sexta-feira, maio 15, 2020

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A IGREJA E A POLÍTICA EUGENISTA DE BOLSONARO



 Por Hermes C. Fernandes

Estamos assistindo à implantação de uma política eugenista no país com a anuência de líderes evangélicos proeminentes. A crise sanitária parece ter provido o cenário ideal para isso. Engana-se quem insiste em achar que se trate apenas de negar a ciência. Trata-se, antes, de uma lógica eugenista perversa que há muito tem permanecido latente em nossa sociedade, mas que aflorou com força total nos últimos anos com a polarização política. A evidência disso são as falas e posturas adotadas pelo atual governo frente à pandemia que já matou mais de 15 mil pessoas (sem contar as subnotificações) até o dia 15/5/2020. Para o presidente que já chamou a COVID-19 de gripezinha, o Brasil vive uma neurose, e, que, inevitavelmente, 70% das pessoas serão contagiadas. Isso equivaleria a cerca de 140 milhões de pessoas. Considerando que a letalidade do novo coronavírus gire em torno de 6%, devemos concluir que mais de 8 milhões de pessoas morrerão durante esta pandemia no país? Ora, ora, desde que este contingente seja, em sua maioria, de idosos e portadores de comorbidades, tudo bem. Esse é o raciocínio eugenista. Tanto uns, quanto outros já morreriam de qualquer maneira. O vírus só veio dar uma forcinha para que isso aconteça um pouco mais rápido. Assim, o SUS, que agora está penando à beira do colapso, será finalmente aliviado por não ter que tratar dessas comorbidades. Sem contar o alívio da previdência social que já não terá que pagar tantas pensões e aposentadorias. Mas de tudo isso, não haveria vantagem maior do que depuração desta “brava gente brasileira”, haja vista que restariam os jovens e adultos atléticos, prontos a manterem a roda da economia girando.

Esta é a razão porque o governo defende com unhas e dentes a reabertura do comércio e a retomada da economia. Quem tiver que morrer, que morra logo. A propósito, há males que vêm para bem...

Eugenia é a teoria que defende o aprimoramento da espécie humana por meio de uma seleção tendo como base as leis genéticas. A ideia foi fartamente usada pelo regime nazista para justificar o extermínio de pessoas consideradas impuras (membros de outras etnias, além de idosos e doentes crônicos pertencentes à sua própria etnia) e criar uma raça ariana superior.

Ao descredibilizar dois ministros da saúde que ele mesmo nomeou para combater a epidemia, Bolsonaro propõe uma versão contemporânea de eugenia. Abolindo o distanciamento social horizontal e adotando o isolamento vertical (somente idosos e portadores de comorbidades), o governo lava as mãos. No final das contas, a vítima morrerá de complicações respiratórias, cardiopatias ou diabetes, agravados pela presença do vírus. A responsabilidade recairá sobre o parente próximo que não o isolou o suficiente. Assim, o governo tira de seus ombros qualquer responsabilidade, mesmo sabendo que o indivíduo jovem e são, não só pode ser contagiado como também pode contagiar aos demais membros da família, ainda que não apresente qualquer sintoma.

Bem da verdade, ao longo da história, diversos povos lançaram mão de métodos eugenistas, eliminando indivíduos que nascessem com deficiência. Até os gregos apelavam a este tipo de expediente cruel. Mas foi somente no final do século 19 que se elaborou nos EUA uma teoria eugenista de controle social, com o objetivo de aprimorar as qualidades raciais das futuras gerações. Segundo esta teoria, a sociedade humana deveria assumir o timão que ao longo das eras esteve nas mãos da seleção natural. No lugar das forças cegas da seleção natural, a seleção consciente. Foi nos EUA, país que se arroga maior democracia do mundo, que o movimento eugenista moderno teve suas raízes. Mas foi na Alemanha Nazista que ele deu seus mais tenebrosos frutos. Porém, muito antes do Holocausto que matou seis milhões de judeus, os EUA já promoviam esterilizações forçadas entre os mais pobres, doentes mentais e minorias como negros, judeus, mexicanos, indígenas, epiléticos, alcoólatras e qualquer que não se enquadrasse no biótipo ideal nórdico, loiro de olhos azuis. E tudo isso, pasmem, com o apoio de muitas igrejas evangélicas.

