Por Hermes C. Fernandes
Viver numa cidade cercada de montanhas tem suas vantagens e
desvantagens. A exuberância de nossa topografia tem seu lado negativo. Se
quisermos assistir a um belo nascer do sol, teremos que buscar uma praia, de
onde possamos vê-lo se insinuando no horizonte até rasgar o céu com seus raios.
Caso contrário, as mesmas montanhas que embelezam nossos cartões postais
proverão uma muralha que retardará o aparecimento do astro rei.
As Escrituras nos garantem que o Sol da Justiça há de despontar
no horizonte da história, e que as trevas que hoje parecem prevalecer serão finalmente
dissipadas.
Os cristãos, de modo geral, creem nisso. O bem vencerá. O
amor prevalecerá. Todavia, uma parte significativa deles acha que nada haja a
fazer para contribuir neste processo, senão anunciar a Cristo como o Salvador. Por
isso, adota uma postura passiva, negando-se o papel de agentes do reino de Deus
cuja missão é a transformação da sociedade, preparando-a para o segundo advento
de Jesus.
E que tipo de transformação deve preceder a parousia?[1] Seria tão-somente no âmbito da espiritualidade? Estaríamos falando do que se convencionou chamar “avivamento espiritual”? Uma espécie de conversão em massa? Ou seria uma transformação que abrangeria as estruturas sociais, políticas e econômicas do mundo?
Que haja algo errado, todos admitimos. Resta saber o que se pode fazer para corrigi-lo. Não basta remediar, tratar os sintomas, sem questionar as estruturas injustas que os produzem. Como pisar num lugar como o lixão de Jardim Gramacho, deparar-se com seres humanos vivendo literalmente do lixo, e não questionar o que estaria por trás disso? Seria muito fácil emitir um juízo moral, atribuindo a miséria de nossos semelhantes ao pecado, à falha de caráter, à indisposição para o trabalho. Isso, certamente, pouparia os verdadeiros responsáveis pela penúria que atinge boa faixa da população mundial. Também é relativamente fácil esconder-se atrás de um sistema que incentiva a meritocracia, que justifica a concentração de renda, enquanto desdenha da miséria alheia. Como ceder à misericórdia em nossos corações enquanto nossas mentes teimam em justificar o sistema responsável por produzir esses indesejáveis efeitos colaterais? Eis a nossa esquizofrenia!
Referindo-se à vinda gloriosa de Jesus, Pedro diz que “convém que o céu o contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos
quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio”
(At.3:21). Portanto, não estamos defendendo coisa estranha ao evangelho, mas
aquilo que tem sido crido e esperado desde os primórdios, mesmo antes do
primeiro advento. Nenhum dos profetas se furtou de proclamar acerca deste tão
desejado tempo em que todas as coisas serão plenamente restauradas. E não só
isso! Eles conclamaram os homens a arregaçarem as mangas e trabalharem desde
já, preparando o caminho do Senhor.
Veja, por exemplo, o que diz Isaías:
“Eis a
voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor; endireitai no ermo
uma estrada para o nosso Deus. Todo vale será levantado, e será abatido todo
monte e todo outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é
escabroso, aplanado. A glória do Senhor se revelará; e toda a carne juntamente
a verá; pois a boca do Senhor o disse.”
Isaías 40:3-5
O trabalho para o qual fomos arregimentados consiste em aplainar o
terreno, para que, quando o Sol da Justiça despontar, toda a humanidade possa
vê-lo ao mesmo tempo. Para nivelar o
terreno, montanhas terão que ser abatidas, e vales aterrados. Não se trata de
algo simples de se fazer, mas de um desafio que demandará um esforço hercúleo
por parte de todos os envolvidos.
João Batista, precursor de Jesus em Seu primeiro advento, percebeu
que este processo de nivelamento passava por ele também. Ninguém está imune.
