domingo, fevereiro 01, 2015

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A sublime semente da subversão



Por Hermes C. Fernandes

Como não se surpreender com Jesus? Até a maneira como Ele revela o modus operandi do Seu reino nos causa admiração. Pena que quase dois mil anos depois, os que se identificam como Seus discípulos parecem não terem entendido a natureza do reino de Deus.

De um lado, estão os que acreditam que o reino é um evento futuro, que teve que ser adiado quando os patrícios de Jesus recusaram Sua oferta. Do outro lado, estão os que creem que o reino deva se estabelecido na história através de mecanismos legais. Estes são, geralmente, chamados de teonomistas. Acreditam que por força da lei, o pecado será restringido e a justiça do reino será estabelecida na terra. Bastaria que o decálogo fosse a base da constituição de todas as nações e, pronto, o mundo seria transformado. Como esperar que homens inconversos produzam leis justas? Ou ainda: como esperar que leis justas convertam homens maus? A restauração do mundo deve começar pelo ambiente do coração humano, onde Deus prometeu gravar as Suas leis (Hb.8:10).

Entre um grupo e outro, estão os que perceberam o caráter subversivo do reino de Deus.  Ele não vem por meios legais, mas, em certo sentido, por meios considerados marginais.  Ele não virá de maneira espalhafatosa como fantasiam alguns, como no filme Independence Day de Spielberg. Tampouco se manifestará através de canetadas nos palácios de governo. Mas de maneira sorrateira, discreta, quase imperceptível, ele vai se infiltrando no tecido social, transformando mentes e corações, levando cativos todos os pensamentos à obediência de Cristo. 

Paulo seguiu à risca esta cartilha. Jamais o veremos promovendo o boicote de instituições contrárias à justiça do reino de Deus. Mesmo vivendo numa sociedade escravagista, poligâmica, onde a pedofilia era incentivada pelo Estado, nem ele ou algum outro apóstolo foi para as ruas em protesto contra tais práticas. Todavia, em cada epístola, Paulo deixou cair sementes que eventualmente eclodiriam. Ao dizer que em Cristo não há mais macho ou fêmea, escravo ou livre, grego ou judeu, o apóstolo enterrava minas no terreno, que em algum momento explodiriam e derrubariam as fortalezas da discriminação e do preconceito. Demorou séculos até que uma dessas minas explodiu e fez ruir o regime escravocrata no mundo. Mais tarde, outra dessas minas explodiria fazendo com que a mulher conquistasse seu espaço no mercado de trabalho, bem como seu direito a voto. Creio que ainda haja minas que a qualquer momento explodirão e que nos farão lembrar que não é por força, nem por violência, mas exclusivamente pela ação do Espírito Santo (Zc.4:6), convencendo o homem do pecado, da justiça e do juízo (Jo.16:8).

As parábolas de Jesus tinham como objetivo explicar os mecanismos subversivos usados na instalação do reino de Deus entre os homens. Uma das mais significantes é conhecida como a parábola do semeador. Prefiro chamá-la de “a parábola do semeador pródigo”.

O semeador em questão é ninguém menos que o próprio Cristo. Porém, considerando o fato de sermos o Seu Corpo Místico, podemos identificá-lo igualmente com cada cristão infiltrado nas engrenagens deste mundo.

Nosso principal papel não é alardear, mas apenas semear. Nada mais subversivo que isso. Sementes não chamam a atenção para si. Porém, têm um potencial infinito. Cada semente poderá produzir novas plantas que por sua vez produzirão inúmeros frutos, que por sua vez produzirão ainda mais sementes e o ciclo se retroalimentará ad infinitum. Pode-se contar quantas sementes há num fruto, mas não se pode contar quantos frutos produzirá uma única semente.

Cada agente do reino é um semeador de sonhos. Por onde ele passa, sempre fica um rastro de sementes que parecem ter caído acidentalmente, mas que, no fundo, foram deixadas propositadamente.

Jesus diz que “uma parte da semente caiu à beira do caminho, e vieram as aves, e comeram-na”(Mt.13:4). Na explicação particular que dá aos discípulos, “o que foi semeado à beira do caminho” é aquele que ouvindo “a palavra do reino, e não a entendendo, vem o maligno, e arrebata o que foi semeado no seu coração” (v.19).

É, no mínimo, curioso que Jesus tenha começado Sua exposição falando sobre os que vivem à beira do caminho. Estes são os excluídos e marginalizados pela sociedade. São os que comem das migalhas que caem da mesa dos poderosos. Quem os colocou nesta condição? Quem os empurrou para a margem? Ainda que esta parte da semente não tenha resultado em colheita, não foi em vão que Jesus a destinou justamente aos da beira do caminho. E se a semente não vingou, não foi por culpa deles. Foi o maligno que arrebatou o que fora semeado em seu coração. O fato de viverem à margem, tornou-os vulneráveis à atuação dessas aves de rapina. Porém, para toda regra há exceções. O mendigo Bartimeu é uma delas. Embora cego, viu o que muitos não conseguiram ver e não hesitou em clamar pelo Filho de Davi, e ao ser atendido, recobrou a visão. Qual seria o instrumento de que o maligno se valeria para devorar as sementes lançadas no coração dos que estão à beira do caminho? Estou cada vez mais convencido de que seja todo tipo de preconceito, semelhante ao que levou os discípulos a pedirem que Bartimeu se calasse, alegando que estaria incomodando o Mestre. É lamentável notar que os próprios cristãos têm se prestado a este papel, entrincheirando-se contra alguns segmentos em nome da moral e dos bons costumes. Se esquecem de que quem precisa de médico não são os sãos. A ordem de Jesus aos Seus discípulos foi "tragam-no a mim!" Portanto, devemos tirá-los das margens e trazê-los para o nosso meio, onde receberão amor, carinho, respeito, e terão seus clamores atendidos por Jesus. 

