Por Hermes C. Fernandes
O bilionário Elon Musk, dono da Tesla, gastou US$ 44 bilhões para comprar o Twitter. Esse valor é seis vezes mais do que seria necessário para acabar com a fome no mundo.
Existem 45 milhões de pessoas no mundo que não têm o que comer. Se antes da pandemia o número chegava a 27 milhões, a situação da fome se agravou ainda mais ao longo dos últimos anos, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas.
O que deveria valer mais, uma rede social que muitos consideram ultrapassado ou a vida de milhões de pessoas que morrem de fome?
O que você faria com sua fortuna se fosse um bilionário como Elon Musk?
Aliás, por que há bilionários? Por que há tantos recursos nas mãos de tão poucos enquanto tantos sequer têm o que comer?
Seria correto desejar ser um bilionário em um mundo como o nosso?
Como cristãos, não deveríamos almejar um mundo mais igualitário é justo?
Viver numa cidade cercada de montanhas tem suas vantagens e desvantagens. A exuberância de nossa topografia tem seu lado negativo. Se quisermos assistir a um belo nascer do sol, teremos que buscar uma praia, de onde possamos vê-lo se insinuando no horizonte até rasgar o céu com seus raios. Caso contrário, as mesmas montanhas que embelezam nossos cartões postais proverão uma muralha que retardará o aparecimento do astro rei.
As Escrituras nos garantem que o Sol da Justiça há de despontar no horizonte da história, e que as trevas que hoje parecem prevalecer serão finalmente dissipadas.
Os cristãos, de modo geral, creem nisso. O bem vencerá. O amor prevalecerá. Todavia, uma parte significativa deles acha que nada haja a fazer para contribuir neste processo, senão anunciar a Cristo como o Salvador. Por isso, adota uma postura passiva, negando-se o papel de agentes do reino de Deus cuja missão é a transformação da sociedade, preparando-a para o segundo advento de Jesus.
E que tipo de transformação deve preceder a parousia?[1] Seria tão-somente no âmbito da espiritualidade? Estaríamos falando do que se convencionou chamar “avivamento espiritual”? Uma espécie de conversão em massa? Ou seria uma transformação que abrangeria as estruturas sociais, políticas e econômicas do mundo?
Que haja algo errado, todos admitimos. Resta saber o que se pode fazer para corrigi-lo. Não basta remediar, tratar os sintomas, sem questionar as estruturas injustas que os produzem. Como pisar num lugar como o lixão de Jardim Gramacho, deparar-se com seres humanos vivendo literalmente do lixo, e não questionar o que estaria por trás disso? Seria muito fácil emitir um juízo moral, atribuindo a miséria de nossos semelhantes ao pecado, à falha de caráter, à indisposição para o trabalho. Isso, certamente, pouparia os verdadeiros responsáveis pela penúria que atinge boa faixa da população mundial. Também é relativamente fácil esconder-se atrás de um sistema que incentiva a meritocracia, que justifica a concentração de renda, enquanto desdenha da miséria alheia. Como ceder à misericórdia em nossos corações enquanto nossas mentes teimam em justificar o sistema responsável por produzir esses indesejáveis efeitos colaterais? Eis a nossa esquizofrenia!
Referindo-se à vinda gloriosa de Jesus, Pedro diz que “convém que o céu o contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio” (At.3:21). Portanto, não estamos defendendo coisa estranha ao evangelho, mas aquilo que tem sido crido e esperado desde os primórdios, mesmo antes do primeiro advento. Nenhum dos profetas se furtou de proclamar acerca deste tão desejado tempo em que todas as coisas serão plenamente restauradas. E não só isso! Eles conclamaram os homens a arregaçarem as mangas e trabalharem desde já, preparando o caminho do Senhor. Veja, por exemplo, o que diz Isaías:
“Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor; endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus. Todo vale será levantado, e será abatido todo monte e todo outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é escabroso, aplanado. A glória do Senhor se revelará; e toda a carne juntamente a verá; pois a boca do Senhor o disse.”Isaías 40:3-5
O trabalho para o qual fomos arregimentados consiste em aplainar o terreno, para que, quando o Sol da Justiça despontar, toda a humanidade possa vê-lo ao mesmo tempo. Para nivelar o terreno, montanhas terão que ser abatidas, e vales aterrados. Não se trata de algo simples de se fazer, mas de um desafio que demandará um esforço hercúleo por parte de todos os envolvidos.
João Batista, precursor de Jesus em Seu primeiro advento, percebeu que este processo de nivelamento passava por ele também. Ninguém está imune. Por isso, ao ser indagado por seus discípulos acerca do crescimento meteórico do ministério de Jesus que coincidia com a redução de sua própria popularidade, João respondeu: “É necessário que ele cresça e que eu diminua” (Jo.3:30). Neste caso, Jesus era o vale que precisava ser exaltado, enquanto João era a montanha que teria que ser abatida.