Por isso, ao ser indagado por seus discípulos acerca do crescimento meteórico
do ministério de Jesus que coincidia com a redução de sua própria popularidade,
João respondeu: “É necessário que ele
cresça e que eu diminua” (Jo.3:30). Neste
caso, Jesus era o vale que precisava ser exaltado, enquanto João era a montanha
que teria que ser abatida.
A igreja, como precursora de Jesus em Seu segundo advento, deve
estar imbuída do mesmo espírito. Somos, por assim dizer, uma amostra grátis do
que Deus almeja fazer no mundo. Se não funcionar conosco, que garantia teremos
de que funcionará lá fora?
Por isso, Paulo recomenda incisivamente que no contexto do Corpo
de Cristo, os membros que pareçam mais fracos sejam tidos por necessários, e os
que são reputados como menos honrosos, sejam ainda mais honrados. Porém, “os que em nós são mais nobres não têm
necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que
tinha falta dela; para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os
membros igual cuidado uns dos outros” (1 Co.12:22-25).
Antes de ser vista no mundo, a glória do Senhor deve ser revelada
em nós. Para isso, porém, o terreno precisa ser aplainado.
O que isso significaria na prática?
Tiago, irmão do Senhor, nos responde a esta importante pergunta:
“Glorie-se
o irmão de condição humilde na sua alta posição. O rico, porém, glorie-se na
sua insignificância, porque ele passará como a flor da erva. Pois o sol sai com
seu ardente calor, e faz secar a erva; a sua flor cai, e a sua formosura
perece. Assim murchará também o rico em seus caminhos.” Tiago
1:9-11
O que provoca desnivelamento maior entre os homens do que a injustiça
social responsável pela divisão de classes? O que hoje chamamos de desigualdade, os profetas chamavam de iniquidade. Poucos com tanto, tantos com tão pouco.
Se isso não puder ser corrigido no âmbito da igreja, certamente não o será no mundo.
Logo no início, quando o Espírito desceu sobre os discípulos
reunidos no cenáculo, o maior milagre ocorrido não foi o falar em línguas, como
defendem alguns, mas sim o fato de se tornarem um só coração, de modo que
ninguém dizia que coisa alguma que possuía era sua, mas todos tinham tudo em
comum (At.4:32). Já não havia divisão de classes nesta sociedade embrionária
chamada igreja. O mundo agora tinha um exemplo palpável de como as coisas
deveriam funcionar no reino de Deus.
Porém, aos poucos, novas montanhas se elevaram, graças ao atrito
das 'placas tectônicas sociais'. Entre uma montanha e outra, novos vales se
abriram. O terreno voltou a ficar acidentado. O que é uma montanha senão o
acúmulo de materiais ao longo das eras? E o que é um vale senão uma ruptura no
terreno, fazendo separação entre os montes?
A fé, que segundo Paulo opera pelo amor (Gl.5:6), deve ser capaz de fazer
mover as montanhas, precipitando-as e dissolvendo-as no mar. Na simbologia
bíblica, o mar representa os povos em geral. Em outras palavras, o que foi acumulado, deveria ser usado no bem comum.
Deus jamais endossou a concentração de bens (Is.5:8). Se nossa fé não for
capaz de reverter este fluxo, ela de nada serve, não passando de uma fé espetaculosa,
sem compromisso com a realidade. Esta,
porém, tem sido a tendência da fé quando divorciada do amor (Leia 1 Co.13:1-3).
Voltando a Tiago, verificamos que ao humilde, ao pobre, é-lhe dado
o direito de se gloriar, pois o mesmo desfruta de uma alta posição aos olhos de
Deus. Repare: Deus faz ao pobre uma concessão que não faz a ninguém. Apesar de não ter filhos prediletos ou favoritos, Deus considera o pobre
Sua prioridade número um. Já o rico, mesmo amado por Deus, deve reconhecer sua
insignificância, pois ocupa o último lugar na agenda do reino de Deus. Não significa que Deus o despreze. Porém, antes de voltar Sua atenção para Zaqueu, Ele Se voltará para Bartimeu.