O clã Bolsonaro nunca fez questão de esconder sua admiração pela teoria e pela prática da eugenia. Carlos Bolsonaro, filho do presidente da república já opinou que o Programa Bolsa-família deveria ser condicionado às cirurgias de laqueadura e vasectomia para estancar a ferida econômica e ainda combater a miséria e a violência do Brasil. Para os Bolsonaros, a eugenia diminuiria o número de pobres, e, consequentemente, os índices de violência. Considerando que em sua maioria, os pobres são negros que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos, condicionar o recebimento da bolsa-família à laqueadura ou vasectomia deste grupo social seria, em última instância, propor o branqueamento da população. O que ele parece desconsiderar que a pobreza e a violência não têm a ver com a cor da pele, mas com o modelo econômico que oprime e explora a população continuamente.

Em um discurso inflamado proferido em 2013 na Câmara de Deputados, Jair Bolsonaro declarou: “Só tem uma utilidade o pobre no nosso país: votar. Título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso, para votar no governo que está aí. Só para isso e mais nada serve, então, essa nefasta política de bolsas do governo.” Em 1992 ele já defendia tal posição: “Devemos adotar uma rígida política de controle da natalidade. Não podemos mais fazer discursos demagógicos, apenas cobrando recursos e meios do governo para atender a esses miseráveis que proliferam cada vez mais por toda esta nação.” Em outro discurso na Câmara, ele disse: “Defendo a pena de morte e o rígido controle de natalidade, porque vejo a violência e a miséria cada vez mais se espalhando neste país. Quem não tem condições de ter filhos não deve tê-los. É o que defendo, e não estou preocupado com votos par ao futuro.” E em outro, em julho de 2008: “Não adianta nem falar em educação porque a maioria do povo não está preparada para receber educação e não vai se educar. Só o controle da natalidade pode nos salvar do caos.”

Sem o menor escrúpulo, Bolsonaro se refere aos refugiados oriundos da África, do Oriente Médio, do Haiti e da Venezuela como “escória do mundo”, enquanto exalta outras etnias consideradas superiores. Em seu polêmico discurso no Clube Hebraica do Rio de Janeiro em abril de 2017, ele afirmou que apreciava a “vergonha na cara” da “raça” japonesa. “Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Não, porque é uma raça que tem vergonha na cara. Não é igual a essa raça que tá aí embaixo, ou como uma minoria que tá ruminando aqui do lado”, disse. Na mesma ocasião, afirmou que negros quilombolas não serviam “nem para procriar.”

Apesar de sua postura eugenista, seus fiéis escudeiros seguem idolatrando-o, atacando verbalmente quem quer que ouse contestar seu mito. Talvez a psicologia nos ajude a entender este fenômeno. De acordo com o conceito de "narcisismo das pequenas diferenças", postulado por Sigmund Freud, a civilização, sob a égide da lei, é a responsável pela inibição da agressividade humana, uma das expressões narcísicas do ego. Entretanto, tal narcisismo agressivo rompe a barreira do recalque e se manifesta publicamente quando incentivado por líderes que se supõem acima da lei (e, portanto, da civilização) ou quando avalizados por um grupo que recorre a pequenas diferenças em relação ao outro para justificar a barbárie.

Em outras palavras, as falas e posturas de Bolsonaro nos concedem a licença necessária para expor os sentimentos xenófobos, homofóbicos, machistas, preconceituosos de forma geral, sem qualquer acanho. Se ele pode, nós também podemos. E assim, ele se tornou na bússola que indica o norte para nossos monstros interiores, instigando-nos a odiar os diferentes, vendo-os como rivais.

O que realmente incomoda é ver tudo isso sendo reverberado em nossos púlpitos, revestido de uma aura piedosa. Uma vez que Bolsonaro é canonizado nas igrejas, sua verborragia é içada ao status de quase sagrada e irrebatível. Pastores buscam nas páginas do Antigo Testamento episódios protagonizados pelos heróis hebreus para justificar sua fúria eugenista. E assim, honram o legado recebido da sua igreja mãe nos Estados Unidos. Foi lá, no chamado Cinturão Bíblico, região sul dos EUA, que o fundamentalismo evangélico brasileiro foi gestado. Foi lá que as igrejas inventaram as famosas galerias para os coros, geralmente formados por negros, para mantê-los separados dos brancos.

Urge que os pastores comprometidos com a justiça do reino de Deus se unam contra esta onda de ódio e enfrentem o discurso eugenista com a verdade do evangelho que iguala todos os seres humanos, independentemente de credo, etnia, cultura, gênero ou orientação sexual.

Urge, igualmente, a emergência de uma teologia emancipada e emancipadora, produzida a partir de nossa própria realidade e disposta a submeter-se a uma constante revisão a fim de que não se cristalize, nem se torne instrumento de justificativa da opressão.

Que o Brasil sobreviva a Bolsonaro. Que a igreja brasileira sobreviva aos profetas palacianos. E que esta pandemia chegue logo ao fim.

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