Por Hermes C. Fernandes
Política e religião. Fé e Ciência. Igreja e Estado. Vida
pública e vida privada. Há coisas que não se deve misturar; são como água e
óleo. Pertencem a esferas diferentes. Toda vez que insistimos em misturá-las, a
confusão é inevitável.
De acordo com o poema da criação, Deus determinou que
houvesse separação “entre águas e águas”, isto é, “entre as águas que estavam
debaixo do firmamento e as águas que estavam sobre o firmamento” (Gênesis
1:6-7). Eram, portanto, duas esferas diferentes: Águas superiores e águas
inferiores. Ainda que possuíssem a mesma composição química, duas moléculas de
hidrogênio e uma de oxigênio, essas águas deveriam se manter separadas.
Se o que Deus uniu, não separa o homem, o que dizer daquilo
que o próprio Deus separou? Quem ousaria unir?
Ainda em Gênesis, deparamo-nos com a passagem que narra o
episódio do Dilúvio. Poucos se atêm ao fato de que o dilúvio não foi causado
apenas pelas chuvas, mas também pelo rompimento das reservas subterrâneas de
águas. Pela primeira vez, a ordem determinada por Deus foi subvertida, e as
águas antes separadas se mesclaram. “Naquele mesmo dia se romperam todas as
fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram” (Gênesis 7:11). Foi água para todo lado. Águas vindas de cima e águas vindas
de baixo. O cataclismo só cessou quando “cerraram-se as fontes do abismo e as
janelas dos céus” (Gênesis 8:2).
Apesar de tudo ter ocorrido sob as ordens do próprio Deus, o
cataclismo foi fruto da rebelião humana que se configurou na junção carnal
entre os seres angelicais e as filhas dos homens, que teria criado uma raça
híbrida de gigantes conhecidos como Nefilins (Gênesis 6).
Não se pode unir o que Deus separou! Assim como não se deve
separar o que Deus uniu.
Entretanto, as esferas devem coexistir respeitosamente, cada
uma em seu quadrado. Convém salientar, porém, que mantê-las separadas não
significa que não deva haver qualquer interação entre elas, sobre a qual
falaremos adiante.
A igreja é, por assim dizer, uma sociedade fronteiriça, que
vive a constante tensão entre dois mundos, o atual e o do porvir, bem como o
secular e o sagrado, transitando livremente entre eles, porém, respeitando suas
peculiaridades. Nada a impede de dialogar com a cultura, com a ciência, com a
academia, e até com outras tradições religiosas. Diálogo implica caminho de mão
dupla. Quem dialoga, tanto fala, quanto ouve. Tanta ensina, quanto aprende. Tanto
dá, quanto recebe.
A igreja é como Acsa, filha de Calebe, que descontente com a
terra seca que recebeu de herança, pediu que o pai lhe abençoasse, dando-lhe
fontes de águas. Em resposta ao seu pedido, Calebe presenteou-a com “as fontes
superiores e as fontes inferiores” (Juízes 1:12-15). Somos herdeiros de Deus e coerdeiros
com Cristo (Romanos 8:17). Tudo quando Cristo recebeu do Pai, constitui-se
também a nossa herança como filhos amados de Deus. E o escritor de Hebreus afirma que Deus o
constituiu “herdeiro de tudo” (Hebreus 1:2). Por isso, o apóstolo Paulo pôde
declarar enfaticamente que tudo agora é nosso, “seja o mundo, seja a vida, seja
a morte, seja o presente, seja o futuro” (1 Coríntios 3:21-23). Entretanto, tal
qual aconteceu a Acsa, recebemos como herança “herdades assoladas”, e , de
quebra, foi-nos confiada a missão de restaurarmos a terra (Isaías 49:8). Mas
para tal, temos que recorrer às fontes, tanto as superiores, quanto as
inferiores. Os recursos que nos são disponibilizados são incomensuráveis.
