Por Hermes C. Fernandes
Paulo já havia sido avisado sobre a perseguição que sofreria
em Jerusalém. Teimoso e obstinado, não deu ouvidos a ninguém. Afinal, como ele
mesmo dissera, não tinha sua vida por preciosa, desde que cumprisse o propósito
de sua existência. Nem mesmo Ágabo, um conceituado profeta, conseguiu
dissuadi-lo com sua profecia encenada. O apóstolo estava disposto não só a ser
preso por amor a Cristo, mas também a morrer pela causa do evangelho. Chegando a
Jerusalém, teve uma baita surpresa. Sua fama o havia precedido. Tanto que Tiago
convocou os anciãos para recepciona-lo e ouvir dele um relatório acerca dos
frutos do seu ministério entre os gentios. Tal recepção desarmou Paulo. Quando
ele poderia imaginar que seria recebido com tantas pompas? Após ouvi-lo atentamente,
Tiago e os demais nada quiseram acrescentar. O evangelho pregado por Paulo
entre os gentios parecia estar na medida certa, passando pelo “controle de
qualidade” dos apóstolos. Porém, havia um pequeno problema... Alguém teria
espalhado a notícia de Paulo ensinava os judeus a se apostatarem de Moisés,
deixando de cumprir os ritos prescritos na Lei. Só havia uma maneira de
desfazer este “mal entendido”, dando uma “cala-boca” em seus difamadores: Paulo
teria que se fazer um voto de raspar a cabeça e apresentar-se no templo. Para
não criar mais constrangimento aos apóstolos, ele nem sequer se deu o trabalho
de argumentar. Juntou-se a outros quatro e passou a navalha na cabeça.
Estou certo de que este episódio foi um dos poucos dos quais
Paulo se arrependeu pelo resto de sua vida. O mesmo Paulo que parecia disposto
a ser decapitado por amor a Cristo, agora se deixava tosquiar para fazer média
com os judeus religiosos de Jerusalém. Resultado: de nada adiantou a presepada.
Tão logo os judeus o flagraram no templo, trataram de acusa-lo perante todos e,
por pouco, não lhe tiraram a vida. Não fosse os soldados romanos intervirem,
Paulo teria sido espancado até a morte (At.21:10-32).
O que mais me chama atenção na passagem resumida acima é o
fato de Paulo ter sido acusado de apostatar-se de Moisés. Seria esta uma
acusação justa? Estou convencido que sim. Num certo sentido, o Evangelho é uma
apostasia. Do grego antigo απόστασις (apóstasis), apostasia significa “estar longe de” e tem o sentido de um afastamento definitivo e deliberado de alguma crença ou doutrina.
Por que Paulo e os demais seguidores de Jesus teriam se apostatado
de Moisés?
João, autor do quarto evangelho, oferece-nos uma preciosa pista:
“Pois todos nós recebemos da sua
plenitude, e graça sobre graça. Porque a lei foi dada por meio de Moisés; a
graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.” João 1:16-17
No texto acima, percebemos que Moisés e Jesus têm propostas
diferentes e antagônicas. Um trouxe a lei, o outro, a graça e a verdade. A Lei
serviu de base para a construção de um sistema que se apoia no desempenho
humano. Trata-se, portanto, de um sistema baseado em méritos, do tipo, “faça isso
e viverás”. Já a graça revelada em Jesus desmantela este sistema. Alguns defendem que a Lei seja o fundamento da
Graça. Portanto, o Reino de Deus seria um sistema do tipo “graça sobre lei”. Outros
defendem que o Reino de Deus seja um sistema do tipo “lei sobre graça”, isto é,
a graça nos salva do pecado e nos coloca no colo da lei. Portanto, é-se
introduzido no reino pela graça, porém, manter-se lá vai depender de nosso
desempenho em guardar a lei. Foi neste erro que incorreram os gálatas. Eles
começaram no Espírito (100% dependentes da graça) e terminaram na carne
(dependentes do desempenho). O que lemos no capítulo introdutório do evangelho
de João é que o Reino de Deus é “graça sobre graça”. A graça é o fundamento da
própria graça. Em outras palavras, é graça do começo ao fim, não restando lugar
algum para o mérito humano. Cristo é o autor e consumador da nossa fé, o Alfa e
o Ômega, ou nas célebres palavras de Paulo, “o que começou a boa obra” e vai terminá-la
no prazo estabelecido (Fp.1:6). Por isso, ao nos render à graça, apostatamos de
Moisés. Não há como reconciliar os dois sistemas, o meritocrático e o
karistocrático. São água e óleo. Temperaturas diferentes. Um é quente. O outro,
frio. Tentar misturá-los é amornar o evangelho. E foi esta a razão de Cristo
rejeitar a igreja de Laodiceia.
