Por Hermes C. Fernandes
Em
meio a declarações românticas recíprocas entre um rei e uma camponesa, surge a
inusitada digressão abaixo:
“Temos uma irmã pequena, que ainda não tem seios. O que faremos a essa
nossa irmã no dia em que for pedida em casamento? Se ela for um muro,
edificaremos sobre ela um palácio de prata. Se ela for uma porta, nós a
cercaremos com tábuas de cedro. Eu sou um muro, e os meus seios como as suas
torres. Assim tornei-me aos olhos dele como aquela que traz prazer.” Cantares 8:8-10
No
afã de explicar no que ela mesma havia se tornado, Sulamita recorre à figura de
sua irmãzinha. Ninguém é o que é sem que tenha passado por vários estágios.
Sulamita percebe em sua pequena irmã potencialidades que havia em si mesma.
Porém, tais potencialidades não são sentenças. Ela não poderia esperar que sua
irmã a recapitulasse, tornando-se numa mera cópia de si.
O
fato de ainda não ter seios significa que ela estava em processo de maturação. Não
ter seios hoje não significa que não os terá amanhã. O nome disso é latência.[1]
Eles já existem em potencial. Só faltam aflorar, vir à tona. O que hoje é
latente, amanhã será patente. Os seios representam o aparato fornecido pela natureza
para que a mulher cumprisse o propósito de sua existência, que para as sociedades
antigas limitava-se à maternidade. Ela ainda não tem seios, mas um dia os terá.
Daí surge a questão: Que faremos no dia em que for pedida em casamento?
Cada
estágio da existência humana apresenta suas próprias demandas. Uma criança
requer atenção especial, cuidados essenciais. Um pré-adolescente requer
disciplina, acompanhamento, instrução. Porém, não se pode perder de vista as
demandas que o futuro trará. Quem hoje nem sequer tem seios, amanhã será pedida
em casamento. Quem hoje nem sequer tem pelugem na face, amanhã estará pedindo a
mão de sua filha em casamento. O pequeno empreendedor de hoje, poderá se tornar
no empresário de vulto amanhã. E quando isso ocorrer, as demandas serão outras.
Aquele garoto rebelde traz consigo potencialidades que o tornarão num chefe de
família responsável e exemplar.
Até
que ponto estamos preparados para as demandas futuras? Como reagiremos quando
estas se apresentarem? O que requererão de nós? A vida se apresenta
imprevisível. Mesmo que não haja tantos cenários possíveis, nossas respostas se
incumbirão de estabelecer os rumos que ela seguirá.
Sulamita
nos apresenta dois cenários. Sua irmã poderia revelar-se um muro ou uma porta. Ser
muro pode expressar uma característica de inacessibilidade. Alguém difícil de
lidar, que prefere resguardar-se, sendo seletivo na escolha de seus
relacionamentos. Os muros protegem, estabelecem perímetros, mas também
aprisionam.
Há
pessoas que desenvolveram tal característica depois de terem sofrido alguma
decepção. Outras são assim desde que se
entendem por gente. Não há qualquer demérito em ser muro. Temos que respeitar a personalidade de cada
um. Mesmo porque, o evangelho jamais se propôs a mudar a personalidade, e sim,
o caráter. Em vez disso, o Espírito Santo nos aperfeiçoa, reforçando certas
características inerentes à nossa personalidade, direcionando-as ao cumprimento
de Seu propósito.
Amar
é acolher a pessoa tal qual ela é, sem tentar mudá-la, nem impor sobre ela
nossas expectativas, sem projetar nela o que somos.
Paulo
não deixou de ser colérico após sua conversão. Tampouco Pedro deixou de ser
sanguíneo. Porém, ambos tiveram seu caráter transformado. Se Pedro era um muro,
Paulo, sem dúvida, era uma porta. Cada um cumpriu o seu papel como apóstolo de
Cristo.
Ser
porta aponta para acessibilidade. Porta é passagem, entrada, acesso. Se o muro
protege, a porta acolhe.
Assim
como não há demérito em ser muro, não há mérito em ser porta. Cada qual tem um
papel a cumprir. Todavia, devemos cuidar para dispensar a cada um o trato que
lhe é devido.
“Se ela for um muro”, conclui Sulamita,
“edificaremos sobre ela um palácio de prata”. Coisas de valor inestimável
precisam ser cercadas de cuidado. Para isso servem os muros! Ainda que sejam
pessoas difíceis de se lidar, com temperamento forte, pouco sociáveis, por
vezes, introvertidas, elas servem a um propósito. Geralmente, são absolutamente
confiáveis. Sabem guardar segredo. Protegem aquilo que amam. Portanto, vale a
pena edificar um palácio de prata sobre elas.
“Se ela for uma porta”, prossegue Sulamita, “cercá-la-emos com tábuas de
cedro”. Quem é porta costuma ser muito dado, por isso, carece de ser cercado,
não no sentido de tornar-se refém, sendo privado de sua liberdade, mas no
sentido de ser protegido. E repare que não se trata de um muro, mas de uma
cerca. O muro é algo fixo, permanente, delimitador. A cerca de madeira pode ser
removida rapidamente, adaptada, alargada. Quem é porta carece de ser protegido,
mas não sufocado; precisa de cuidado, não de controle.
Sulamita
termina sua participação no livro de autoria de seu amado afirmando ser ela
mesma um muro:
“Eu sou um
muro, e os meus seios são como as suas torres. Assim tornei-me aos olhos dele como
aquela que traz prazer.”
Imagino que não deva ter sido
fácil para Salomão conquistar o coração de Sulamita. Mesmo se apresentando como
um muro, Salomão encontrou nela uma porta de acesso. Todo muro possui portas.
Assim como toda porta precisa estar devidamente cercada. Toda armadura possui
frestas, caso contrário, sufocará aquele que a veste. No final das contas,
Sulamita tornou-se aos olhos de seu amado “como
aquela que traz prazer.”
Portanto, ser o que se é não se
constitui numa sentença. Há potencialidades latentes que precisam ser
descobertas por quem nos enxerga para além das aparências. Todos podemos nos
tornar alguém que seja o motivo daquele “frio na barriga” do outro, sem que
para isso tenhamos que negar nossa própria essência. Basta que descubra a porta
escondida em algum lugar do muro.
Ninguém é descartável por ser o
que se é. Permitamos que o outro se torne aos nossos olhos como aquele que nos
dê prazer. Talvez isso dependa mais de
nós mesmos do que dele. Talvez requeira tão-somente um novo olhar, ou,
simplesmente, olhar por outro ângulo, parar de reclamar e aceitar o outro
exatamente como ele é.
Isso se aplica não apenas ao
campo dos relacionamentos, mas a qualquer outra área. Reconhecemos as
potencialidades, preparamo-nos para as possibilidades e buscamos responder às
demandas tais como se apresentam.
[1] É
o Latim LATENTIA, “ato de estar escondido, secreto, desconhecido”, de LATERE,
“abaixar-se para se esconder”.
Cara, fazia tempo que não te lia. Ainda bem que voltei. Massa demais!
ResponderExcluirMuito bom Hermes. Edificante!
ResponderExcluirPerdi as contas de quantas vezes li esse texto. Muito lindo, amei.
ResponderExcluir