Quem, afinal, seriam o rico e o pobre na opinião de Deus?
Rico é qualquer um que goza de privilégios negados aos
demais. Pobre é qualquer um que tem seus direitos vilipendiados. É completa perda de tempo tentar espiritualizar isso. E a
prova disso é o comentário feito por Tiago no capítulo dois de sua epístola?
“Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não
façam diferença entre as pessoas, tratando-as com favoritismo. Suponham que na
reunião de vocês entre um homem com anel de ouro e roupas finas, e também entre
um homem pobre com roupas velhas e sujas. Se vocês derem atenção especial ao
homem que está vestido com roupas finas e disserem: "Aqui está um lugar
apropriado para o senhor", mas disserem ao pobre: "Você, fique de pé
ali", ou: "Sente-se no chão, junto ao estrado onde ponho os meus
pés", não estarão fazendo discriminação, fazendo julgamentos com critérios
errados? Ouçam, meus amados irmãos: não escolheu Deus os que são pobres aos
olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que ele prometeu aos
que o amam? Mas vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem
vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais? Não são eles que
difamam o bom nome que sobre vocês foi invocado?”
Tiago 2:1-7
Se Tiago estivesse se referindo a um tipo de riqueza e de pobreza estritamente
espirituais, não faria sentido o exemplo usado. Ele fala de anel de ouro, roupas
elegantes, em oposição a roupas velhas e
sujas. Não há nada de espiritual aí. Ou há? Bem, o fato de valorizamos
tanto a aparência e a posição social de alguém revela nosso estado espiritual
lastimável. No fundo, tudo é espiritual. Porém, não se pode negar os
desdobramentos sociais de nossa espiritualidade.
Se importamos do mundo a visão pela qual diferenciamos as pessoas
de acordo com suas classes sociais, deixamos de ser agentes de transformação e
nos tornamos em meras engrenagens deste sistema reprodutor de injustiças.
Por que tratamos o rico de maneira gentil e o pobre de maneira
rude? O homem com anel de ouro em seu dedo representa aquilo que gostaríamos de
ser. Nós o invejamos. Quem sabe, se o adularmos, ele nos ajudará a ascender
socialmente? Já a presença do pobre nos causa mal-estar. Sua existência desafia
nossos escrúpulos. Sua presença nos intimida. O que ele poderia nos oferecer?
Provavelmente nos pedirá alguma ajuda. Por isso, é melhor mantê-lo numa
distância segura.
Só existem vales, porque existem montanhas. Não haveria pobres, se
não houvesse ricos. Não haveria miséria, se não houvesse concentração de bens.
Tiago denuncia isso enfaticamente. Sem titubear, ele se
dirige aos ricos de seu tempo e os conclama ao arrependimento:
“E agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos
sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas
pela traça. O vosso ouro e a vossa prata
estão enferrujados; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as
vossas carnes como fogo. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o salário que fraudulentamente retivestes aos
trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os clamores dos ceifeiros
têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os
vossos corações no dia da matança. Condenastes
e matastes o justo; ele não vos resistiu.” Tiago
5:1-6
Ninguém chega ao ponto de se tornar rico, sem ter explorado o trabalho do pobre, do necessitado, e sem ter se valido de um sistema calibrado para beneficiar a uns em detrimento de outros. Salários foram fraudulentamente retidos.
Direitos foram solapados. A justiça pervertida. Tudo em nome do conforto, da
segurança, da estabilidade.
Porém, Deus não faz vista grossa a tudo isso. Segundo Tiago, “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos
humildes” (Tg.4:6). E alguém duvida que o soberbo em questão seja uma
referência aos que se valem daquilo que possuem?
