sábado, fevereiro 16, 2019

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Deus das Esferas



Por Hermes C. Fernandes

Política e religião. Fé e Ciência. Igreja e Estado. Vida pública e vida privada. Há coisas que não se deve misturar; são como água e óleo. Pertencem a esferas diferentes. Toda vez que insistimos em misturá-las, a confusão é inevitável.

De acordo com o poema da criação, Deus determinou que houvesse separação “entre águas e águas”, isto é, “entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam sobre o firmamento” (Gênesis 1:6-7). Eram, portanto, duas esferas diferentes: Águas superiores e águas inferiores. Ainda que possuíssem a mesma composição química, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, essas águas deveriam se manter separadas.

Se o que Deus uniu, não separa o homem, o que dizer daquilo que o próprio Deus separou? Quem ousaria unir?

Ainda em Gênesis, deparamo-nos com a passagem que narra o episódio do Dilúvio. Poucos se atêm ao fato de que o dilúvio não foi causado apenas pelas chuvas, mas também pelo rompimento das reservas subterrâneas de águas. Pela primeira vez, a ordem determinada por Deus foi subvertida, e as águas antes separadas se mesclaram. “Naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram” (Gênesis 7:11). Foi água para todo lado. Águas vindas de cima e águas vindas de baixo. O cataclismo só cessou quando “cerraram-se as fontes do abismo e as janelas dos céus” (Gênesis 8:2).

Apesar de tudo ter ocorrido sob as ordens do próprio Deus, o cataclismo foi fruto da rebelião humana que se configurou na junção carnal entre os seres angelicais e as filhas dos homens, que teria criado uma raça híbrida de gigantes conhecidos como Nefilins (Gênesis 6).

Não se pode unir o que Deus separou! Assim como não se deve separar o que Deus uniu.
Entretanto, as esferas devem coexistir respeitosamente, cada uma em seu quadrado. Convém salientar, porém, que mantê-las separadas não significa que não deva haver qualquer interação entre elas, sobre a qual falaremos adiante.

A igreja é, por assim dizer, uma sociedade fronteiriça, que vive a constante tensão entre dois mundos, o atual e o do porvir, bem como o secular e o sagrado, transitando livremente entre eles, porém, respeitando suas peculiaridades. Nada a impede de dialogar com a cultura, com a ciência, com a academia, e até com outras tradições religiosas. Diálogo implica caminho de mão dupla. Quem dialoga, tanto fala, quanto ouve. Tanta ensina, quanto aprende. Tanto dá, quanto recebe.

A igreja é como Acsa, filha de Calebe, que descontente com a terra seca que recebeu de herança, pediu que o pai lhe abençoasse, dando-lhe fontes de águas. Em resposta ao seu pedido, Calebe presenteou-a com “as fontes superiores e as fontes inferiores” (Juízes 1:12-15). Somos herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo  (Romanos 8:17).  Tudo quando Cristo recebeu do Pai, constitui-se também a nossa herança como filhos amados de Deus.  E o escritor de Hebreus afirma que Deus o constituiu “herdeiro de tudo” (Hebreus 1:2). Por isso, o apóstolo Paulo pôde declarar enfaticamente que tudo agora é nosso, “seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o futuro” (1 Coríntios 3:21-23). Entretanto, tal qual aconteceu a Acsa, recebemos como herança “herdades assoladas”, e , de quebra, foi-nos confiada a missão de restaurarmos a terra (Isaías 49:8). Mas para tal, temos que recorrer às fontes, tanto as superiores, quanto as inferiores. Os recursos que nos são disponibilizados são incomensuráveis.

Quando digo igreja, não me refiro aqui à instituição cristã, ou mesmo a uma denominação específica, mas a um povo que recebeu de Deus a vocação de lançar os fundamentos de um novo mundo, que costumo chamar de civilização do reino de Deus. Um povo formado por quem não se conforma com as coisas como elas são, e anelam por um mundo mais justo e igualitário.

Nossa atuação não deve estar circunscrita à esfera religiosa, mas abarcar cada uma das esferas.  Porém, não podemos fazer uso desta prerrogativa para misturar as coisas. Não se pode, por exemplo, impor uma visão moral religiosa a um estado laico. Isso, naturalmente, não impede que um cristão viva plenamente a sua fé mesmo no campo político. Em vez de pautar-se na moral cristã, ele pautará sua atuação na ética e no bem comum, sem favorecer a instituição religiosa a que pertence.

Quando Jacó reuniu seus filhos para abençoá-los pouco antes de sua morte, o patriarca hebreu proferiu uma bênção especial para José, que poderia muito bem ser aplicada à igreja como um todo.

