Por Hermes C. Fernandes
Numa
de Suas mais conhecidas previsões, Jesus disse que se levantariam “irmãos contra irmãos” (Mc.13:8-12).
Aquela geração estava destinada a retroalimentar o ciclo de rivalidade entre
irmãos presente ao longo da história desde os seus primórdios, desde Caim e
Abel, passando pelos filhos de Noé, os filhos de Abraão, Jacó e Esaú, José e
seus irmãos, e a família de Davi. Nem Jesus escapou. João revela que “nem mesmo seus irmãos criam nele” (Jo.7:5).
Mas, sem dúvida, Caim e Abel nos oferecem o arquétipo original da rivalidade
entre irmãos. Na história bíblica, Abel é assassinado por seu irmão que se
sente preterido. Esta tem sido a sina dos sonhadores: serem perseguidos e
mortos por quem se nutre do sistema tal qual ele é. Foi assim com Jesus e Seus
apóstolos. Foi assim com os profetas que vieram antes d’Ele. E será assim com
quem quer que ouse sonhar e desafiar o status
quo. Relembrando a história dos irmãos Isaque e Ismael, filhos do patriarca
Abraão, Paulo diz que o que fora gerado segundo a carne perseguia o que havia
sido gerado segundo o Espírito (Gl.4:29). Um era filho da escravidão, o outro,
da liberdade. O apóstolo afirma que o mesmo se dá hoje entre os que são gerados
pelo Espírito e os que são filhos de um sistema de escravidão. A convivência
entre ambos parece impossível, a menos que sejam devidamente reconciliados.
Caim
é o arquétipo do homem da terra. Abel é o precursor do homem do céu (1
Co.15:47).
A
cruz proveu o meio de reconciliação entre eles. Paulo afirma que Cristo, “de ambos os povos fez um; e derrubando a
parede de separação que estava no meio, na sua carne desfez a inimizade, isto
é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo
dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus
em um corpo, matando com ela as inimizades” (Ef.2:14-16).
N’Ele,
todas as coisas que há no céu e todas as que há na terra convergem (Ef.1:10).
N’Ele encontramos a grande síntese. Caim e Abel se reconciliam. O nômade e o
sedentário caminham e se assentam juntos. O pastor e o agricultor se tornam
numa equipe. A cidade de Deus e a cidade dos homens se integram. Os reinos do
mundo passam a ser do Senhor e do Seu Cristo (Ap.11:15).
Esta
é a proposta do reino de Deus!
Jesus
é o segundo Adão, iniciador da nova humanidade (1 Co.15:45). A igreja é a Sua
esposa, a nova Eva (2 Co.11:3). Portanto, a igreja está destinada a recapitular
a história da humanidade, porém, acertando onde ela errou. Assim como Cristo foi
tentado como Adão, porém, resistiu, permanecendo obediente, a igreja deve
igualmente proceder obedientemente.
O
primeiro casal teve dois filhos que procederam de maneira tal que proveram um
arquétipo negativo para a humanidade caracterizado pela rivalidade entre
irmãos. Cabe à igreja reverter isso e oferecer à humanidade uma nova referência
de relacionamento entre irmãos, onde a competitividade ceda lugar à cooperação.
De
um lado encontramos Pedro, representante do paradigma abélico, a quem Cristo confia os cuidados de Suas ovelhas
(Jo.21:17). Do outro lado, Paulo, representante do paradigma caímico, que antes de converter-se,
respirava ameaças contra os cristãos (At.9:1), a quem Cristo confia os cuidados
de Sua lavoura (1 Co.3:9). Assim como Caim, construtor da primeira cidade,
Paulo foi o que lançou, como sábio arquiteto, o fundamento da civilização do
reino (1 Co.3:10).