A igreja, como precursora de Jesus em Seu segundo advento, deve estar imbuída do mesmo espírito. Somos, por assim dizer, uma amostra grátis do que Deus almeja fazer no mundo. Se não funcionar conosco, que garantia teremos de que funcionará lá fora?
Por isso, Paulo recomenda incisivamente que no contexto do Corpo de Cristo, os membros que pareçam mais fracos sejam tidos por necessários, e os que são reputados como menos honrosos, sejam ainda mais honrados. Porém, “os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela; para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros” (1 Co.12:22-25).
Antes de ser vista no mundo, a glória do Senhor deve ser revelada em nós. Para isso, porém, o terreno precisa ser aplainado.
O que isso significaria na prática?
Tiago, irmão do Senhor, nos responde a esta importante pergunta:
“Glorie-se o irmão de condição humilde na sua alta posição. O rico, porém, glorie-se na sua insignificância, porque ele passará como a flor da erva. Pois o sol sai com seu ardente calor, e faz secar a erva; a sua flor cai, e a sua formosura perece. Assim murchará também o rico em seus caminhos.” Tiago 1:9-11
O que provoca desnivelamento maior entre os homens do que a injustiça social responsável pela divisão de classes? O que hoje chamamos de desigualdade, os profetas chamavam de iniquidade. Poucos com tanto, tantos com tão pouco. Se isso não puder ser corrigido no âmbito da igreja, certamente não o será no mundo.
Logo no início, quando o Espírito desceu sobre os discípulos reunidos no cenáculo, o maior milagre ocorrido não foi o falar em línguas, como defendem alguns, mas sim o fato de se tornarem um só coração, de modo que ninguém dizia que coisa alguma que possuía era sua, mas todos tinham tudo em comum (At.4:32). Já não havia divisão de classes nesta sociedade alternativa embrionária chamada igreja. O mundo agora tinha um exemplo palpável de como as coisas deveriam funcionar no reino de Deus.
Porém, aos poucos, novas montanhas se elevaram, graças ao atrito das 'placas tectônicas sociais'. Entre uma montanha e outra, novos vales se abriram. O terreno voltou a ficar acidentado. O que é uma montanha senão o acúmulo de materiais ao longo das eras? E o que é um vale senão uma ruptura no terreno, fazendo separação entre os montes?
A fé, que segundo Paulo opera pelo amor (Gl.5:6), deve ser capaz de fazer mover as montanhas, precipitando-as e dissolvendo-as no mar. Na simbologia bíblica, o mar representa os povos em geral. Em outras palavras, o que foi acumulado, deveria ser usado no bem comum.
Deus jamais endossou a concentração de bens (Is.5:8). Se nossa fé não for capaz de reverter este fluxo, ela de nada serve, não passando de uma fé espetaculosa, sem compromisso com a realidade. Esta, porém, tem sido a tendência da fé quando divorciada do amor (Leia 1 Co.13:1-3).
Voltando a Tiago, verificamos que ao humilde, ao pobre, é-lhe dado o direito de se gloriar, pois o mesmo desfruta de uma alta posição aos olhos de Deus. Repare: Deus faz ao pobre uma concessão que não faz a ninguém. Apesar de não ter filhos prediletos ou favoritos, Deus considera o pobre Sua prioridade número um. Já o rico, mesmo amado por Deus, deve reconhecer sua insignificância, pois ocupa o último lugar na agenda do reino de Deus. Não significa que Deus o despreze. Porém, antes de voltar Sua atenção para Zaqueu, Ele Se voltará para Bartimeu.
Quem, afinal, seriam o rico e o pobre na opinião de Deus?
Rico é qualquer um que goza de privilégios negados aos demais. Pobre é qualquer um que tem seus direitos vilipendiados. É completa perda de tempo tentar espiritualizar isso. E a prova disso é o comentário feito por Tiago no capítulo dois de sua epístola?
“Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com favoritismo. Suponham que na reunião de vocês entre um homem com anel de ouro e roupas finas, e também entre um homem pobre com roupas velhas e sujas. Se vocês derem atenção especial ao homem que está vestido com roupas finas e disserem: "Aqui está um lugar apropriado para o senhor", mas disserem ao pobre: "Você, fique de pé ali", ou: "Sente-se no chão, junto ao estrado onde ponho os meus pés", não estarão fazendo discriminação, fazendo julgamentos com critérios errados? Ouçam, meus amados irmãos: não escolheu Deus os que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que ele prometeu aos que o amam? Mas vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais? Não são eles que difamam o bom nome que sobre vocês foi invocado?” Tiago 2:1-7
Se Tiago estivesse se referindo a um tipo de riqueza e de pobreza estritamente espirituais, não faria sentido o exemplo usado. Ele fala de anel de ouro, roupas elegantes, em oposição a roupas velhas e sujas. Não há nada de espiritual aí. Ou há? Bem, o fato de valorizamos tanto a aparência e a posição social de alguém revela nosso estado espiritual lastimável. No fundo, tudo é espiritual. Porém, não se pode negar os desdobramentos sociais de nossa espiritualidade.
Se importamos do mundo a visão pela qual diferenciamos as pessoas de acordo com suas classes sociais, deixamos de ser agentes de transformação e nos tornamos em meras engrenagens deste sistema reprodutor de injustiças.
Por que tratamos o rico de maneira gentil e o pobre de maneira rude? O homem com anel de ouro em seu dedo representa aquilo que gostaríamos de ser. Nós o invejamos. Quem sabe, se o adularmos, ele nos ajudará a ascender socialmente? Já a presença do pobre nos causa mal-estar. Sua existência desafia nossos escrúpulos. Sua presença nos intimida. O que ele poderia nos oferecer? Provavelmente nos pedirá alguma ajuda. Por isso, é melhor mantê-lo numa distância segura.
Só existem vales, porque existem montanhas. Não haveria pobres, se não houvesse ricos. Não haveria miséria, se não houvesse concentração de bens.
Tiago denuncia isso enfaticamente. Sem titubear, ele se dirige aos ricos de seu tempo e os conclama ao arrependimento:
“E agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como fogo. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o salário que fraudulentamente retivestes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os clamores dos ceifeiros têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos corações no dia da matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu.” Tiago 5:1-6
Ninguém chega ao ponto de se tornar bilionário sem ter explorado o trabalho do pobre, do necessitado, e sem ter se valido de um sistema calibrado para beneficiar a uns em detrimento de outros. Salários foram fraudulentamente retidos. Direitos foram solapados. A justiça pervertida. Tudo em nome do conforto, da segurança, da estabilidade.
Porém, Deus não faz vista grossa a tudo isso. Segundo Tiago, “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg.4:6). E alguém duvida que o soberbo em questão seja uma referência aos que se valem daquilo que possuem?
Em breve, tudo isso se reverterá. Na medida em que o genuíno evangelho for anunciado aos homens, o fenômeno vivido pelos cristãos primitivos se repetirá. Os ricos expandirão suas consciências e se darão conta de que “a vida do homem não consiste na abundância das coisas que possui” (Lc.12:15), de modo que não se negarão a repartir seus haveres com os que nada têm. Não se trata de filantropia, mas de justiça.
Na profecia de Isaías, quando os vales fossem aterrados e as montanhas achatadas, o caminho seria endireitado. Numa topografia pontilhada de montanhas, as estradas costumam ser sinuosas. Para quê servem as curvas, afinal, senão para contornar os obstáculos impostos pelas montanhas? Sem elas, o que é torto se endireitaria. E repare que uma sociedade dividida em classes não é um problema só para quem está na base, tendo que contornar os obstáculos impostos pelos que detém o poder político e econômico. A presença dos vales demanda a construção de pontes que interliguem as montanhas. Portanto, é dispendioso a todos, tanto para os que estão na base da pirâmide social, quanto para os que estão no topo. As pontes servem para que não seja necessário voltar à base e percorrer estradas sinuosas. Quem detém o poder não precisa se rebaixar. Em vez disso, cria mecanismo para burlar as regras válidas apenas para os que estão lá embaixo. Porém, pontes não custam barato. Políticos são corrompidos. Pautas das redações de jornais são encomendadas. Brechas na lei são exploradas à exaustão por juristas que se deixam alugar. Candidatos são forjados. Campanhas milionárias são patrocinadas. Seguranças armados são contratados. Carros são blindados. Mansões cercadas de câmeras e cercas eletrificadas. Ou como disse Tiago, estão entesourando para o seu próprio fim. Nada disso seria necessário se os ricos deste mundo não fossem tão gananciosos.
Facilitar a vida do pobre é, por assim dizer, viabilizar a própria existência sobre bases firmes, sem medo do inusitado, sem receio de perder tudo de uma hora para outra, sem ter que viver escatelado, prisioneiro de seu próprio sucesso.
Compete-nos conclamar o mundo à tomada de consciência, num pacto entre todas as camadas sociais, onde ninguém se verá lesado em seus direitos, nem refém de seus interesses.
[1] Termo grego usado no NT para designar a manifestação visível de Cristo no último dia.