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terça-feira, julho 13, 2021

TEOCRACIA E O CONTO DO MALAFAIA


Por Hermes C. Fernandes 

“O Conto da Aia” é um romance distópico de autoria da canadense Margaret Atwood que retrata uma teocracia totalitária que substitui o governo dos Estados Unidos após um ataque terrorista que resultou no assassinato do presidente e no fuzilamento da maioria dos membros do Congresso. O movimento fundamentalista de reconstrução cristã autointitulado "Filhos de Jacó" lança um golpe, suspende a Constituição do país e instala um estado de exceção sob o pretexto de restaurar a ordem, salvando a América da corrupção e da promiscuidade. Para consolidar seu poder, o novo regime chamado de República de Gileade reorganiza a sociedade em um novo modelo totalitário, militarizado e hierárquico pautado no fanatismo religioso e social inspirado numa leitura literalista do Antigo Testamento, limitando severamente os direitos humanos, principalmente os das mulheres que passam a ser subjugadas e oprimidas, proibidas de ler, tornando-se coisas, bens jurídicos, propriedades do Estado, forçadas a uma vida casta de dedicação ao lar e ao gozo de seus senhores. 

Não há como assistir à série de TV ou ler a obra que a inspirou sem questionar se já não estaríamos vivendo um prenúncio desta distopia. Basta verificar o aparelhamento do estado brasileiro por líderes religiosos cristãos de viés fundamentalista. 

Como se não bastasse uma bancada evangélica no congresso que tenta impor uma agenda de costumes, enquanto se alia às bancadas do boi e da bala, engrossando o coro dos que destroem direitos trabalhistas e previdenciários, agora, corremos o risco de ter um ministro “terrivelmente evangélico” ocupando uma cadeira no STF. 

O nome de Deus é evocado em comícios, inaugurações de obras públicas e pronunciamentos do presidente. Versos bíblicos são proferidos à granel como se pudessem legitimar qualquer improbidade. Jejuns são convocados por lideranças alinhadas ao governo. Palavras proféticas são proferidas, garantindo que o país estaria prestes a experimentar um tempo de prosperidade sem precedentes em sua história. Pastores usam suas redes sociais para defender seu Messias tupiniquim a qualquer custo. A ciência é desdenhada. Minorias são perseguidas. A democracia é atacada sistematicamente, preparando o caminho para a instalação de uma teocracia. 

Recentemente, no comício após uma das motociatas promovidas pelo presidente, o locutor o apresentou como “o Messias ungido por Deus para governar o Brasil e livrá-lo da corrupção.” A multidão ali reunida foi ao delírio. 

“O Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, repete exaustivamente o presidente em cada aparição. O slogan de campanha vai ao encontro de frases de efeito que líderes evangélicos usam durante o período eleitoral quando buscam eleger candidatos que representem os interesses de seu grupo. Frases como “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor!” ou “O Brasil é do Senhor Jesus!” são proferidas como mantra, incutindo na cabeça dos fiéis que o país só prosperará quando se tornar majoritariamente evangélico, ou ainda, quando a Bíblia substituir a Constituição. 

Gileade é aqui. Mas, diferentemente da Gileade bíblica, não há bálsamo que traga qualquer alívio ao nosso tão sofrido povo brasileiro. 

A região de Gileade ea conhecida pela produção de um bálsamo medicinal. O profeta Jeremias diz que o povo de Israel menosprezava tal remédio por não se reconhecer doente, e por dar ouvidos a profetas palacianos, comprometidos com a coroa. Algo análogo ao que tem ocorrido em nosso país neste tempo de pandemia. “Porventura não há bálsamo em Gileade? Ou não há lá médico?”, questiona Jeremias. “Por que, pois, não se realizou a cura da filha do meu povo?” (Jeremias 8:22).

Se fosse hoje, ele perguntaria: Porventura não há vacina suficiente no país? Então, por que a pandemia só faz avançar, enquanto os profetas preferem bajular os poderosos em vez de lamentar a morte de mais de meio milhão de brasileiros?

Se, de fato, fossem comprometidos com a vida e o bem-estar do seu povo, esses profetas cobrariam das autoridades medidas que aliviassem seu sofrimento, e denunciariam qualquer desmando e improbidade. Todavia, eles preferem se ocupar com questões morais e culturais, no afã de impor uma agenda ultraconservadora baseada numa suposta cosmovisão cristã. 

A laicidade do Estado foi uma das maiores conquistas da modernidade e tem como objetivo a construção de uma sociedade em que nenhum grupo social possa se impor aos demais. E para tal, o Estado deve se declarar neutro, não interferindo em nenhum assunto relativo à religião. Em contrapartida, nenhum grupo religioso teria o direito de se intrometer nos temas políticos. O papel do Estado é garantir o direito de cada indivíduo de escolher sua própria religião. 

O poder público, sendo laico, não tem a capacidade nem de favorecer e nem de prejudicar qualquer prática religiosa. Em suma, trata-se de um pacto entre as pessoas de qualquer religião, bem como as que não professem religião alguma, possibilitando uma convivência amistosa. Para isso, nenhuma religião poderia impor seus valores na criação das regras que regem o Estado e a vida em sociedade. 

A proposta do Estado Laico está em consonância com a sociedade sonhada pelos profetas, simbolizada pela Nova Jerusalém, arquétipo da sociedade definitiva, na qual não há templos. 

Em contraposição ao Estado Laico, fala-se da cosmovisão cristã. Este termo foi cunhado por Abraham Kuyper, teólogo calvinista e estadista holandês. Para Kuyper o calvinismo, que dele considerava a forma mais consistente de cristianismo, não era exatamente uma teologia ou um sistema eclesiástico, mas uma cosmovisão completa com implicações para todas as áreas da vida, incluindo politica, arte, ciência, educação, etc. O cristianismo calvinista deveria assim resistir a aliança com outros “ismos” culturais que ele considerava oponentes, tais como o socialismo, o darwinismo, o positivismo e o liberalismo, e desenvolver-se a partir de seu princípio singular em busca da liderança cultural.

O que muitos defensores da “cosmovisão cristã” desconhecem é que as ideias de Kuyper foram as sementes responsáveis pelo surgimento do regime do Apartheid na África do Sul, que manteve a população negra segregada, excluída e oprimida em nome de uma pureza étnica e religiosa. Aliás, o próprio Calvino, em quem Kuyper se inspirava, durante o tempo em que governou Genebra, mandou para a fogueira o médico Miguel Serveto pelo simples fato de considerá-lo herege. Dentre suas contribuições científicas, destaca-se a descrição da circulação pulmonar, sem a qual hoje não se poderia tratar um paciente de COVID-19 cujos pulmões estivessem comprometidos.  

A Holanda, país em que Kuyper serviu como primeiro ministro, vive hoje uma era pós-cristã, em que igrejas antes concorridas foram transformadas em bibliotecas públicas e danceterias. Enquanto a África do Sul luta para cicatrizar as feridas deixadas pela segregação racial.  Graças a homens como Nelson Mandela e o bispo anglicano Desmond Tutu, o bálsamo da reconciliação tem sido derramado sobre tais feridas, possibilitando às próximas gerações sonharem com uma sociedade mais igualitária e solidária. 

A única cosmovisão que admito como cristã é aquela através da qual se enxerga o mundo com as lentes do amor. O resto não passa de projeto de poder cada vez mais distante da proposta original do Cristo. 

Sem dúvida, prefiro abraçar o projeto de Jesus chamado "reino de Deus" do que acreditar no conto de gente da laia dos profetas  midiáticos


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