Em breve, tudo isso se reverterá. Na medida em que o genuíno
evangelho for anunciado aos homens, o fenômeno vivido pelos cristãos primitivos
se repetirá. Os ricos expandirão suas consciências e se darão conta de que “a
vida do homem não consiste na abundância das coisas que possui” (Lc.12:15), de
modo que não se negarão a repartir seus haveres com os que nada têm. Não se
trata de filantropia, mas de justiça.
Na profecia de Isaías, quando os vales fossem aterrados e as montanhas achatadas, o caminho seria endireitado. Numa topografia pontilhada de montanhas, as estradas costumam ser sinuosas. Para quê servem as curvas, afinal, senão para contornar os obstáculos impostos pelas montanhas? Sem elas, o que é torto se endireitaria. E repare que uma sociedade dividida em classes não é um problema só para quem está na base, tendo que contornar os obstáculos impostos pelos que detém o poder político e econômico. A presença dos vales demanda a construção de pontes que interliguem as montanhas. Portanto, é dispendioso a todos, tanto para os que estão na base da pirâmide social, quanto para os que estão no topo. As pontes servem para que não seja necessário voltar à base e percorrer estradas sinuosas. Quem detém o poder não precisa se rebaixar. Em vez disso, cria mecanismo para burlar as regras válidas apenas para os que estão lá embaixo. Porém, pontes não custam barato. Políticos são corrompidos. Pautas das redações de jornais são encomendadas. Brechas na lei são exploradas à exaustão por juristas que se deixam alugar. Candidatos são forjados. Campanhas milionárias são patrocinadas. Seguranças armados são contratados. Carros são blindados. Mansões cercadas de câmeras e cercas eletrificadas. Ou como disse Tiago, estão entesourando para o seu próprio fim. Nada disso seria necessário se os ricos deste mundo não fossem tão gananciosos.
Facilitar a vida do pobre é, por assim dizer, viabilizar a própria existência sobre bases firmes, sem medo do inusitado, sem receio de perder tudo de uma hora para outra, sem ter que viver escatelado, prisioneiro de seu próprio sucesso.
Compete à igreja conclamar o mundo à tomada de consciência, num pacto entre todas as camadas sociais, onde ninguém se verá lesado em seus direitos, nem refém de seus interesses.
[1]
Termo grego usado no NT para designar a manifestação visível de Cristo no
último dia.
"...A burguesia não tem charme nem é discreta
ResponderExcluirCom suas perucas de cabelos de boneca
A burguesia quer ser sócia do Country
A burguesia quer ir a New York fazer compras...A burguesia tá acabando com a Barra
Afunda barcos cheios de crianças
E dormem tranqüilos
E dormem tranqüilos
Os guardanapos estão sempre limpos
As empregadas, uniformizadas
São caboclos querendo ser ingleses
São caboclos querendo ser ingleses...A burguesia não repara na dor
Da vendedora de chicletes
A burguesia só olha pra si
A burguesia só olha pra si
A burguesia é a direita, é a guerra...As pessoas vão ver que estão sendo roubadas
Vai haver uma revolução
Ao contrário da de 64
O Brasil é medroso
Vamos pegar o dinheiro roubado da burguesia
Vamos pra rua
Vamos pra rua...Vamos acabar com a burguesia
Vamos dinamitar a burguesia
Vamos pôr a burguesia na cadeia
Numa fazenda de trabalhos forçados
Eu sou burguês, mas eu sou artista
Estou do lado do povo, do povo...Porcos num chiqueiro
São mais dignos que um burguês
Mas também existe o bom burguês
Que vive do seu trabalho honestamente
Mas este quer construir um país
E não abandoná-lo com uma pasta de dólares
O bom burguês é como o operário
É o médico que cobra menos pra quem não tem
E se interessa por seu povo
Em seres humanos vivendo como bichos
Tentando te enforcar na janela do carro
No sinal, no sinal
No sinal, no sinal
A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia" Cazuza