Ironicamente,
Paulo foi o mais nômade dos apóstolos. Assim como Caim, apesar de ser
agricultor, andou foragido pela terra. E o paralelo entre o apóstolo dos
gentios e o primeiro filho de Adão não termina aí. Ambos traziam uma marca. No
caso de Caim, era uma marca posta por Deus para que ninguém o tocasse. Já Paulo
afirmava trazer no corpo as marcas de Cristo. Tal como a marca em Caim, o
objetivo da marca de Cristo em Paulo era para que ninguém o molestasse
(Gn.4:15; Gl.6:17). A Caim, Deus disse: “Se
não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre
ele deves dominar”
(Gn.4:7); o que parece encontrar eco na avaliação que Paulo faz de si mesmo: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha
carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo
realizar o bem. Porque não faço o bem que
quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora,
se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim” (Rm.7:18-20).
Apesar dos inegáveis paralelos entre os dois primeiros filhos
de Adão e os dois mais proeminentes apóstolos de Jesus, o fato é entre estes o
desfecho foi diferente. Em vez de hostilidade, eles venceram a rivalidade e
deram testemunho de que ambos trabalhavam no mesmo propósito, ainda que com
focos diferentes.
Veja o que Paulo diz sobre Pedro:
“Quero dizer com isto, que cada um de
vós diz: Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas (Pedro), e eu de Cristo. Está Cristo dividido? foi
Paulo crucificado por vós? ou fostes vós batizados em nome de Paulo?” 1 Coríntios 1:12-13
Repare
isso: em vez de alimentar a rivalidade, Paulo pôs um ponto final nela. Numa
outra passagem da mesma epístola, ele diz: “Portanto,
ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso; seja Paulo, seja Apolo,
seja Cefas (Pedro), seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o presente,
seja o futuro; tudo é vosso, e vós de
Cristo, e Cristo de Deus” (1 Co.3:21-23).
Entre os apóstolos ficou
acertado que Pedro se dedicaria a alcançar “as
ovelhas perdidas de Israel”, “os da
circuncisão”, enquanto que Paulo se dedicaria aos gentios (Gl.2:7-9).
Delimitadas as fronteiras entre seus ministérios, houve um episódio em que
Pedro demonstrou certa instabilidade, assumindo uma postura incoerente com quem
se dedicava exclusivamente aos judeus. Paulo não deixou por menos. De maneira
honesta e franca, chamou a atenção do colega (Gl.2:14). O respeito entre eles
se manteve intacto. Não foi intriga, disse-me-disse ou disputa, mas diálogo
respeitoso e sincero. E a prova disso é o testemunho que Pedro dá acerca de
Paulo, chegando mesmo a sair em sua defesa:
“E tende por salvação a longanimidade de
nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a
sabedoria que lhe foi dada; falando disto, como em todas as suas epístolas, entre
as quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem,
e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição.” 2 Pedro 3:15-16
Se
houvesse qualquer animosidade entre eles, Pedro jamais conferiria às epístolas
de Paulo o status de Escrituras. Mesmo admitindo certa dificuldade em entender
tudo o que o colega de ministério escrevia, Pedro sai em sua defesa. Portanto,
a relação entre Pedro e Paulo nos oferece um novo paradigma em substituição ao
arquétipo representado em Caim e Abel. O pastor e o lavrador agora podem
caminhar juntos. O pescador e o fazedor de tendas podem somar esforços em um
mesmo propósito.
Cristo
resgata a importância da vocação original do homem que é a de lavrar e guardar
o jardim de Deus. Mas não abre mão da vocação pastoril. Ambas são vocações de
cuidado. A união dessas duas vocações é representada pelo arado. O arado é a
ferramenta usada para arar a terra, preparando-a para o plantio. Geralmente, o
arado é puxado por um animal. Nele, as atividades pastoril e agrícola se
mesclam. Jesus diz que “ninguém que lança
a mão do arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc.9:62).
O
próprio Deus reúne em Si mesmo ambas as atividades. Ele é tanto o agricultor
que cultiva a videira (Jo.15:1), quanto o sumo pastor perante quem todos os
pastores terão que prestar contas (1 Pe.5:2-4).
* Leia o post anterior desta série para uma melhor compreensão do assunto, e não perca amanhã o último post da série "A Igreja e a inserção cultural".
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