sábado, junho 11, 2016

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Toda nudez será castigada - A moral cristã e o tabu em torno da nudez



Por Hermes C. Fernandes

"Toda nudez será castigada" é um filme brasileiro lançado no final de 1972, dirigido por Arnaldo Jabor e baseado na peça de teatro homônima de Nelson Rodrigues. Como em toda a obra de Nelson Rodrigues, expõem as vísceras da hipocrisia das famílias tradicionais brasileiras. A censura da época sob o regime militar achou o filme imoral e tentou proibir o seu lançamento. Com apenas três meses de estreia, a polícia federal apreendeu todos os rolos da película em todo o território nacional. Porém, não pôde impedir que o filme fosse exibido no Festival Internacional de Berlim na Alemanha, e ainda ganhasse o Urso de Prata. Tal façanha fez com que o governo revisse sua postura e permitisse que o filme voltasse às salas de exibição em todo o país. 

Citei o fato para exemplificar o quanto a nudez segue sendo um tabu em nossa sociedade. Desde a chamada Era Vitoriana, passamos a relacionar nudez com sensualidade. A associação que antes era ocasional, passou a ser constante. A sociedade que se formou a partir daquela era, revelou-se pródiga em moralismos e disciplina severa para o corpo, alimentando todo tipo de preconceitos. Mui provavelmente, foi graças a este moralismo exagerado que Jacques Lacan chegou a dizer que sem a rainha Vitória a psicanálise jamais teria existido. 

Se observarmos a época anterior à Vitoriana (que coincide com o início da revolução industrial), principalmente durante os tempos áureos da Renascença, veremos que a nudez era tratada com naturalidade. Mesmo nos espaços considerados sagrados como igrejas e mosteiros, encontraremos algumas das personagens bíblicas mais notórias esculpidas completamente nuas, com suas genitálias à mostra. 

Nos dias atuais, consideramos desrespeitoso e inadmissível  retratar Jesus dependurado na cruz completamente nu, como de fato aconteceu. A moral cristã tratou de vestir o crucificado com uma espécie de tanga a fim de preservar-lhe a honra. 

E como seria nos tempos bíblicos? Como a nudez era encarada?

Há um episódio narrado no Novo Testamento que passa despercebido pela maioria dos leitores e que talvez nos ofereça pistas acerca do tema.

O clima era tenso. Jesus acabara de ser identificado por um beijo. Um dos seus discípulos tentara impedir sua prisão e quase tira a vida de um dos soldados do sinédrio. Ainda bem que ele não era tão bom de mira. Em vez de acertar o pescoço, arranca a orelha. No meio da confusão, alguém rouba a cena. Somente Marcos relata o episódio. Um jovem que o seguia discretamente, sai de trás de algum arbusto correndo, envolto unicamente num lençol. Os soldados tentam agarrá-lo, mas ele, largando o lençol, foge completamente nu (Mc.14:51).

Seria cômico, não fosse num momento trágico em que o Filho de Deus era entregue para ser sacrificado por nós.

Por que cargas d’água aquele jovem seguia Jesus de madrugada naquelas condições? Seria um voyeur? Um exibicionista? Um pervertido?

Não creio que tal episódio estaria exposto nas Escrituras sem que houvesse uma boa razão. Alguma lição pode ser extraída daí. Mas, qual?

Proponho aqui uma leitura arquetípica deste fato desconcertante e hilário.

Desde os primórdios, a nudez tem sido relacionada à vergonha, e por isso mesmo, tornou-se num tabu. A primeira reação de Adão ao perceber-se nu foi esconder-se e improvisar um tapa-sexo com folhas de parreira.

Não há absolutamente nada de errado com a nudez. Deus não nos fez vestidos. A nudez é apenas um eufemismo da nossa condição de vergonha decorrente da culpa.

O próprio Deus providencia roupas para o primeiro casal, feitas a partir da pele de algum animal. Os teólogos creem que o sacrifício daquele animal prefigurava o sacrifício de Jesus, meio pelo qual nossa culpa seria expiada e nossa vergonha devidamente coberta.

Dentro da simbologia bíblica, as vestes representam o resgate de nossa dignidade. Somos mais do que meros animais guiados por instintos. Somos seres dotados de consciência, aptos à reflexão, instigados a buscar sentido para a existência. Nada nos convence a aceitar a vida de maneira crua. A consciência é a tecelagem onde se produz o tecido da espiritualidade. É nela que os fios se entrelaçam. Descobrimo-nos como um ponto na grande teia da vida. Estamos conectados a tudo e a todos, e, sobretudo, ao Supremo Tecelão.