Quando digo igreja, não me refiro aqui à instituição cristã,
ou mesmo a uma denominação específica, mas a um povo que recebeu de Deus a
vocação de lançar os fundamentos de um novo mundo, que costumo chamar de
civilização do reino de Deus. Um povo formado por quem não se conforma com as
coisas como elas são, e anelam por um mundo mais justo e igualitário.
Nossa atuação não deve estar circunscrita à esfera
religiosa, mas abarcar cada uma das esferas.
Porém, não podemos fazer uso desta prerrogativa para misturar as coisas.
Não se pode, por exemplo, impor uma visão moral religiosa a um estado laico.
Isso, naturalmente, não impede que um cristão viva plenamente a sua fé mesmo no
campo político. Em vez de pautar-se na moral cristã, ele pautará sua atuação na
ética e no bem comum, sem favorecer a instituição religiosa a que pertence.
Quando Jacó reuniu seus filhos para abençoá-los pouco antes
de sua morte, o patriarca hebreu proferiu uma bênção especial para José, que
poderia muito bem ser aplicada à igreja como um todo.
“José é um ramo frutífero, ramo frutífero
junto à fonte; seus ramos correm sobre o muro. Os flecheiros lhe deram
amargura, e o flecharam e odiaram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os
braços de suas mãos foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó (de onde é
o pastor e a pedra de Israel). Pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo
Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos do
abismo que está embaixo, com bênçãos dos seios e da madre. As bênçãos de teu
pai excederão as bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos;
elas estarão sobre a cabeça de José, e sobre o alto da cabeça do que foi
separado de seus irmãos.” Gênesis 49:22-26
Quem não gostaria de receber “bênçãos dos altos céus”
somadas às “bênçãos do abismo que está embaixo”? Não seria isso o cumprimento da promessa de Romanos 8:28 que diz que todas as coisas cooperam em conjunto para o bem dos que amam a Deus e são chamados segundo o Seu propósito? Mas para isso, temos que ser
“ramos frutíferos junto à fonte”, como nossos ramos extrapolando os limites
impostos pelos muros. Antes de ser bênção para o seu próprio povo, José foi
bênção para o povo que o manteve como escravo, e posteriormente como preso sob
acusação injusta.
Temos que romper com esta visão de gueto que nos fez reféns
de uma subcultura restrita aos que entender nosso dialeto religioso. Não temos
o direito de viver uma espiritualidade alienante, divorciada da realidade.
A exemplo da igreja primitiva que contava com a simpatia de
todo o povo, é notavelmente possível vivermos uma espiritualidade que seja
“agradável a Deus” e “aprovada aos homens.” Mas não enquanto nos ativermos a
questiúnculas morais e de costumes. Bem faríamos se adotássemos a sábia postura
de Paulo ao declarar: “Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nada é de si
mesmo imundo a não ser para aquele que assim o considera; para esse é imundo. Pois,
se pela tua comida se entristece teu irmão, já não andas segundo o amor. Não
faças perecer por causa da tua comida aquele por quem Cristo morreu. Não seja
pois censurado o vosso bem; porque o reino de Deus não consiste no comer e no
beber, mas na justiça, na paz, e na alegria no Espírito Santo. Pois quem nisso
serve a Cristo agradável é a Deus e aceito aos homens. Assim, pois, sigamos as
coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua” (Romanos
14:14-19). Se naquela época, cristãos infantilizados brigavam por questões dietéticas,
hoje brigamos por questões ainda mais banais que dizem respeito à vida privada
de cada um.
Creio que a figura arquetípica da Nova Jerusalém poderia nos
ajudar a compreender a maneira como deveríamos nos posicionar com relação às
coisas relativas às esferas inferiores. Digo inferiores, não no sentido de
serem menos importantes que as demais, mas por estarem ligadas a esta vida
terrena, sujeitas, portanto, a se desgastarem com o passar do tempo.
O vidente João nos relata que viu “a santa cidade, a nova
Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o
seu marido” (Apocalipse 21:2). Repare nisso: a origem desta cidade é celestial.
Ela desce do céu. Ela pertence às fontes superiores. Ela é um tipo da igreja.
