Os chineses têm razão quando no seu complicado alfabeto escrevem a palavra crise com dois ideogramas, um representando perigo e outro oportunidade. São exatamente estas as duas sementes contidas numa crise de identidade, o perigo de nos perdermos e cristalizarmos quem somos repetindo automaticamente erros, ou a oportunidade de nos reinventar, superar limitações, corrigir rumos, sair da periferia e vir para o centro capaz de equilibrar tudo em nós e nos religar a nossa vocação mais original.
Não só as pessoas, mas também os grupos humanos sofrem crises de identidade. Quando olhamos para trás vemos na história da igreja momentos quando ela entrou em crise de identidade. Homens e mulheres se levantaram para questionar o status quo, rebelaram-se contra a maioria acomodada, desafiaram autoridades, apontaram erros e etc. Somente para citar alguns exemplos, foi assim com o nascimento do monasticismo no séc IV, com a reforma protestante no Séc XVI com a eclosão do pentecostalismo no séc XX. Todos esses e outros movimentos provocadores destes momentos grávidos de perigo e oportunidade, tinham algo em comum: clamaram por um retorno a identidade essencial da igreja! Buscavam responder as perguntas que se recusam a calar todo tempo: qual a razão de ser da igreja? O que essencialmente é sua identidade? Para que existe?
Em busca dessas respostas, confesso, um dia já cheguei a me perguntar se Jesus realmente quis a igreja! Qualquer leitura rasa dos evangelhos vai nos mostrar que o centro da pregação, da vida, da morte e da ressurreição de Jesus foi o Reino de Deus. Ele nos ensinou a orar dizendo venha o teu Reino e não a tua igreja. Me perguntei: será que Jesus sonhou o Reino e o que veio foi a igreja?
Então, percebi que Jesus também quis a igreja. É neste sonho original dele que está ancorada a identidade primordial de sua igreja. Me permitam a licença de imaginar: quando Jesus um dia na colinas da Galiléia fechou os olhos e sonhou sua igreja, me custa crer que a primeira coisa que veio a mente dele foi prédios maravilhosos, lideres com enorme habilidade gerenciais, pastores acomodados uma vidinha de meros capelães das necessidades emocionais e físicas de sua congregação, pregadores brilhantes atraindo pessoas mais interessadas na beleza de um discurso do que em verdades produtoras de quebrantamento e transformação, doutrinadores de plantão prontos para corrigir qualquer "erro", estruturas complexas consumidoras de tempo e energia na manutenção de programas que acontecem sem a necessidade da Presença dele, líderes movidos pela raiz de todos os males, o amor ao dinheiro, transformando, como previu Paulo, a piedade em fonte de lucro... acho que a imagem mental da sua igreja era uma comunidade de discípulos que se reunia para adorá-lo e renovar as forças para viverem sua missão transformadora deste mundo. Esta é a conspiração divina iniciada por Jesus: discípulos cheios do Espírito Santo imersos nas dores deste mundo sendo instrumentos da concretização do Reino de Deus. Esta é a identidade original da igreja, é para isso que ela existe.
Mas o que aconteceu com este sonho? Uma autêntica busca de resposta a esta pergunta vai nos levar como igreja a uma saudável crise de identidade. Muitas vezes a resposta do que somos está no passado, daí a necessidade de fazer os retornos necessários. Porém, existimos no presente caminhando para o futuro, daí a necessidade de fazer as atualizações necessárias. Tendo isto em mente compartilho com você algumas intuições do caminho de retorno ao ideal perdido e dos vislumbres para continuarmos indo em frente:
* Uma redefinição da igreja: uma comunidade relacional geradora de autênticos discípulos. Um centro de formação espiritual que irradia a vida do Reino para o mundo;
* Uma redefinição de discipulado: um processo de formação espiritual que nos convida a ser uma encarnação histórica do Reino de Deus. Falar de formação espiritual é falar de impactar e mudar o mundo e não de fazer mais um programa eclesiástico para o crescimento da igreja.
* Uma redefinição do papel pastoral: pessoas comprometidas com Deus em se tornar pais, mães, mentores, espirituais, agentes de formação espiritual. Buscar superar esta dinâmica pedagógica passiva na qual vai-se para a igreja para ouvir e não para ser desafiado a viver. Recusar ser meros animadores de auditório, líderes gerenciais de grandes projetos Amar mais indivíduos do que multidões, ainda que elas sejam uma conseqüência abençoada do investimento pessoal nas pessoas.
Que uma santa crise de identidade vem sobre todos nós e sejamos protagonistas de um retorno ao sonho original (Reino de Deus) que avança para a concretização de um ideal (igreja como um centro de formação espiritual)!
Renovare (Via Emeurgência)
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