Todavia, nossa espiritualidade precisa ser devidamente costurada. Caso contrário, será como aquele lençol que cobria o jovem foragido, deixando-nos expostos quando mais precisarmos dela.

Entre as atribuições do Messias, Isaías profetiza que Ele nos daria “vestes de louvor no lugar de espírito angustiado” (Is.61:3). O que difere uma veste de um lençol é a costura. Estar vestido de louvor nada mais é do que tornar-se motivo de louvor a Deus. A maneira como nos portamos ante as demandas da vida poderá resultar em glória ou em vergonha, honra ou desonra para Aquele a quem devemos nossa existência.

Uma espiritualidade sem costura pode parecer mais conveniente, fácil de descartar depois de usada. Todavia, não oferece qualquer garantia. Na hora do aperto, a gente vai e ela fica.

A igreja de Laodiceia foi seriamente repreendida por Jesus devido a este tipo de espiritualidade ‘sem eira, nem beira’.  Apesar de arrogar-se rica, poderosa, influente, Cristo diz que ela ignorava seu real estado de desgraça, miséria, pobreza, cegueira e nudez. “Aconselho-te que de mim compres ouro provado no fogo, para que te enriqueças; e roupas brancas, para que te vistas, e não apareça a vergonha da tua nudez” (Ap.3:17-18). Nossa avaliação é constantemente confrontada com a avaliação divina. Geralmente, somos exigentes com os outros, mas condescendente conosco mesmo.  Todos igualmente estamos sujeitos à inspeção relâmpago de Cristo. Sem dizer o dia, a hora e o lugar, Ele vem e  “bem-aventurado aquele que vigia, e guarda as suas vestes, para que não ande nu, e não se veja a sua nudez” (Ap.16:15). E nestas horas, de nada adianta tentar esconder-nos atrás de algum arbusto como fez Adão.  Afinal, “não há criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele a quem havemos de prestar contas” (Hb.4:13).

De repente, o que está escondido vem à tona. A vergonha é exposta. E nosso caráter é devidamente tratado.

Só há uma maneira de escaparmos desta exposição e da vergonha que ela produz. Paulo diz que devemos nos despojar “da ira, da cólera, da malícia, da maledicência, das palavras torpes”, deixar de mentir uns aos outros, pois já nos despimos do velho homem com os seus feitos e nos vestimos do novo, “que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl.3:8-10).

Adão deve primeiro livrar-se das folhas da parreira para vestir-se com as roupas providas pelo próprio Deus.  Devemos livrar-nos do lençol que nos cobre para vestir-nos com as vestes da justiça de Cristo. E depois de vestidos, devemos revestir-nos “como eleitos de Deus, santos e amados, de coração compassivo, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade”, suportando-nos e perdoando-nos uns aos outros, da mesma maneira como Ele nos perdoou. E como se não bastasse, há ainda uma espécie de sobretudo: “Revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição” (Cl.3:12-15).

A gente se cinge (roupa de baixo), se veste, se reveste e no final, ainda coloca o sobretudo do amor. Ele é o retoque final, sem o qual a indumentária não estaria completa.

Interessante notar que a palavra grega traduzia por “vínculo” é “syndesmos”, que poderia ser igualmente traduzida por “costura”. Sem amor, a bainha se desfaz, os botões caem, a manga solta. Mesmo vestidos, estaríamos potencialmente nus. 

Numa visão genuinamente cristã, a nudez do outro deveria nos incomodar não pela reação que nos provoca, mas pela exposição a que é submetido. É a honra do outro que está em jogo e não a nossa dificuldade em lidar com nossas pulsões. 

Jesus diz que um dos critérios pelos quais seríamos julgados por Deus é a maneira como nos portamos ante a nudez do próximo: "Estava nu e me vestistes." Cobrir a nudez é preservar a dignidade do outro. Expô-la é o mesmo que desonrá-lo, como fez Cão, filho de Noé ao flagrá-lo nu e embriagado.

Resumo: nada há de errado com a nudez em si, e sim como a maneira como nos posicionamos ante à fragilidade humana nela representada. Que a nudez do próximo seja um lembrete de que por dentro de todas as camadas de roupas que usamos há um ser tão frágil e carente quanto ele. 

3 comentários:

  1. Anônimo7:40 PM

    sinceramente... texto desnecessário .

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  2. Anônimo11:53 PM

    Depois que a malícia entrou no homem ... a nudez teve que ser coberta!

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  3. Ótimo texto meu amigo! Show!

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