 “José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto à fonte; seus ramos correm sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o flecharam e odiaram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os braços de suas mãos foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó (de onde é o pastor e a pedra de Israel). Pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos do abismo que está embaixo, com bênçãos dos seios e da madre. As bênçãos de teu pai excederão as bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos; elas estarão sobre a cabeça de José, e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos.” Gênesis 49:22-26

Quem não gostaria de receber “bênçãos dos altos céus” somadas às “bênçãos do abismo que está embaixo”? Não seria isso o cumprimento da promessa de Romanos 8:28 que diz que todas as coisas cooperam em conjunto para o bem dos que amam a Deus e são chamados segundo o Seu propósito? Mas para isso, temos que ser “ramos frutíferos junto à fonte”, como nossos ramos extrapolando os limites impostos pelos muros. Antes de ser bênção para o seu próprio povo, José foi bênção para o povo que o manteve como escravo, e posteriormente como preso sob acusação injusta.

Temos que romper com esta visão de gueto que nos fez reféns de uma subcultura restrita aos que entender nosso dialeto religioso. Não temos o direito de viver uma espiritualidade alienante, divorciada da realidade.

A exemplo da igreja primitiva que contava com a simpatia de todo o povo, é notavelmente possível vivermos uma espiritualidade que seja “agradável a Deus” e “aprovada aos homens.” Mas não enquanto nos ativermos a questiúnculas morais e de costumes. Bem faríamos se adotássemos a sábia postura de Paulo ao declarar: “Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nada é de si mesmo imundo a não ser para aquele que assim o considera; para esse é imundo. Pois, se pela tua comida se entristece teu irmão, já não andas segundo o amor. Não faças perecer por causa da tua comida aquele por quem Cristo morreu. Não seja pois censurado o vosso bem; porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber, mas na justiça, na paz, e na alegria no Espírito Santo. Pois quem nisso serve a Cristo agradável é a Deus e aceito aos homens. Assim, pois, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificação mútua” (Romanos 14:14-19). Se naquela época, cristãos infantilizados brigavam por questões dietéticas, hoje brigamos por questões ainda mais banais que dizem respeito à vida privada de cada um.

Creio que a figura arquetípica da Nova Jerusalém poderia nos ajudar a compreender a maneira como deveríamos nos posicionar com relação às coisas relativas às esferas inferiores. Digo inferiores, não no sentido de serem menos importantes que as demais, mas por estarem ligadas a esta vida terrena, sujeitas, portanto, a se desgastarem com o passar do tempo.

O vidente João nos relata que viu “a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido” (Apocalipse 21:2). Repare nisso: a origem desta cidade é celestial. Ela desce do céu. Ela pertence às fontes superiores. Ela é um tipo da igreja. Por isso, João a chama de “esposa do Cordeiro.” Cristo não se casaria com muros, tijolos, paredes. Sua esposa somos nós, Sua igreja, Seu povo.

Apesar de manter-se pura, “ataviada”, é-nos dito que “as nações andarão à sua luz; e os reis da terra TRARÃO PARA ELA a sua glória. AS SUAS PORTAS NÃO SE FECHARÃO de dia, e noite ali não haverá; e a ela trarão a glória e a honra das nações. E não entrará nela coisa alguma impura, nem o que pratica abominação ou mentira; mas somente os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Apocalipse 21:24-27).

De que “glória das nações” o texto está falando? A resposta está Isaías 60:11, onde esta promessa já havia sido feita anteriormente. Ali lemos que as portas da cidade estariam abertas de contínuo para que lhe fossem trazidas “as riquezas das nações.” Resta saber que riquezas seriam essas.  Recuso-me a crer que sejam insumos ou bens de consumo. Prefiro acreditar tratar-se de riquezas culturais, produzidas pelos povos ao longo das eras.

Então, como conciliar a promessa de que as riquezas das nações seriam introduzidas na cidade santa com a promessa de que ali não entraria coisa impura? Não seria isso o mesmo que misturar as águas inferiores com as águas superiores?

Desde criança ouço pregadores alarmarem os fiéis acerca da infiltração do mundanismo na igreja. Como evitar isso? Teríamos que nos trancafiar em nosso reduto eclesiástico? Teríamos que viver como os Amish[1]? Teríamos que nos abster de qualquer manifestação cultural? Penso que muitos confundem santificação com alienação. Apesar de Deus ter estabelecido uma separação entre as águas superiores e inferiores, não podemos ignorar que haja uma contínua troca entre elas que é conhecida por ciclo da água.  Conhecido cientificamente como o ciclo hidrológico, o ciclo da água refere-se à troca contínua de água na hidrosfera, entre a atmosfera, a água do solo, águas superficiais, subterrâneas e das plantas. Através de um processo lento e quase imperceptível, a água se evapora, formando nuvens que posteriormente a devolvem ao solo através da chuva. Não importa quão sujas essas águas possam estar, a evaporação se encarregará de purifica-las. A lama, a sujeira, os dejetos, não sobem com ela. Por isso, pode-se beber da água da chuva sem receio.

De modo análogo, as culturas produzidas neste mundo podem ser introduzidas na civilização do reino de Deus, sem levar consigo as impurezas que as acompanham. Foi sobre este processo que Paulo falou ao nos advertir a examinar de tudo, retendo somente o que for bom (1 Tessalonicenses 5:21).