Por isso, João a chama de “esposa do Cordeiro.” Cristo não se casaria com
muros, tijolos, paredes. Sua esposa somos nós, Sua igreja, Seu povo.
Apesar de manter-se pura, “ataviada”, é-nos dito que “as nações
andarão à sua luz; e os reis da terra TRARÃO PARA ELA a sua glória. AS SUAS
PORTAS NÃO SE FECHARÃO de dia, e noite ali não haverá; e a ela trarão a glória
e a honra das nações. E não entrará nela coisa alguma impura, nem o que pratica
abominação ou mentira; mas somente os que estão inscritos no livro da vida do
Cordeiro” (Apocalipse 21:24-27).
De que “glória das nações” o texto está falando? A resposta
está Isaías 60:11, onde esta promessa já havia sido feita anteriormente. Ali
lemos que as portas da cidade estariam abertas de contínuo para que lhe fossem
trazidas “as riquezas das nações.” Resta saber que riquezas seriam essas. Recuso-me a crer que sejam insumos ou bens de
consumo. Prefiro acreditar tratar-se de riquezas culturais, produzidas pelos
povos ao longo das eras.
Então, como conciliar a promessa de que as riquezas das
nações seriam introduzidas na cidade santa com a promessa de que ali não
entraria coisa impura? Não seria isso o mesmo que misturar as águas inferiores
com as águas superiores?
Desde criança ouço pregadores alarmarem os fiéis acerca da
infiltração do mundanismo na igreja. Como evitar isso? Teríamos que nos
trancafiar em nosso reduto eclesiástico? Teríamos que viver como os Amish[1]?
Teríamos que nos abster de qualquer manifestação cultural? Penso que muitos
confundem santificação com alienação. Apesar de Deus ter estabelecido uma
separação entre as águas superiores e inferiores, não podemos ignorar que haja
uma contínua troca entre elas que é conhecida por ciclo da água. Conhecido cientificamente como o ciclo
hidrológico, o ciclo da água refere-se à troca contínua de água na hidrosfera,
entre a atmosfera, a água do solo, águas superficiais, subterrâneas e das
plantas. Através de um processo lento e quase imperceptível, a água se evapora,
formando nuvens que posteriormente a devolvem ao solo através da chuva. Não
importa quão sujas essas águas possam estar, a evaporação se encarregará de
purifica-las. A lama, a sujeira, os dejetos, não sobem com ela. Por isso,
pode-se beber da água da chuva sem receio.
De modo análogo, as culturas produzidas neste mundo podem
ser introduzidas na civilização do reino de Deus, sem levar consigo as
impurezas que as acompanham. Foi sobre este processo que Paulo falou ao nos
advertir a examinar de tudo, retendo somente o que for bom (1 Tessalonicenses
5:21).
Duas coisas precisam ser observadas:
1. Não se deve comprar pacotes
fechados. Antes, deve-se examinar item por item, descartando o que não for
compatível com os princípios do amor e da justiça.
2. Não se deve jogar fora a
criança com a água do banho. Cada cultura revela rastros da graça de Deus ao
mesmo tempo em que traz traços de nossa condição pecaminosa de egoísmo e
hedonismo.
Recentemente, postei em minhas redes sociais acerca da minha
experiência com a acupuntura, depois de ter sofrido por sete meses de uma crise
de coluna que afetou meu nervo ciático. Alguém resolveu comentar em meu post,
afirmando que tal prática seria demoníaca, pois estaria associada a invocação
de espíritos ancestrais e crenças místicas orientais. Respondi que vejo muito
mais de demoníaco na indústria farmacêutica ocidental que cria doenças em
laboratórios para depois oferecer tratamento, que mantém patentes de remédios
para cobrar por eles o quanto quiser, mesmo sabendo que há vidas que dependem
de seu uso.
A acupuntura foi declarada Patrimônio Cultural Intangível da
Humanidade pela Unesco em 2010. Assim
como esta prática milenar da medicina chinesa, há outras, como a homeopatia,
que se enquadram perfeitamente no que podemos chamar de “riquezas das nações.”
