sexta-feira, fevereiro 08, 2019

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A ASSEMBLEIA DOS PÁSSAROS



Por Hermes C. Fernandes


Todos dormiam na arca na primeira noite de bonança após quarenta dias de dilúvio. De repente, um ajuntamento inusitado ocorreu. Os pássaros foram convocados para uma assembleia secreta extraordinária. A cacatua presidia a reunião.

- Soubemos por fonte fidedigna que Noé vai soltar um de nós nos próximos dias. Creio que seria justo escolhermos democraticamente àquele que nos representará, sendo o primeiro a deixar a arca.
Todos os pássaros assentiram com a cabeça.

- Modéstia à parte, creio que sou o mais indicado para a missão - disse o tucano com seu exuberante bico.

A partir daí, a confusão se instalou na confraria das aves.

- Por que você e não eu ou qualquer outro pássaro? - perguntou a arara-azul.

- Ora, ora... meu protuberante bico me garante um destaque que me permite ser visto à distância. Óbvio que Noé concordará que sou a melhor opção.

- Não esqueça que seu bico, além de cumprido, também é pesado, e que isso lhe impossibilitaria de voar por longas distâncias. Até encontrar terra seca, você já estaria exausto demais e acabaria voltando no meio do caminho - salientou a águia.

- Seu bico consegue ser maior que seu corpo! - ironizou a garça.

- Olha quem diz... pelo menos não tenho pernas tão longas e finas... - respondeu o tucano.
De repente, o pavão deu um passo à frente, apresentando-se como alternativa. Todos começaram a murmurar:

- Lá vem você com essa cauda espalhafatosa, achando-se o centro das atenções... Como se já não bastasse o peso do seu corpo. Com certeza, Noé vai preferir alguém bem mais discreto.

- E que tal, eu? - propôs o pica-pau.

A gargalhada foi geral.

- Você está louco? Por pouco você não afunda a arca com todos os bichos com essa sua mania de perfurar a madeira com seu bico pontiagudo.

- Mas é justamente por isso que me acho o melhor candidato. Alguém como eu é melhor fora do que dentro. Pelo menos lá fora, não serei um risco para ninguém - argumentou o pica-pau usando e abusando de seu tom sarcástico.

- Hum... pensando bem... não! Prefiro o bico grande do tucano que não faz mal a ninguém ao seu discreto, mas famigerado bico. Quem nos garante que depois que estiver do lado de fora, não vai usá-lo para afundar a arca? Você só não o usou ainda porque está dentro e sabe que se a arca afundar, você afunda junto. Quem não te conhece é quem te compra, seu cara de pau - disse a cacatua.

- Creio que a melhor opção que temos é a águia - indicou o avestruz.

- Agradeço a lembrança, mas devo abdicar-me da indicação. Como sabem, costumo voar muito alto. E não garanto que depois de voltar às alturas, eu me disponha a retornar à arca. Eu me conheço bem e acho que não mereço tal voto de confiança.

- Então, por que não eu? - sugeriu a cacatua.

- Pode ir baixando esta sua crista! Não é porque a iniciativa de convocar esta reunião foi sua que isso lhe dá o direito de exercer primazia sobre nós. Você é barulhenta demais para uma missão tão importante - disse o falcão.

Enquanto ainda discutiam, já tendo amanhecido, Noé se aproximou, estendeu a mão e tomou um corvo.

- O que foi isso? Por que o corvo e não qualquer outro de nós? - perguntaram-se uns aos outros.
- Acho que Noé se precipitou. Aquele corvo é o maior traíra. Duvido que retorne à arca - asseverou o tucano.

Dias depois, uma nova assembleia foi convocada na calada da noite.

- Como vocês todos já devem saber, o corvo se escafedeu. Noé nem sequer nos consultou pra saber qual de nós estaria apto para aquela missão - reclamou o tucano.

- Deveríamos fazer um protesto, isso sim. Tantos qualificados aqui e ele foi escolher logo aquele “come-quieto” do corvo - arrazoou a garça. Eu, por exemplo, posso até ter pernas longas, desproporcionais com relação ao meu corpo, mas pelo menos, caminho em águas imundas sem sujar minhas penas alvas.

- Ouvi dizer que o corvo saiu reclamando que Noé o estarei expulsando da arca - relatou o pica-pau.
Mais uma vez, a assembleia foi interrompida pelo som dos passos de Noé. Sem consultar a ninguém senão à sua própria consciência, Noé estendeu a mão em direção à pomba e levou-a consigo.

- Esse Noé não aprende mesmo. Primeiro o corvo, agora a pomba? Que qualidades ela reúne, afinal? Suas asas não têm a envergadura das asas da águia; seu bico não é longo como do tucano, nem habilidoso como do pica-pau. Suas penas não são coloridas como das araras. Suas garras não são fortes como as do falcão. O que Noé viu nela, afinal?

Um velho condor que assistia à discussão, tomou a palavra e respondeu:

- Senhores, acredito que sei o que Noé viu em nossa companheira pomba: Uma qualidade e um hábito. Primeiro, ela é simples como nenhum de nós. Vocês nunca a viram se gabando do que é. E segundo, ela sempre volta.

Os pássaros, então, resolveram fazer um bolão entre eles. Quase todos apostaram que ela não voltaria, à semelhança do que fez o corvo. Mas o condor e algumas outras aves de rapina apostaram que sim.

Dias depois, ouviu-se o som de umas batidas na janela da arca. Ao abri-la, Noé deparou-se com a pequena ave trazendo no bico um ramo de oliveira.


Moral da estória: é na simplicidade que habita a esperança.

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