Como aquele semeador, devemos ser pródigos com as sementes que nos foram confiadas. Não há qualquer razão para economizar. Sempre haverá quem se beneficie delas, principalmente entre os considerados párias da sociedade. Todavia, enquanto semeamos, trabalhemos para removê-las da indigência. Partilhemos com elas o nosso pão. Promovamos ações que melhorem suas condições de vida. Eduquemos seus filhos. Acolhamos os desterrados. Defendamos os direitos das minorias. Se lograrmos removê-las da beira do caminho, provavelmente haverá maior chance da semente vingar.

Na sequência da parábola, Jesus diz que “outra parte caiu em pedregais, onde não havia terra bastante, e logo nasceu, porque não tinha terra funda; mas, vindo o sol, queimou-se, e secou-se, porque não tinha raiz” (vv.5-6). Na explicação subsequente, Jesus diz que “o que foi semeado em terreno pedregoso é o que ouve a palavra, e a recebe imediatamente, com alegria. Mas não tem raiz em si mesmo, antes é de pouca duração. Chegada a angústia e a perseguição por causa da palavra, logo a abandona” (vv.20-21).

Eis a razão porque cresce assustadoramente o número de desigrejados. O coração de muitos tem estado endurecido, de modo que a semente, ainda que germine, não consegue lançar raízes. O solo não tem profundidade. O que estaria por trás deste estado de petrificação dos corações? Talvez, parte do problema se deva à decepção que muitos têm tido com a igreja. Foi-se o tempo em que o solo dos corações era virgem, por isso, sempre receptivo à Palavra. Mas hoje, dificilmente encontramos alguém que já não tenha tido alguma experiência com a igreja. O solo foi tão explorado que se tornou infértil e duro. Não basta, portanto, lançar a semente. O solo precisa ser revirado, afofado, irrigado e fertilizado, para que a semente encontre o ambiente propício para germinar. Alguns necessitam passar por uma desintoxicação eclesiástica para voltarem a acreditar. Se a semente não se aprofundar no solo, ficará exposta ao sol e fatalmente secará. Apesar disso, ela não perde sua validade. Li, recentemente, que cientistas teriam semeado uma semente com seiscentos anos, e ela, surpreendentemente eclodiu.

Compreendo perfeitamente o drama dos desigrejados. Porém, devo salientar a necessidade que todos temos de congregar, de criar raízes, de construir relacionamentos fortes, de nos alimentar espiritualmente. Se o próprio Deus não desistiu da igreja, por que nós desistiríamos? Não me refiro à instituição, mas à comunhão dos santos. Não deixe que a alegria semeada em seu coração seja suplantada pela decepção com os homens.

A terceira parte das sementes “caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na” (v.7).  Segundo Jesus, “o que foi semeado entre espinhos é o que ouve a palavra, mas as preocupações deste mundo e a sedução das riquezas sufocam a palavra, e ela fica infrutífera” (v.22).

Pergunto: quem andou semeando espinhos por aí? Estes espinhos não podem ter surgido do nada. Estou convencido de que em nossos dias, ninguém tem cultivado tantos espinhos no coração das pessoas do que os adeptos da teologia da prosperidade. Cobiça, inveja, avareza, são algumas das manifestações destes cardos que sufocam a boa semente do reino de Deus. Infelizmente, há uma enorme clientela para este engodo que se faz passar por evangelho. Esquece-se que a marca registrada de um discípulo de Jesus não é a prosperidade, mas a generosidade. A proposta do reino nada tem a ver com concentração de riquezas, e sim com a sua justa distribuição. Urge, portanto, denunciar e remover tais espinhos para que semente seja arejada e frutifique.

A última parte das sementes “caiu em boa terra, e deu fruto: um a cem, outro a sessenta e outro a trinta” (v8). Este “é o que ouve a palavra e a compreende” (v.23). Sem que a palavra seja devidamente compreendida, por melhor que seja a qualidade da semente, não vingará. Há, aqui, um sinergismo que não podemos ignorar. Semente boa em solo ruim não pode resultar em colheita. Semente ruim em solo bom, idem.  Mas semente boa em solo bom produz além das expectativas.

Nosso papel, portanto, é de revirar o solo, adubá-lo, irrigá-lo, remover os espinhos, e garantir que a semente não se perca. 

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