E o que dizer das danças, do folclore, da música, das
festas, da culinária, e de tanta coisa bela que tem sido produzida pelos povos
ao longo de sua história?
Não creio que a sociedade pela qual anelamos seja uniformizada.
Somente a multiforme graça de Deus, bem como Sua multiforme sabedoria, poderiam
nos patrocinar a emergência de uma sociedade justa e diversificada, onde cada
etnia possa viver pacificamente sem ter que abrir mão da beleza de suas
tradições.
O que nos impede de enxergar isso é que desconhecemos a
abrangência da obra de Cristo, limitando-a às questões relativas à vida eterna.
Paulo nos conta que Deus nos desvendou o mistério de sua
vontade, “de fazer convergir em Cristo todas as coisas, na dispensação da
plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra”
(Efésios 1:9-10).
N’Ele, a realidade foi reunificada. Porém, trata-se de uma
unidade que preserva a diversidade. As fontes superiores trabalham em conjunto
com as fontes inferiores. O Espírito que sopra dentro da igreja, sopra também
lá fora, e ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai. Ele é livre. O mesmo
que inspira canções de louvor entre o Seu povo, também inspira profetas
seculares para que expressem a angústia e anelo da criação.
Cristo é o ponto de convergência entre as coisas sagradas e
as seculares, entre as coisas celestiais e as terrenas, entre as espirituais e
as materiais, entre as objetivas e as subjetivas, entre a vivência comunitária
e a individualidade, entre a santidade e a autenticidade.
Outro ponto interessante da descrição da cidade santa é a
sua completa ausência de templos (Apocalipse 21:22). É-nos dito que o Cordeiro
é o seu santuário. Fica claro que não se trata de uma sociedade religiosa, mas
secular, o que não significa que perde a sua sacralidade, mas que a resgata
plenamente. Agora, em Cristo, todas as coisas foram santificadas, e não apenas
umas em detrimento de outras. N’Ele se reúnem todas as fontes, superiores e
inferiores. Por isso, o salmista diz: “Todas as minhas fontes estão em ti”
(Salmos 87:7). Nada restou fora d’Ele. Como bem disse Paulo citando os
filósofos estoicos: “Nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também
alguns dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração”(Atos 17:28).
Cristo, portanto, encerra em Si mesmo toda a realidade.
Já sabemos por analogia a maneira como as águas inferiores
são remetidas às esferas celestiais. Agora precisamos entender como as águas
superiores são remetidas às esferas terrenas.
Há quem creia que o mundo necessite de uma enxurrada da
verdade. Mas ouso dizer que Deus tenha outros planos. Em vez de chuvaréu, garoa.
Em vez de uma inundação semelhante ao dilúvio, um orvalho suave que regue a
terra calmamente sem fazer estragos. Ou não é isso que vemos em Deuteronômio
32:1-2?
“Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei; e
ouça a terra as palavras da minha boca. Caia como a chuva a minha doutrina;
destile a minha palavra como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como
chuvas sobre a relva.”
Será assim que a vontade de Deus feita no céu, será
finalmente concretizada na terra. Sem alardes. Sem megafones. Sem gritos. Como disse Isaías acerca do Messias: “Eis aqui
o meu servo, a quem sustenho, o meu eleito, em quem se apraz a minha alma; pus
o meu espírito sobre ele; ele trará justiça aos gentios. Não clamará, não se
exaltará, nem fará ouvir a sua voz na praça” (Isaías 42:1,2).
Não será por força, por imposição, por violência, pela
espada, nem pela canetada, mas exclusivamente pelo convencimento do Espírito,
pela iluminação e expansão da consciência (Zacarias 4:6).
[1] Amish
é um grupo religioso cristão anabatista baseado nos Estados Unidos e Canadá.
São conhecidos por seus costumes conservadores, como o uso restrito de
equipamentos eletrônicos, inclusive telefones e automóveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário