Por Hermes C. Fernandes
É preciso ter estômago e muita sensibilidade para
assistir ao filme “A pele que habito” dirigido pelo cineasta espanhol Pedro
Almodóvar e estrelado por Antonio Bandeiras. Nossos mais enraizados preconceitos são confrontados sem dó nem
piedade. Por um instante, ficamos sem chão, em busca de algo em que se segurar. A filha de um bem-sucedido cirurgião plástico sofre uma
tentativa de estupro no jardim de uma mansão onde acontecia uma festa da alta
sociedade. Quando seu pai a encontra, ela está deitada, aparentemente
inconsciente. Ao tentar despertá-la, ela julga que seu próprio pai a está
violentando e começa a gritar. Devido a um colapso emocional, ela é internada
num hospital psiquiátrico e na primeira oportunidade, se suicida jogando-se da
janela. Arrasado, o pai sai à caça do rapaz que a havia molestado, e ao encontrá-lo,
decide capturá-lo e mantê-lo em cárcere privado por anos a fio. Durante este
tempo, o médico lhe aplica procedimentos cirúrgicos sem o seu consentimento,
começando pela troca de sexo. Paulatinamente, ele vai esculpindo o corpo e o rosto do rapaz até
torná-lo numa linda jovem, por quem, inusitadamente, acaba se apaixonando. Obviamente, há muito mais no enredo do filme, e posso garantir que vale a pena
assisti-lo.
Haveria melhor vingança contra um estuprador do que torná-lo
semelhante à sua vítima? Já imaginou se Deus resolvesse agir da mesma forma e
fizesse com que todo machista vivesse ao menos um dia como mulher? E se todo
racista, ao acordar e olhar-se no espelho, se desse conta de que da noite para
o dia se tornou negro? E se todo homofóbico experimentasse ser homossexual por
algum tempo? E se alguém cheio de preconceito contra deficientes
se tornasse num cadeirante de uma hora para outra (aliás, disso, ninguém está isento)?
E se dormíssemos cristãos e acordássemos candomblecistas ou hinduístas, ou até mesmo
ateus?
Sorte nossa Deus não ser vingativo, não? Ele poderia nos
transformar justamente naquilo que menosprezamos. É por isso que não vejo qualquer sentido em
menosprezar um idoso. Afinal, todos caminhamos para a velhice e a alternativa a isso ninguém quer. Ou envelhecemos, ou morremos.
Apesar de não ser este o caminho escolhido por Deus para
nos moldar, estou certo de que Seu desejo é que aprendamos a nos colocar no
lugar do outro antes de julgá-lo ou desprezá-lo.
Empatia. Eis a palavra. É disso que precisamos com
urgência. Caso contrário, tornar-se-á insuportável viver numa sociedade em que
as pessoas não deem o mínimo para o sofrimento alheio, preferindo ocupar o seu tempo
em julgar e cultivar todo tipo de preconceito.
Houve uma família que partiu de Belém para refugiar-se nas
terras de Moabe durante um período de fome. Um casal e dois filhos. Mesmo
cientes das dificuldades que teriam em viver entre um povo hostil, eles não tiveram alternativa. A fome e a possibilidade da morte os assustavam mais do que a animosidade dos moabitas.
Chegando a Moabe, a família conseguiu se integrar na sociedade
local, a ponto de seus filhos se casarem com duas jovens moabitas, Orfa e Rute. Eventualmente, Eimeleque, o patriarca da família, veio a falecer. Mas
Noemi, agora viúva, ainda podia contar com seus filhos e noras naquela terra
estranha. Dez anos depois, seus filhos também morreram. Agora, só restara a
Noemi a companhia de suas noras moabitas. Numa
sociedade patriarcal como aquela, não era nada fácil que uma família só de
mulheres sobrevivesse.
Ao saber que a situação em sua terra natal havia se revertido,
Noemi decidiu voltar. Certamente, seria mais fácil, na condição em que estava,
sobreviver em sua própria terra, cercada por parentes e amigos. Vendo que suas noras ainda eram jovens e belas (eu não disse recatadas, ok?), Noemi
aconselhou-as a que buscassem dar um novo rumo às suas vidas. Não havia razão
para acompanhar uma mulher idosa em sua marcha de volta ao lar, desperdiçando
assim a sua juventude.
– Voltem para suas famílias! Aproveitem a vida que ainda
têm pela frente. Vocês vão acabar encontra novos maridos, constituindo novas
famílias – teria argumentado Noemi.
