Por Hermes C. Fernandes
“Toda criança quer ser homem. Todo homem quer ser rei.
Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser criança.”
Leonardo Boff
Recriançar-se é voltar a enxergar o mundo como um imenso playground. Tudo passa a ser ressignificado. Criança brinca. Adulto trabalha. Ambos transpiram com o que fazem. A diferença é que o que a criança faz é meramente por prazer, enquanto o adulto encara o trabalho geralmente como dever. É a busca pela criança que se perdeu dentro de si que faz com que o adulto se entregue a uma busca desenfreada por prazer, seja pelo uso de entorpecentes, pela prática sexual promíscua e irresponsável, pelo jogo, e até pelo trabalho quando se torna um workaholic.
Para o adulto, o mundo perdeu sua magia. As cores que tingem a vida se desbotaram. Aos poucos, a vida vai se tornando num tédio insuportável. Ele já nem lembra qual foi a última vez em que fez algo pela primeira vez. Para a criança, tudo é novo, tudo é descoberta. Recriançar-se, portanto, é redescobrir o aspecto lúdico da vida. É romper com a rotina, surpreendendo a retina. É permitir que as coisas simples do cotidiano se revistam de um significado extraordinário. A vida deixa de ser reprise para ser remake. A monotonia cede à politonia e ao ineditismo.
Quando um adulto redescobre o prazer de ser criança, o trabalho se torna numa grande brincadeira. Não que perca a seriedade, mas deixa de ser visto como castigo. O processo passa a ter mais importância do que o resultado. A satisfação independe da gratificação econômica, que passa a ser visto apenas como um reforço positivo.
Até o sexo recobra sua natureza lúdica. A pressão se dissolve. O intercurso sexual é como brincar numa gangorra, onde os parceiros se alternam para dar e receber prazer reciprocamente. Ou como brincar de balanço, desejando impulsionar seu parceiro a alcançar as alturas.
São Paulo dizia que deveríamos ser adultos no entendimento, porém, crianças na malícia. Portanto, recriançar-se não é tornar-se inconsequente, ingênuo, sem noção do perigo que nos rodeia. Somos crianças que cresceram, que adquiriram know how da vida, que entendem os mecanismos deste mundo. Todavia, quando baixamos o programa da maturidade, nosso antivírus identificou um malware, isto é, um programa malicioso, e o colocou de quarentena. Um dia ele será totalmente erradicado.
É a malícia que trava nossa máquina, deixando nosso sistema inoperante. Submeter-se à sua nefasta influência equivale a sabotar a própria existência.
Desprovidos de malícia, a vida recobra seu encantamento original. Afinal, “todas as coisas são puras para os puros” (Tito 1:15). Como costumava cantar Gonzaguinha: "Eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita." Somente as crianças conseguem enxergar a beleza que há na vida. É aquela velha estória: "se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas!" (Mateus 6:22-23).
Lamentavelmente, a maioria parece adotar uma visão de mundo inversa à proposta por Paulo. Tornamo-nos adultos na malícia, e crianções no entendimento. É como quem acaba de dar uma geral no carro, mas se esqueceu de limpar o para-brisa. A lataria está tinindo. Os estofados, idem. O tanque cheio. O óleo no nível ideal. Mas a visibilidade do motorista é prejudicada de modo que se torna impossível dirigir sem o risco iminente de colidir.
Por isso, Jesus disse que se não voltarmos a ser crianças, experimentando o que ele chama de “nascer de novo”, não estaremos habilitados nem a ver, tampouco a entrar no reino de Deus.
Adultos são sempre barrados no baile do reino. A senha que libera sua entrada é o novo nascimento, que nada mais é do que recriançar-se. Recorrendo novamente à analogia do computador, é como voltar o sistema àquele ponto em que ainda não havia sido contaminado. É reiniciar a máquina. A partir daí, qualquer programa roda com leveza e a vida passa a fluir naturalmente.
E aí, tá a fim de brincar com coisa séria?
Que texto espetacular !!! Extremamente útil, aliás, como são mesmo todos os textos do Pr Hermes !
ResponderExcluir