Os que estão assentados nas regiões celestiais em Cristo Jesus
(Ef.2:6), jamais deveriam desejar ocupar a “cadeira
de Moisés”, ocupada pelos escribas e fariseus na época de Jesus
(Mt.23:1-4). Por maior que tenha sido a glória da antiga aliança, não pode ser
comparada à glória da novíssima e definitiva aliança celebrada na cruz. A
glória resplandecente no rosto de Moisés quando este descia do monte Sinai é
ofuscada pela glória do amor manifesto na cruz no cume do Gólgota. Paulo diz
que a glória da lei era desvanecente.
Por isso, Moisés cobria o rosto enquanto descia do monte. Ele percebeu
que a cada passo que dava, o esplendor diminuía. Porém, “não somos como Moisés”, afirma o apóstolo “apóstata”. Diferentemente
dele, não cobrimos o rosto, pois somos conduzidos
“de glória em glória” até a glória derradeira (2 Co.3:13-18). Podemos
comparar a diferença entre a glória da lei e a glória do evangelho à diferença
que há entre o brilho da lua e o brilho do sol. Numa noite, a lua aparece
crescente, na outra, cheia, e em seguida, minguante. Portanto, sua glória varia
de intensidade de acordo com a época. Porém, o sol mantém a mesma glória em
todo o tempo. Se a lua teima em continuar no céu durante o dia, seu esplendor é
ofuscado pela presença majestosa do sol. Conhecer a graça para depois retroceder
à lei, é como provocar um eclipse, onde a lua comete o atrevimento de querer
ofuscar o sol. Esta, porém, não tem cacife para isso, pois não possui brilho
próprio. Seu esplendor depende diretamente da luz do astro rei. Tal se dá com a
lei. Qualquer glória que tenha, depende da graça. Se ela passa a sua frente, o
dia escurece. Não é a graça que está sustentada na lei, mas a lei que está
sustentada pela graça.
Recentemente, recebi um comentário maldoso em minha timeline no
facebook, acusando-me de destruir o que havia sido construído pela geração que
me antecedeu. Ora, não confunda a remoção dos andaimes usados na construção do
edifício com a demolição do mesmo. A lei serviu-nos de andaime. Tão logo o
Verbo armou Sua tenda entre nós, os andaimes tiveram que ser removidos. No
edifício do Reino de Deus, a graça serve de fundamento, paredes e teto. Tudo
mais não passa de andaime.
- Mas não dá tudo no mesmo? – alguns poderiam imaginar. A resposta
é: não! Paulo diz que a Lei, representada pelo monte Sinai, produz escravos, enquanto
a graça produz filhos (Gl.4:24-25). Ainda que ambos os sistemas produzam gente
fiel até a medula, a motivação por trás desta fidelidade será diferente. A
fidelidade de um repousa sobre a expectativa da recompensa, enquanto a
fidelidade do outro repousa sobre a gratidão.
O escritor de Hebreus traça uma interessante comparação entre
Jesus e Moisés. Ele dá testemunho de que Moisés foi fiel “em toda a casa de Deus”, porém, “como servo”, enquanto Cristo é fiel como Filho “sobre a casa de Deus” (Hb.3:1-6). Por
isso, Ele é digno de muito maior honra do que Moisés. A fidelidade do servo é
diferente da fidelidade do filho, independendo de circunstâncias, recompensas,
resultados, etc.
