Por Hermes C. Fernandes
A
vocação primordial do homem é a de cultivar a terra. O texto sagrado diz que o
Criador tomou o homem a quem criara à sua imagem e semelhança e o pôs no Jardim
do Éden, incumbindo-o de guardá-lo e cultivá-lo (Gênesis 2:15). Surgia aí a cultura. A própria etimologia da palavra
encerra este significado. “Cultura”, do latim colere, que significa cultivar. Portanto, a cultura surge a partir da
interação do homem com o meio em que está inserido. A cultura, portanto,
abrange toda a produção de conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes,
bem como todos os hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da
sociedade, e geralmente deixados como legado para as gerações posteriores.
A
agricultura foi o ponto de partida desta interação entre o homem e o ambiente.
Todavia, ela se intensificou na medida em que o homem se deparava com novas
demandas. Por exemplo, tomando a referência bíblica como base, quando se
percebeu nu, o homem coseu folhas de figueira, uma das árvores que ele
cultivava no jardim (Gn.3:7).
O
Criador, entretanto, preparou-lhe uma vestimenta de pele de animal. Surgia,
então, a espiritualidade, parte essencial da cultura humana. A espiritualidade emerge da
reflexão acerca da finitude da vida. Os antropólogos identificam a emergência
da espiritualidade na raça humana no tratamento dispensado aos mortos. Desde
que começou a vislumbrar a possibilidade da vida após a morte, o homem passou a
sepultar seus mortos de maneira reverente. Em vez de abandoná-los para serem
devorados pelas feras, passou a enterrá-los em covas, acompanhado de flores e
objetos de uso pessoal. A cultura, então, toma um rumo inusitado, pois não se
resume à interação com o meio, mas também à resposta que se dá à existência,
revestindo-a de sentido e significado. A vida deixa de ser vista como um
acidente e passa a ser encarada como cheia de propósito. As folhas de figueira
são substituídas por vestes feitas da pele de um animal sacrificado. Pela
primeira vez, um altar é erigido. Interessante notar que “culto” e “cultura”
têm a mesma origem etimológica. Cultuar também é cultivar. A diferença é que se
cultiva o que está no chão enquanto se cultua o que está no céu. O surgimento
do fenômeno da espiritualidade é a resposta à inexorável sentença da morte: a
gente não foi feito para acabar!
A
humanidade representada em Adão se bifurca em duas estirpes. Duas cosmovisões
começam a se digladiar entre si. Uma tem como arquétipo a figura de Caim, o
primogênito de Adão. A outra, a figura de Abel, seu segundo filho. Caim, o
agricultor, representa a fase em que a humanidade dá seus primeiros passos na
composição de sua cultura. O que importava era a sobrevivência num mundo
hostil, cheio de cardos e espinhos. Diferentemente da Adão, seu pai, que
representa o estágio em que o homem vivia da coleta daquilo que encontrava.
Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas, e representa o desenvolvimento da
prática pecuária. Neste estágio, o homem deixa de se preocupar exclusivamente
com sua sobrevivência e passa a considerar assuntos relativos à transcendência.
A interação entre as duas cosmovisões nem sempre foi amistosa. Todos conhecemos o desfecho do relato
bíblico: Caim mata Abel. Foragido, cabe a ele a construção da primeira cidade.
Portanto, a civilização nasce daí, do conflito, da fuga e do desejo de
estabelecer-se. Caim representa a humanidade que se assenta nos lugares férteis,
geralmente próximos de grandes rios e ali edifica seus centros urbanos. Abel
representa a humanidade em trânsito, nômade, hebreia, em busca de novos
horizontes. Se esta aspiração houvesse terminado com Abel, talvez ainda
estivéssemos às margens do Eufrates. Porém, Abel sai de cena dando lugar a Sete
que dá prosseguimento à saga daqueles que não têm cidade permanente, mas buscam
a que se insinua no lugar onde nasce o sol, a cidade do futuro (Hb.13:14).
Desde
então, a humanidade tem estado dividida entre dois grupos. Os que almejam a
manutenção das coisas exatamente como são ou como foram um dia, e constroem
suas vidas nas vizinhanças do Éden. E há os que acenam para o futuro,
desejando-o, não como repetição de uma história cíclica, mas como algo novo e
inusitado. O primeiro grupo tende a produzir uma cultura estática, que
valoriza, sobretudo, as tradições, sem ao menos contestá-las ou colocá-las à
prova. O segundo grupo tende a produzir uma cultura dinâmica, condenada a
reformular-se constantemente. Para uns, a era áurea se encontra no passado, do
lado de dentro dos portões do Éden. Para outros, o melhor ainda está por vir. Enquanto,
uns sonham voltar para o paraíso, outros sonham com a Nova Jerusalém, arquétipo
da civilização do reino de Deus. Esses são os descendentes de Abraão, que
deixa sua parentela rumo a uma terra desconhecida que lhe será mostrada no
caminho.
Para
os que seguem o que chamo de paradigma caímico,
a cultura se resume no que se produz para o próprio consumo. Para estes, a
gente é feito para acabar. Esta sentença nos persegue por toda a existência.
Portanto, aproveitemos ao máximo o tempo de que dispomos. Mas para os que
seguem o paradigma abélico, a cultura
é o rastro que se deixa para os que virão depois. É a pista de que passamos por
aqui. É a sinalização da estrada aberta e pavimentada pelos que nos
antecederam. A cultura é, por assim dizer, o que restou de nós. Nossas paixões.
Nossos sonhos. Nossos amores. Nossos temores. É o DNA de nossa essência deixado
como marca indelével de nossa existência. Tudo fica espalhado pela estrada na
qual transitamos durante nossa peregrinação existencial, indicando aos que
virão qual o melhor caminho a seguir e qual deve ser igualmente evitado.
* Para melhor compreensão do tema, leia os dois posts que sucedem a este.
* Para melhor compreensão do tema, leia os dois posts que sucedem a este.
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