da cobrança de impostos pesados.

Jesus, então, introduz o terceiro personagem de sua trama: o sacerdote. Todos esperavam que este socorresse o moribundo. Em vez disso, ele nem sequer se aproxima. Provavelmente, ele estava indo para Jerusalém para prestar seu serviço no templo. Segundo a Lei, se tocasse em um cadáver, o sacerdote ficaria impuro, e, portanto, impossibilitado de cumprir seu turno.  Seu lema era “O que é meu é meu”. Em outras palavras, era como se dissesse: tenho que preservar o que tenho, sem me importar com o que se passa com o outro. Perceba aqui a similaridade desta postura com a ideologia capitalista, em que cada homem é uma ilha. O individualismo é enfatizado. A performance não pode ser comprometida com distrações. A ordem é produzir. Cumprir seu turno. Preservar seu status a qualquer custo. Neste mesmo espírito, as sociedades capitalistas promovem a segregação social. Os ricos blindam seus automóveis. Vivem nababescamente em seus condomínios luxuosos. Isolam-se da realidade. Enviam seus filhos para estudarem no exterior, longe das ameaças das ruas. Para estes, cumprir a agenda é mais importante que socorrer uma vítima da injustiça. Lucrar é o seu afã.

O capitalismo acaba por promover uma espécie de sistema de castas. Todos almejam chegar ao topo da pirâmide. O sonho do oprimido é um dia tornar-se no opressor, e assim, ir à forra por tudo o que sofreu.  Quem um dia foi cauda, finalmente será cabeça.  Ascensão social é a palavra mágica que mantém a máquina girando.  E a religião está aí para lubrificar suas engrenagens com seu discurso triunfalista e a justificação do lucro. A Teologia da Prosperidade é a versão pós-moderna deste discurso. Ela não só justifica, mas canoniza o lucro. Se no comunismo, o Estado usurpa o lugar de Deus, no capitalismo quem o usurpa é o capital, a quem Jesus chama de Mamom.

Decepção geral! A audiência de Jesus deve ter reagido mais ou menos como a torcida quando seu time perde um pênalti. Logo quem... o sacerdote.

Sai de cena o sacerdote e entra o levita.

Agora vai! Um homem pertencente a uma tribo totalmente dedicada ao Senhor...  Não vai pensar duas vezes. Aquele homem pode considerar-se socorrido.

Inusitadamente, o levita adota a mesma postura do sacerdote (que, diga-se de passagem, pertencia à mesma tribo). Todas as ideologias e regimes possuem a mesma origem: humana. O que se pode esperar delas? O lema do levita era “O que é teu é teu”. Em outras palavras: não me envolva em questões alheias. O sistema é bruto! É cada um por si e... Deus por todos!? Tem certeza disso?

Esta postura se assemelha com a proposta anarquista, defendida por alguns intelectuais idealistas. Será que a sociedade humana atingiu tal grau de evolução e sofisticação que possa dispensar qualquer tipo de governo? É de se considerar um tanto quanto romântica e atraente esta visão. Mas cada vez que nos deparamos com as injustiças, sejam individuais ou coletivas, percebemos que ainda não podemos viver numa sociedade sem leis, sem regras sociais, sem punição para os criminosos, sem infraestrutura, sem educação, etc. E para que tudo isso seja possível, ainda é mister a representação política. A anarquia é uma utopia que, a meu ver, só será plenamente alcançada quando Cristo houver destruído toda estrutura de poder.[2] O processo de demolição já começou e passa pela conscientização de que somos dependentes uns dos outros. Quanto mais o reino de Deus avançar, menos a sociedade humana necessitará do Estado. Até que chegue o dia em que finalmente teremos aprendido a nos articular em função do bem comum sem a necessidade de mediação e da tutela de qualquer governo. Tão logo o prédio se erga, os andaimes são dispensados. Porém, enquanto estamos em fase de acabamento, eles são necessários, caso contrário, corremos o risco de nos isolarmos uns dos outros, como andares de um edifício cujas escadas que os ligam estão obstruídas. Neste caso, os andaimes oferecem acesso externo. Quando a obra terminar, as escadas estarão liberadas. Circularemos por entre todas as esferas sociais sem recorrer a aparatos externos.  Enquanto isso não acontece, não se pode dispensar o papel do Estado.