Duas coisas precisam ser observadas:

1. Não se deve comprar pacotes fechados. Antes, deve-se examinar item por item, descartando o que não for compatível com os princípios do amor e da justiça.

2. Não se deve jogar fora a criança com a água do banho. Cada cultura revela rastros da graça de Deus ao mesmo tempo em que traz traços de nossa condição pecaminosa de egoísmo e hedonismo.

Recentemente, postei em minhas redes sociais acerca da minha experiência com a acupuntura, depois de ter sofrido por sete meses de uma crise de coluna que afetou meu nervo ciático. Alguém resolveu comentar em meu post, afirmando que tal prática seria demoníaca, pois estaria associada a invocação de espíritos ancestrais e crenças místicas orientais. Respondi que vejo muito mais de demoníaco na indústria farmacêutica ocidental que cria doenças em laboratórios para depois oferecer tratamento, que mantém patentes de remédios para cobrar por eles o quanto quiser, mesmo sabendo que há vidas que dependem de seu uso.

A acupuntura foi declarada Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade pela Unesco em 2010.  Assim como esta prática milenar da medicina chinesa, há outras, como a homeopatia, que se enquadram perfeitamente no que podemos chamar de “riquezas das nações.”

E o que dizer das danças, do folclore, da música, das festas, da culinária, e de tanta coisa bela que tem sido produzida pelos povos ao longo de sua história?

Não creio que a sociedade pela qual anelamos seja uniformizada. Somente a multiforme graça de Deus, bem como Sua multiforme sabedoria, poderiam nos patrocinar a emergência de uma sociedade justa e diversificada, onde cada etnia possa viver pacificamente sem ter que abrir mão da beleza de suas tradições.

O que nos impede de enxergar isso é que desconhecemos a abrangência da obra de Cristo, limitando-a às questões relativas à vida eterna.

Paulo nos conta que Deus nos desvendou o mistério de sua vontade, “de fazer convergir em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” (Efésios 1:9-10).

N’Ele, a realidade foi reunificada. Porém, trata-se de uma unidade que preserva a diversidade. As fontes superiores trabalham em conjunto com as fontes inferiores. O Espírito que sopra dentro da igreja, sopra também lá fora, e ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai. Ele é livre. O mesmo que inspira canções de louvor entre o Seu povo, também inspira profetas seculares para que expressem a angústia e anelo da criação.

Cristo é o ponto de convergência entre as coisas sagradas e as seculares, entre as coisas celestiais e as terrenas, entre as espirituais e as materiais, entre as objetivas e as subjetivas, entre a vivência comunitária e a individualidade, entre a santidade e a autenticidade.

Outro ponto interessante da descrição da cidade santa é a sua completa ausência de templos (Apocalipse 21:22). É-nos dito que o Cordeiro é o seu santuário. Fica claro que não se trata de uma sociedade religiosa, mas secular, o que não significa que perde a sua sacralidade, mas que a resgata plenamente. Agora, em Cristo, todas as coisas foram santificadas, e não apenas umas em detrimento de outras. N’Ele se reúnem todas as fontes, superiores e inferiores. Por isso, o salmista diz: “Todas as minhas fontes estão em ti” (Salmos 87:7). Nada restou fora d’Ele. Como bem disse Paulo citando os filósofos estoicos: “Nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração”(Atos 17:28). Cristo, portanto, encerra em Si mesmo toda a realidade.

Já sabemos por analogia a maneira como as águas inferiores são remetidas às esferas celestiais. Agora precisamos entender como as águas superiores são remetidas às esferas terrenas.

Há quem creia que o mundo necessite de uma enxurrada da verdade. Mas ouso dizer que Deus tenha outros planos. Em vez de chuvaréu, garoa. Em vez de uma inundação semelhante ao dilúvio, um orvalho suave que regue a terra calmamente sem fazer estragos. Ou não é isso que vemos em Deuteronômio 32:1-2?

 “Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei; e ouça a terra as palavras da minha boca. Caia como a chuva a minha doutrina; destile a minha palavra como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como chuvas sobre a relva.”

Será assim que a vontade de Deus feita no céu, será finalmente concretizada na terra. Sem alardes. Sem megafones. Sem gritos.  Como disse Isaías acerca do Messias: “Eis aqui o meu servo, a quem sustenho, o meu eleito, em quem se apraz a minha alma; pus o meu espírito sobre ele; ele trará justiça aos gentios. Não clamará, não se exaltará, nem fará ouvir a sua voz na praça” (Isaías 42:1,2).

Não será por força, por imposição, por violência, pela espada, nem pela canetada, mas exclusivamente pelo convencimento do Espírito, pela iluminação e expansão da consciência (Zacarias 4:6).



[1] Amish é um grupo religioso cristão anabatista baseado nos Estados Unidos e Canadá. São conhecidos por seus costumes conservadores, como o uso restrito de equipamentos eletrônicos, inclusive telefones e automóveis.

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