O problema não é a lei em si, mas o que ela produz em nós. Em
outras palavras, o problema somos nós.
Quem quer que queira seguir a Cristo tem que renunciar a pretensão de
alcançar a perfeição pela via do cumprimento da lei. É a isso que Jesus chama
de renunciar a si mesmo.
A graça nos faz depender inteiramente do Espírito, e não mais de
nossa performance. Ademais, ao
desbancar nossa arrogância e presunção, a graça nos torna pessoas mais
compassivas e tolerantes com os erros alheios. O rigor da lei cede à gentileza
da graça.
Tal se deu na “saia justa” que os escribas e fariseus tentaram dar
em Jesus no episódio em que Lhe trouxeram uma mulher flagrada na cama com um
homem que não era o dela. Descaradamente, aqueles religiosos soberbos
disseram: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés
nos ordena na lei que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?” (Jo.8:3-7).
Eram aqueles mesmos religiosos que,
segundo Jesus, ocupavam a cadeira de Moisés. O que eles desconheciam era que o
mesmo Moisés os acusava diante de Deus (Jo. 5:45-47). Não fomos chamados a ser
promotores de justiça na corte celestial, mas a ocuparmos com Cristo a cadeira
de advogado de pecadores. E foi este o papel que Jesus desempenhou naquele
momento, saindo em defesa de uma adúltera, tratando-a como faz um cavalheiro, não um juiz.
Todos sabem o que diz Moisés, porém,
poucos dão ouvidos ao que dizem os lábios de Jesus. A que voz estamos dando eco?
Basta verificarmos se nossas mãos ainda carregam pedras; se nossos dedos ainda
estão apontados para os pecadores ou se nossas mãos estão estendidas para
socorrê-los da justiça dos santarrões de plantão.
Moisés, já tem que pregue em cada esquina, como concluíram os
discípulos na primeira assembleia geral da igreja (At. 15:19-21). Nossa missão é pregar o evangelho, a boa nova do
Reino de Deus.
Eu apostatei de Moisés, e você? Vai querer fazer média com os
santarrões? Vai lá... raspa a cabeça... quem sabe eles te dão um desconto.
O fim da Lei é Cristo para justiça de todos aquele que crê (Rom. 10:4).
ResponderExcluirCristo supera , está acima de tudo que já houve em matéria de lei moralista , regras ou ética humana. Um exemplo é o caso da Lei no VT :"não adultéras" , e Jesus disse:" Qualquer um que olhar com intenção impura(malícia) para uma mulher , já adulterou em seu coração" (Mt.5:28.); em relação ao " dente por dente e olho por olho" do VT , Jesus disse : "Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mt. 5:44) Podemos averiguar diante disso que Cristo é a Perfeição , algo altamente refinado , puro . Somente os nascidos do Espíritos e que estão ligados ao Senhor Jesus , a Videira Verdadeira, podem colocar seus ensinamentos em prática. Se formos submissos ao Seu Espírito , produziremos frutos espirituais da Graça: caridade , humildade , mansidão paz , alegria , bondade , longanimidade , etc...Como Ele mesmo disse: Sem Mim nada podereis fazer! Dependemos inteiramente Dele!
Correção nascidos do Espírito
ResponderExcluiruma coisa é apostatar da lei, outra é apostatar do próprio evangelho de cristo, e por conseguinte pregar outro evangelho, uma coisa interessante é que para alguns a única coisa boa que há na lei é o dizimo, han o dizimo veio antes da lei. o que havia antes da lei? graça é que não era.
ResponderExcluirComo de costume, muito bom. Parabéns e obrigado por me fazer pensar. Que a Graça de Cristo lhe conduza os atos.
ResponderExcluirA nova vida em Cristo, cria uma possibilidade de guardar a lei, porque Cristo vive em mim, e não sou mais eu que vive. Digo a lei do amor ao próximo. Religioso não ama porque a letra mata, os caras estão mortos e querem matar tudo e esquece que o Espirito vivifica.
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