Não dá para cada um viver por si e para si mesmo, ignorando a necessidade dos demais. O levita da parábola é uma pipa avoada. Passa levitando pelos demais, sem importar-se, sem perceber sua ligação com o todo. Apatia é o seu sobrenome.[3]

Portanto, nosso problema não é com a anarquia, mas com a apatia. Não é a ausência de governo, mas de paixão. O amor faz com que o outro exerça poder gravitacional sobre nós. Somos atraídos a ele e levados a considerar sua condição, buscando fazer alguma coisa que atenue a sua dor.

De repente, Jesus introduz em sua estória uma figura depreciada pelos judeus: Um samaritano.

O que se pode esperar daquele mestiço, lembrança de que um dia estivemos sob o domínio assírio? Ele não tem o nosso pedigree. Ele é um gaiato em nossa nau. Um ser asqueroso, com um sotaque ridículo, sem qualquer etiqueta. Se o sacerdote passou batido, e o levita passou voado, o mínimo que o samaritano vai fazer é cuspir no pobre coitado e passar por cima.

Para escândalo de sua atenta audiência, o samaritano interrompe sua viagem de negócio, se aproxima do moribundo, presta-lhe os primeiros socorros, coloca-o em sua cavalgadura, hospeda-o com recursos próprios, e ainda custeia o seu tratamento. Seu lema era “o que é meu é teu”. Nada do que fez foi por imposição do Estado, nem visando obter algum lucro ou vantagem, mas por livre e espontânea vontade. O texto diz que ele foi movido por compaixão. A solidariedade era a sua bandeira. Não importava a nacionalidade daquele a quem socorria. Ele nem mesmo esperava receber qualquer recompensa.

As ideologias nos distanciam. Os ideais do reino nos aproximam. Não precisamos demonizar, tampouco canonizar ideologia alguma. Todas têm suas incongruências e idiossincrasias. Os ideais preconizados por cada uma delas só será alcançado mediante a práxis do evangelho do reino. 

Usamos o neologismo reinismo para identificar tal práxis. Mesmo sem identificar-se como uma ideologia, o reinismo ofereceria, por assim dizer, a grande síntese ideológica tão almejada pela sociedade humana, em que a liberdade almejada por liberais/capitalistas é preservada, sem que para isso seja sacrificada a justiça social tão cara aos comunistas/socialistas; em que a auto-governança defendida por anarquistas seja possível, não como alternativa à hierarquia governamental, mas como base para toda e qualquer governança.

O ideal anarquista [4], como dissemos há pouco,  só será possível quando finalmente Cristo houver desfeito toda estrutura de poder, quando a humanidade houver alcançado tal maturidade mediante Cristo, que não precisará submeter-se a nenhuma autoridade, senão a de Deus. Como bem afirmou Paulo: “Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio, e toda autoridade e todo poder” (1 Co. 15:24). Até lá, compete-nos submeter-nos a toda autoridade que preze pelo bem comum (Rom.13), que estimule a prática do bem enquanto coíba a propagação do mal através da aplicação da justiça.



[1] Limito-me às ideologias principais, sem ignorar o vasto espectro ideológico existente em nossos dias.
[2] 1 Coríntios 15:24 – “Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio, e toda autoridade e todo poder.”
[3] Considerada por alguns como alternativa ao comunismo e ao capitalismo, o Distributismo é uma filosofia econômica que defende que a posse dos meios de produção deve estar o mais amplamente distribuída possível entre a população, em vez de estar centralizada no Estado (como defende o comunismo/socialismo) ou concentrada em uma minoria de indivíduos (capitalismo liberal). Nesse sistema, a maior parte das pessoas deveria conseguir sobreviver sem ter que contar com o uso da propriedade alheia. Valoriza-se a propriedade privada ao passo que valoriza o acesso a tais propriedades. Entre os que defendiam tal ideologia estavam o celebrado Chesterton e Hilaire Belloc.
[4] Dois célebres anarquistas cristãos foram o francês  Jacques Ellul e o russo Leon Tolstói



* Este texto foi extraído do livro "Ao oriente do Éden", de nossa autoria. Saiba como adquiri-lo, clicando na aba "livros" em nosso blog.

Nenhum comentário:

Postar um comentário