Porém, chorando, elas prometeram jamais deixá-la. O que teria levado Noemi a agir dessa maneira? Afinal, ela bem que poderia se
aproveitar da juventude de suas noras, colocando-as para trabalhar para ela,
tanto dentro, quanto fora de casa. Todavia, seu caráter extraordinário não lhe
permitia sequer imaginar a possibilidade de sabotar o futuro daquelas que
haviam sido a razão da felicidade de seus falecidos filhos. Isso sim é vestir-se na
pele do outro; colocar-se em seu lugar; assumir os anseios alheios como sendo
seus. A felicidade do outro deve estar acima de nossas necessidades particulares. Quem ama deve desejar mais a felicidade do outro do que a sua própria companhia.
Na segunda tentativa, Noemi argumentou:
– Filhas, parece até que vocês têm esperança de que um
dia eu lhes possa gerar outros maridos. Ora, já sou velha. E ainda que me engravidasse
nesta noite, por quanto tempo vocês teriam que esperar até que meus filhos
crescessem? Não insistam em me acompanhar. Vocês têm o direito de sair em busca
de sua própria felicidade.
Desta feita, Orfa cedeu ao argumento da sogra, deu-lhe um
beijo banhado de lágrimas e se foi. Porém, Rute não arredou os pés. Nada conseguia
demovê-la da decisão de acompanhar Noemi.
– Por que não faz como a sua concunhada? Aproveita. Vá
com ela. Volte para o seu povo e para o seu deus!
Pelo que Rute respondeu:
“Não insistas comigo que te deixe e não mais a acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” Rute 1:16
O que deu em Rute? Será que ela surtou de vez? Aquela
mulher idosa não tinha nada a lhe oferecer a não ser a sua companhia e alguns conselhos de quem já havia vivido o suficiente.
Estou certo de que a mesma empatia que houve no coração
de Noemi com relação às suas noras, houve também no coração de Rute com relação
à sua sogra. Ela deve ter imaginado como seria difícil para uma mulher daquela
idade ter que se virar sozinha, sem ninguém por perto para apoiá-la.
Empatia deveria ser uma estrada de mão-dupla. Sem
reciprocidade, o circuito não se completa. Pais devem saber se colocar no lugar dos filhos,
entendendo que um dia também foram adolescentes, tiveram seus momentos de
rebeldia, de vontade de conhecer o mundo, de experimentar coisas
novas, etc. Semelhantemente, os filhos devem “vestir a pele” dos pais e imaginar
como deve ser ter a idade em que agora estão, com tantas histórias para contar
e com tão pouco futuro pela frente (pelo menos em comparação a eles). Maridos devem saber se colocar no lugar de suas
respectivas esposas, compreender seus anseios e os desafios que enfrentam em seu
dia a dia. Assim como as esposas devem se imaginar no lugar de seus maridos, suas carências, suas frustrações.
Quanta coisa não seria evitada, hein? De quanto desgaste
desnecessário as relações seriam poupadas?Para Noemi, a felicidade de sua nora importava mais do
que a sua agradável e tão querida companhia. Mas para Rute, abandonar a sua
sogra àquela altura do campeonato não parecia justo.
Depois de devidamente instaladas em Belém, Rute saiu em
busca de algum trabalho. Se já era difícil ser mulher naquela época, imagina
ser mulher e, ainda por cima, estrangeira. Vendo alguns ceifeiros trabalharem
num vasto campo, infiltrou-se entre eles, e saiu catando as espigas que eles deixavam para trás.
Quando Boaz, o dono do campo, chegou, quis saber quem
seria aquela jovem estranha que desde cedo se colocara a trabalhar.
Informaram-lhe que se tratava da nora de Noemi, sua parente. Chamando-a a parte, aconselhou-a a não buscar
outra lavoura para trabalhar, mas a permanecer por ali, onde ele lhe garantiria
segurança. Nenhum dos rapazes que ali trabalhavam poderia importuná-la. E se tivesse sede ou fome, ali mesmo poderia saciar-se à vontade.
Não há porque buscar outras lavouras, quando se tem o que precisa. Como também não razão para insegurança e o ciúme quando nos dispomos a oferecer ao outro os cuidados de que necessita. Empatia também consiste em dar liberdade ao outro para que vá ou fique. Em vez de chantagens emocionais ou cerceamento da liberdade, oferece-se razões para ficar, dentre as quais, segurança. Em vez de controle, cuidados. Ciúme nada mais do que a admissão de que outro possa proporcionar felicidade maior do que a que nos propusemos oferecer.
Quando Jesus se viu abandonado pela multidão que o acompanhava, deixou claro aos Seus discípulos que eles tinham liberdade de partirem a hora que quisessem. Pedro, porém, toma a palavra diz: Para onde iremos, Senhor, se só tu tens palavras de vida eterna?
