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segunda-feira, julho 12, 2021

Tempo SABÁTICO ou SAFÁDICO?


Por Hermes C. Fernandes 

Quem nunca precisou de um tempo sabático para espairecer um pouco, desfocar e recarregar as baterias? Afinal, ninguém é de ferro. Se a máquina humana não der uma parada de vez em quando, a tendência é superaquecer e entrar em pane. Não é à toa que uma das síndromes que mais têm feito vítimas em nossos dias é a de burnout.  Foi por isso que Deus estabeleceu o princípio por trás do mandamento do sábado. O que para o corpo é um descanso necessário, para a alma é um exercício de dependência da graça divina. 

Como pastor e psicólogo, tenho me deparado com uma prática que parece substituir o tal tempo sabático. Trata-se do que tenho chamado de “tempo safádico.” Geralmente, pessoas que passaram boa parte de suas vidas submetidas a um código moral extremamente rigoroso, chegam ao ponto em que não suportam mais o jugo e resolvem chutar o pau da barraca. Como diz o ditado, quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. Trata-se do efeito colateral de uma espiritualidade legalista que exige do indivíduo certas renúncias alheias à genuína proposta do evangelho. Paulo denunciou isso de maneira veemente, e advertiu: 

“Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo (...) Se estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanças, como se vivêsseis no mundo, como, não toques, não proves, não manuseies? Todas essas coisas estão destinadas ao desaparecimento pelo uso, porque são baseadas em preceitos e ensinamentos dos homens. Têm, na verdade, aparência de sabedoria, em culto voluntário, humildade fingida e severidade para com o corpo, mas não têm valor algum contra a satisfação da carne” (Colossenses 2:8,20-23).

O próprio Jesus nos advertiu quanto aos religiosos fariseus que exigem dos outros o que eles mesmos não são capazes de fazer.  Os tais “atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los” (Mateus 23:4).

Por que as pessoas são tão propensas a aceitarem tais jugos? Pelo simples fato de que a liberdade oferecida em Cristo nos impõe responsabilidade. Viver sob o jugo de terceiros é o mesmo que transferir nossas responsabilidades. Se algo não der certo, a culpa recairá sobre aquele que nos impôs um jugo insuportável de carregar. Terceirizar nossa consciência nos parece mais confortável do que enfrentar a vertigem que a liberdade pode nos provocar. 

Romper com este jugo demanda firmeza de caráter e de propósito, e não autoindulgência para compensar o tempo perdido, como se houvéssemos computado pontos suficientes que nos garantiriam uma anistia passageira para fazermos o que desse na telha. 

Por isso o apóstolo Paulo afirma que não somos devedores à carne (Romanos 8:12). Todas as renúncias que fizemos ao longo do caminho, das mais legítimas às mais infantis, não nos conferem crédito para desfrutarmos de um tempo safádico, fazendo todas as nossas vontades de maneira pródiga e inconsequente.  O mesmo apóstolo que defendeu com unhas e dentes a liberdade existencial que nos é conferida pela graça, também diz que não devemos usar desta liberdade para “dar ocasião à carne”, mas que, em vez disso, devemos servir uns aos outros por amor (Gálatas 5:13). Ou como dito por Pedro, não devemos tomar essa tal liberdade como “pretexto da malícia” (1 Pedro 2:16), ou como desculpa para viver da maneira como der na telha, sem nos preocupar com o estrago que isso possa provocar na vida de outros. “Que essa liberdade não seja de alguma maneira escândalo para os fracos” (1 Coríntios 8:9), adverte Paulo. Sem amor e consideração pelos demais, em especial pelos mais fracos, nossa liberdade se transformará em libertinagem, e o tempo sabático pelo qual nossa alma anseia se tornará, de fato, num tempo safádico cujos efeitos poderão nos acompanhar pelo resto da jornada.

A saída não é a submissão cega e acrítica a um código moral inflexível e desumano, mas abraçar nossa vocação existencial corajosamente, não impondo aos outros o que não gostaríamos que nos fosse imposto, nem tampouco exigindo-lhes o que cumprimos somente quando estamos sob os holofotes na busca de por aplausos e aprovação. 

O discurso moralista costuma esconder perversões inconfessáveis. A longo prazo, o efeito pode ser devastador, incluindo a dissolução dos afetos e a cauterização da consciência. Não vale a pena pagar pra ver. 

Se você estiver vivendo agora mesmo em um tempo safádico, permitindo-se viver tudo aquilo de que a religião lhe privou, cuidado! Não atente contra a sua alma. Busque o equilíbrio. Não fira a si mesmo, nem àqueles que lhe amam. Que você não se torne escravo, nem dos vícios que lhe entorpecem, nem das virtudes que lhe alimentam a vaidade. 

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