O que teria feito com que Boaz agisse com tal humanidade
para com uma desconhecida estrangeira? Arrisco-me a dizer que o simples fato de
ser filho de quem era. Aquele homem de bom coração era filho de ninguém menos
que Raabe, a prostituta que após ter acolhido dos espias de Josué em Jericó,
foi integrada ao povo de Israel.
Por certo, Boaz teve que aprender a lidar com o estigma
de ser filho de uma meretriz. Ora, quem já foi vítima de qualquer tipo de
preconceito, não tem o direito de vitimar ninguém. Olhando para Rute, a jovem
viúva moabita, Boaz se lembrou da própria mãe e do período de adaptação que ela
amargou entre os filhos de Israel. O que
ambas tinham em comum era o fato de serem estrangeiras. Porém, enquanto uma era
viúva, a outra havia sido prostituta.
Ao chegar a casa com os feixes recolhidos no campo, Rute
contou à sua sogra o que se passara e como aquele homem a recebeu com
dignidade. Noemi só faltou festejar. Ela reconheceu tratar-se de um parente bem
próximo de seu falecido marido. E de acordo com os costumes da época, ele
poderia ser o resgatador de Rute, isto é, aquele que poderia libertá-la de sua condição.
Bastaria tão somente que se dignasse a tomá-la por esposa.
“Certo dia, Noemi, sua sogra, lhe disse: "Minha filha, tenho que procurar um lar seguro, para sua felicidade. Boaz, aquele com cujas servas você esteve, é nosso parente próximo. Esta noite ele estará limpando cevada na eira. Lave-se, perfume-se, vista sua melhor roupa e desça para a eira.”
Noemi, então, aconselhou-a a esperar que Boaz se adormecesse,
viesse discretamente, descobrisse seus
pés e se aconchegasse junto a eles. Mesmo sem entender direito o significado de
tal gesto, Rute optou por obedecer à recomendação de sua sogra.
Ao acordar assustado, Boaz sentiu-se surpreso com a cena
de Rute deitada aos seus pés. Ela poderia ter se aproveitado do fato de ele ter
se embriagado antes de dormir, seduzindo-o e até provocando uma gravidez que
lhe garantiria um futuro promissor. Em vez disso, ela tão-somente descobre os
seus pés e neles se aconchega.
Vendo-o assustado, ela diz:
– Estende sobre mim a sua capa, pois o senhor é o meu
resgatador.
Vejo nesta cena cada um de nós, aconchegado aos pés de
Cristo e rogando-lhe que nos estenda Seu manto de amor e misericórdia. Ele é o
nosso Resgatador!
O coração de Rute deveria estar a mil. Qual seria a
reação de Boaz? Não poderia ser outra senão a de um gentleman.
“O Senhor a abençoe, minha filha! Este seu gesto de bondade é ainda maior do que o primeiro, pois você poderia ter ido atrás dos mais jovens, ricos ou pobres! Agora, minha filha, não tenha medo; farei por você tudo o que me pedir. Todos os meus concidadãos sabem que você é mulher virtuosa.”
Boaz considerou que Rute agiu para com ele com a mesma
bondade com que agiu para com a sua sogra, recusando-se a abandoná-la. A esta
altura, todos em Belém já sabiam que aquela jovem viúva não era uma
aproveitadora, alguém em busca de locupletar-se, e sim, uma mulher dotada de admiráveis
virtudes.
O que Rute jamais poderia presumir era que ao se casar com
Boaz, ela não apenas era desposada pelo filho de uma prostituta cananeia, mas também ingressava na árvore genealógica que traria ao mundo o grande
Resgatador, o Filho de Deus, que ao se fazer carne, sentiria na própria pele “a
delícia e a dor” de ser humano.
Texto incrivel , Gloria Deus por sua vida !
ResponderExcluirPastor, mais uma vez, parabéns e obrigada pelas suas reflexões! A começar pelo exemplo dado a partir do filme de Almodóvar que, confesso,,afetou-me profundamente, não só pela questão já abordada pelo Sr., como também pela chance de refletir sobre a possibilidade real (autoritária e pouco amorosa) que cada um de nós tem de negar o direito do outro de existir (ou de termos nosso direito negado).E com mais pesar ainda observo que muitos dos que foram vítimas do preconceito de outros, julgam-se no direito de marginalizar outros tantos.
ResponderExcluirPrecisamos, com urgência, em nome de um projeto, de fato, civizatório, tornamo-nos "resgatadores".
Um abraço afetuoso.